Raimundo Julio da Silva Neto
Resumo: O presente artigo analisa o conceito de mais-valor em Karl Marx, examinando sua taxa, seus fundamentos teóricos e as duas formas clássicas de sua extração: o mais-valor absoluto e o mais-valor relativo. Partindo da distinção entre capital constante e capital variável, bem como entre tempo de trabalho necessário e excedente, busca-se demonstrar como o modo de produção capitalista organiza e intensifica a exploração da força de trabalho. Em seguida, são discutidos os mecanismos de prolongamento da jornada e de elevação da produtividade, evidenciando como ambos constituem formas distintas de ampliar o mais-valor. O estudo mostra, ainda, que o desenvolvimento das forças produtivas, longe de reduzir o trabalho humano, aprofunda sua subordinação ao capital. Pretende-se concluir que a análise marxiana desvela a lógica interna do capitalismo, cuja base permanece a apropriação sistemática do trabalho não pago.
Palavras-chave: Karl Marx; mais-valor; exploração; capital variável; produtividade; trabalho necessário; capitalismo.
INTRODUÇÃO
A análise marxiana do mais-valor ocupa posição central na crítica da economia política, pois revela o mecanismo pelo qual o capital se valoriza mediante a exploração da força de trabalho. Compreender a taxa de mais-valor e suas formas de extração constitui, portanto, tarefa fundamental para o estudo do funcionamento do capitalismo. O mais-valor decorre da diferença entre o valor total produzido pelo trabalhador e o valor que ele recebe como equivalente por sua força de trabalho. Essa diferença, apropriada pelo capitalista, é expressão objetiva do processo de exploração.
Para desenvolver essa compreensão, é necessário distinguir entre capital constante e capital variável, bem como entre tempo de trabalho necessário e excedente. O capital constante nada acrescenta ao valor final do produto: máquinas, ferramentas e matérias-primas apenas transferem o valor já existente. O capital variável, ao contrário, corresponde ao valor investido na compra da força de trabalho, sendo a única parte do capital capaz de gerar novo valor.
Outro elemento essencial da análise reside na distinção entre grandeza absoluta e proporcional do mais-valor, o que permite a Marx formular a taxa de mais-valor como a relação entre o mais-valor produzido e o capital variável despendido. Assim, a exploração não depende de uma troca desigual, mas do funcionamento intrínseco do processo produtivo, que faz com que o trabalhador produza, além do valor necessário à sua própria reprodução, um excedente apropriado pelo capitalista.
Nesse sentido, Marx distingue duas formas pelas quais o capital amplia o mais-valor: o mais-valor absoluto, obtido mediante o prolongamento da jornada de trabalho, e o mais-valor relativo, decorrente do aumento da produtividade e da redução do tempo de trabalho necessário. Ambas as formas estruturam a lógica da acumulação capitalista e revelam as contradições inerentes ao sistema, nas quais os avanços técnicos não se traduzem em menor tempo de trabalho para o trabalhador, mas em maior intensificação da exploração.
Desse modo, o presente artigo analisa cada uma dessas dimensões, articulando os fundamentos teóricos expostos por Marx com sua advertência sobre o caráter contraditório do desenvolvimento capitalista. Ao cabo, argumenta-se que tais categorias permanecem essenciais para compreender o capitalismo contemporâneo.
1. A taxa de mais-valor
A análise da taxa de mais-valor parte da compreensão de que o mais-valor[1] não surge da circulação nem de uma troca desigual entre equivalentes, mas do próprio processo de produção. Nesse sentido, Marx destaca que o valor do mais-valor pode ser expresso de duas maneiras: como grandeza absoluta e como grandeza proporcional. A grandeza absoluta corresponde ao montante excedente produzido, ao passo que a grandeza proporcional expressa a relação entre esse excedente e o capital variável[2] adiantado.
O filósofo formula essa taxa da seguinte maneira: “O valor de £90 = m expressa, aqui, a grandeza absoluta do mais-valor produzido, mas sua grandeza proporcional […] é expressa em m/v. […] Essa valorização proporcional do capital variável […] denomino taxa de mais-valor” (Marx, 2013, p. 292).
Através dessa relação, Marx demonstra que a taxa de mais-valor constitui a medida do grau de exploração da força de trabalho. Isso porque o trabalhador, durante uma parte da jornada, produz apenas o equivalente ao valor de sua força de trabalho ― o tempo de trabalho necessário ― e, na parte excedente, gera valor apropriado pelo capitalista. O método de cálculo é explicitado pelo pensador: “Tomamos o valor total do produto e igualamos a zero o capital constante […]. Estando dado o mais-valor, temos então de deduzi-lo desse produto de valor, a fim de encontrarmos o capital variável” (Marx, 2013, p. 294-295).
Para isso, Marx distingue capital constante (c) e capital variável (v). O primeiro representa os meios de produção, que apenas transferem valor; o segundo representa a força de trabalho, que cria novo valor. Assim, apenas o capital variável é fonte do mais-valor.
O mais-valor, portanto, consiste na diferença entre o valor total produzido e o valor correspondente ao trabalho necessário. Nesse sentido, Marx (2013, p. 294) sintetiza a relação entre trabalho necessário, mais-trabalho e exploração: “A taxa de mais-valor é a expressão exata do grau de exploração da força de trabalho pelo capital”.
Esse cálculo revela que a exploração não é resultado de injustiça individual, mas da forma social de produção que faz com que o trabalhador produza mais do que recebe.
2. O mais-valor absoluto
O mais-valor absoluto constitui a forma mais imediata e historicamente primária de extração do trabalho excedente que o trabalhador produz. Ele se baseia fundamentalmente no prolongamento da jornada de trabalho para além do tempo necessário à reprodução da força de trabalho. Marx define da seguinte forma: “A extensão da jornada de trabalho […] e a apropriação desse mais-trabalho pelo capital – nisso consiste a produção do mais-valor absoluto” (Marx, 2023, p. 578).
Dessa forma, não se exige inovação tecnológica ou reorganização produtiva: basta que o trabalhador permaneça mais tempo à disposição do capital. Assim, a exploração repousa sobre o simples aumento da duração do processo de trabalho.
O mais-valor absoluto explica o conflito permanente entre trabalhadores e capitalistas, já que estes buscam estender a jornada ao máximo, enquanto aqueles lutam para reduzi-la. Como Marx (2023, p. 597) salienta: “O limite absoluto para a redução da jornada de trabalho é, nesse sentido, a generalização do trabalho. Na sociedade capitalista, produz-se tempo livre para uma classe transformando todo o tempo de vida das massas em tempo de trabalho”.
O prolongamento da jornada adquire, por isso, caráter estrutural no capitalismo, sendo reforçado pela subsunção formal do trabalho ao capital, isto é, pela simples transformação de produtores independentes em trabalhadores assalariados submetidos ao comando do capitalista.
Desse modo, podemos concluir que o mais-valor absoluto é fundamentalmente da ordem do prolongamento da jornada de trabalho, como afirma Marx (2023, p. 274): “Tal como antes, o mais-valor resulta apenas de um excedente quantitativo de trabalho, da duração prolongada do mesmo processo de trabalho […]”.
3. O mais-valor relativo
O mais-valor relativo diferencia-se do absoluto por não depender da ampliação da jornada. Ele resulta da redução do tempo de trabalho necessário por meio do aumento da produtividade. Assim, mantendo-se constante a duração da jornada, a parte apropriada pelo capitalista aumenta[3]. Acerca dessa relação, é enfatizado que: “A proporção entre trabalho necessário e mais-trabalho […] que nas condições médias é de 5 para 1, é agora de 5 para 3” (Marx, 2023, p. 392).
Essa redução do tempo necessário decorre da queda do valor da força de trabalho quando os bens de consumo do trabalhador passam a exigir menos tempo médio de trabalho para serem produzidos. O capitalista, ao introduzir métodos mais produtivos, diminui o valor desses bens, reduzindo indiretamente o salário necessário.
Marx explica: “O prolongamento do mais-trabalho tem de resultar da redução do tempo de trabalho necessário” (Marx, 2023, p. 389). O mais-valor relativo depende do desenvolvimento das forças produtivas. Embora tecnicamente pudesse reduzir o trabalho humano, na realidade converte-se em maior exploração. Essa aparente contradição é demonstrada como:
Na produção capitalista, portanto, a economia do trabalho por meio do desenvolvimento de sua força produtiva não visa em absoluto a redução da jornada de trabalho. Seu objetivo é apenas a redução do tempo de trabalho necessário para a produção de determinada quantidade de mercadorias (Marx, 2023, p. 395).
Em consequência, o progresso técnico não emancipa o trabalhador do seu labor; pelo contrário, intensifica sua exploração.
Outro aspecto analisado por Marx é a relação entre valor individual e valor social. Se o capitalista produz com maior produtividade, seu valor individual cai, mas ele pode vender sua mercadoria pelo valor social, realizando mais-valor adicional:
Suponhamos que 10 horas sejam o tempo de trabalho necessário, 5 xelins o valor diário da força de trabalho, 2 horas o tempo de mais-trabalho e 1 xelim o mais-valor produzido diariamente. Mas nosso capitalista produz agora 24 peças, que ele vende a 10 pence cada uma, ou por um valor total de 20 xelins. Como o valor dos meios de produção é de 12 xelins, 14²/5 peças da mercadoria apenas repõem o capital constante adiantado. A jornada de trabalho de 12 horas se representa nas 9³/5 peças restantes (Marx, 2023, p. 392).
Assim, ao produzir 24 peças em vez de 12, o capitalista consegue que uma parte das mercadorias apenas repõe o capital constante (meios de produção), enquanto a outra parte representa o trabalho excedente, isto é, o mais-trabalho. Desse modo, mesmo que o valor total criado na jornada permaneça o mesmo, ele se distribui sobre mais produtos, aumentando a quantidade de mercadorias que incorpora mais-valor e promove a expansão do mais-valor relativo.
Assim, no modo de produção capitalista, a concorrência obriga outros capitalistas a adotar o mesmo método, transformando o aumento de produtividade em mecanismo geral de elevação do mais-valor relativo.
CONCLUSÃO
A análise empreendida permite compreender que a taxa de mais-valor e suas formas de extração constituem o núcleo da crítica de Marx ao capitalismo. A distinção entre capital constante e capital variável e entre tempo necessário e excedente revela que a força de trabalho é a única fonte de novo valor. A taxa de mais-valor expressa objetivamente o grau de exploração, não como injustiça moral, mas como relação estrutural do modo de produção.
O mais-valor absoluto demonstra a centralidade do tempo de trabalho para o capital, que busca prolongar indefinidamente a jornada. Já o mais-valor relativo mostra que os avanços da produtividade não resultam em tempo livre para o trabalhador, mas ampliam o mais-trabalho. Portanto, ambos os mecanismos convergem para aprofundar a subordinação do trabalhador ao capital.
Ao final, a análise marxiana expõe que, sob a aparente neutralidade técnica e econômica, o capitalismo organiza o tempo de vida de forma a maximizar a apropriação de trabalho não pago. Por isso, compreender as formas do mais-valor é compreender o fundamento da acumulação capitalista e suas contradições internas. Tais categorias mantêm plena atualidade para interpretar o capitalismo contemporâneo, no qual a exploração assume novas formas, mas permanece estruturada na lógica do mais-valor.
REFERÊNCIAS
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: o processo de produção do capital: livro I. Trad. Rubens Enderle. 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2023.
HEINRICH, Michael. Introdução ao capital de Karl Marx. Tradução de César Mortari Barreira; Revisão da tradução Guilherme Leite Gonçalves. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2024.
TEIXEIRA, Adriano Lopes Almeida. Mais-Valia ou Mais-Valor?. Revista Economia Ensaios, Uberlândia, Minas Gerais, Brasil, v. 34, n. 2, 2020. DOI: 10.14393/REE-v34n2a2020-45288. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/revistaeconomiaensaios/article/view/45288. Acesso em: 25 set. 2025.
[1] Esse termo (Mehrwert) foi traduzido como: “mais-valor” nesta edição da Boitempo utilizada. Embora não altere o sentido do conceito empregado por Marx, essa tradução gerou intenso debate entre os autores marxistas brasileiros. Assim, segundo Teixeira (2020, p. 226-227): “Recentemente, Mário Duayer, um conhecido estudioso da obra de Marx no Brasil, pretendeu encerrar uma polêmica ao sugerir a interdição do debate em torno de uma dessas questões aparentemente de menor porte. Trata-se da substituição da conhecida tradução para a língua portuguesa do termo alemão Mehrwert, a saber, mais–valia, pela expressão mais–valor. […] Por esse ponto de vista, a estrada teórica que conduz à mais–valia estaria interditada, pois, segundo ele, ‘uma vez que não é tradução literal de ‘Mehrwert’, o uso de ‘mais-valia’ teria de ser justificado teoricamente. Essa tarefa é impossível’. E assim, teríamos chegado ao fim da história da expressão mais–valia. Um sentimento não confessado, uma mistura de incômodo com constrangimento, surgiu entre alguns marxistas (e também entre estudiosos de Marx) no Brasil. […] Guardadas as devidas proporções em relação aos recursos estilísticos de Marx, foi pelo encontro casual com um texto literário daquele teor, que me surgiu a motivação para enfrentar um desses maneirismos que vez ou outra ameaçam, bem ou mal, tradições consolidadas, e que, no caso em questão, consiste em substituir na literatura marxista o ‘defeituoso’ termo mais–valia pelo ‘virtuoso’ mais–valor”.
[2] Para esclarecem ainda mais o capital variável, é enfatizado que: “A parte do capital utilizada para pagar salários é denominada por Marx capital variável (v), cujo valor se altera durante o processo de produção” (Heinrich 2024, p. 111).
[3] A título de comparação, isto é, sob a jornada de trabalho fixa e o aumento da exploração de mais-valor relativo, muito presente nos dias atuais, apresentamos a seguinte pesquisa feita pelo Instituto ILAESE em 2021, na qual foram analisadas 250 empresas mais exploradoras da força de trabalho no Brasil. A pesquisa em questão utiliza a seguinte estrutura metodológica: “[…] utilizar o estudo e a crítica das relações sociais capitalistas presentes na obra principal de Marx, O Capital, como eixo ordenador da análise dos dados empíricos. Tal obra possibilita significar o arsenal de números abstratos e vazios com que o capital se expressa” (Machado, 2021, p. 5). Dessa forma: “A taxa de exploração indica a divisão da riqueza produzida pela empresa entre os proprietários e os trabalhadores. Assim, uma taxa de exploração de 100% significa que, do total de valor agregado às mercadorias ou aos serviços vendidos, metade foi apropriada pelos trabalhadores e a outra metade apropriada gratuitamente pelos proprietários da empresa e/ou Estado” (ILAEESE, 2021, p.27). Para se ter uma noção disso, a pesquisa mostra: “A SALOBO, pertencente a VALE S.A., com operações localizadas na mina de cobre em Maraba-PA, foi a campeã da exploração dos trabalhadores em 2020. A taxa de exploração foi de 2.232%. Isto significa que o trabalhador paga seu próprio salário em 21 minutos de uma jornada de trabalho de 8 horas,. O resultado de 7 horas e 39 minutos de seu trabalho não lhe pertence, está fora de seu controle e usufruto” (ILAEESE, 2021, p. 27).