Ildeu da Cruz Sílvio
Boécio ao escrever A consolação da Filosofia vem trazer um tema que sempre despertou o interesse do homem: a felicidade. Apesar de seu livro ter sido escrito quando ele estava preso em Pavia, devido ao fato de ter sido acusado injustamente por “crimes políticos”, este tema não deixara de ser abordado por ele, sendo assim, procurar-se-á mostrar as reflexões que ele e a filosofia, sua interlocutora, chegaram a respeito da felicidade, mas especificamente baseado no livro III da mesma obra.
Nos seus escritos, Boécio procurava sempre invocar alguém do qual pudesse tirar a autoridade. Nesta obra é a Filosofia (que representa a consciência) que o consolará em seus infortúnios. Por isso é a Filosofia que o conduzirá neste árduo caminho para se chegar à compreensão da felicidade.
A Filosofia no diálogo começa a dizer que todo ser humano tem atividades que visam a um fim, o qual para ele é a felicidade: “Esta é o maior de todos os bens e encerra em si todos os demais, de tal modo que, se algum lhe faltasse, já não seria o maior, porque ficaria fora dele alguma coisa que poderia ser desejada” [1]. É uma felicidade que não necessita de mais nada, basta a si mesma. Pois, caso se houvesse tal possibilidade, ela deixaria de ser o bem maior desejado por todos, mas haveria, além dela, algo que pudesse ser desejado. Portanto, a felicidade é perfeita, uma vez que não carece de mais nada. Depois de ter dado a definição formal da felicidade, ele procurará em seguida dizer aquilo que não é a felicidade.
Uma vez que todo homem tende para o bem, corre-se o risco de um desvirtuamento, ou seja, de muitos procurarem o bem em falsos bens. Neste sentido, ressalta Cleber Duarte Coelho: ”Sendo a felicidade o objeto de todos os mortais, o erro destes consiste em buscá-la nos lugares errados”. “(…) de fato, na vontade de todos, encontra-se ínsito um desejo natural para o bem, embora o erro muitas vezes a descaminhe, levando-a para falsos bens” [2].
Em seguida, Boécio mostra algumas possibilidades que fizeram e fazem as pessoas encontrarem falsos bens e compreenderem como possíveis modos de ser feliz, são elas: riqueza, honra, poder, glória, prazer. Isso quer dizer que, os homens movidos pelo desejo natural de buscar a felicidade, eles equivocam-se, crendo que ela consista nestes bens. No entanto, esses cinco bens não possuem possibilidades de alcançar a felicidade, porque esta deve ser o fim ultimo e não itinerante de cada homem. Ressalta a “Filosofia”: “(…) se alguém prefere uma coisa a todas as outras é porque julga que ela é o bem supremo. Mas nós definimos acima que o sumo bem é a felicidade e, por conseguinte, cada um julga que a felicidade se encontra naquele bem ou naquele estado que ele preza sobre todos os demais.” [3]
A vida do homem sobre a aterra é uma intensa busca da felicidade é um constante caminhar, pois o homem sabe o que é a felicidade, mas fica oscilando pelo caminho por não conseguir voltar para casa, como se estivessem embriagado, atordoado, ou como se possuísse vendas nos olhos, como comenta Coelho:
Os homens vivem como sonâmbulos ou ébrios, que não conseguem encontrar o caminho para a própria casa. Isso ocorre porque não sabemos onde se encontra aquilo que procuramos (…). Com efeito, todos os homens desejam a felicidade, mas a ignorância humana os desvia para os falsos bens. Quando nos lançamos ao mundo exterior, ávidos por encontrarmos nele a felicidade, cimos em erro e engano (…)[4].
A seguir, Boécio passa a refutar todas aquelas possibilidades que aparentemente pareciam demonstrar ter encontrado a felicidade. A primeira, a riqueza, não pode ser a felicidade, porque a pessoa que a possui , tem o medo de que ela seja roubada, daí precisa de algo de fora para supri-la, deixando-a, desse modo, de ser auto-suficiente. Quanto mais riquezas um homem tem, mais preocupações ele terá. Portanto, as riquezas não conseguem liberar o homem da necessidade e torná-lo auto-suficiente, embora fosse isto que pareciam prometer. (…) o dinheiro não tem, por natureza, a prerrogativa de não poder ser tirado do dono contra a vontade deste. [5]
A segunda, a honra, não poderá fazer o homem feliz, uma vez que ela não muda o caráter do indivíduo, perdendo pelo fato de que depende do olhar do outro. O que adianta a uma pessoa ser cônsul em uma dada região e um dia ir morar entre povos bárbaros. Ele não será reconhecido, ou seja, uma coisa não implica a outra.
Ora, se este efeito fosse natural aos cargos, estes não perderiam sua função em nenhum lugar, tal como o fogo que, em qualquer lugar do mundo, nunca deixa de aquecer. Porém, como as dignidades não recebem honra por algo que lhes é intrínseco, e sim pelas falsas opiniões dos homens, elas se esvaem de imediato, quando deparam-se com povos que não as reconhecem como tais.[6]
Já a terceira, o poder, também não poderá ser a felicidade, uma vez que não se conserva em si mesmo, por estar condicionado ao lugar que se pode controlar. Sendo aparte que controla menor e a que não controla maior isso não o faz feliz, porque ele fica constantemente com medo de perder esta pequena parte que possui. A exemplo de um rei que fica constantemente com medo de ser assassinado, então procura seguranças para protegê-lo. Sendo desse modo limitado, por mais que o tenha o poder. E a partir do momento que este poder acaba, inicia-se a tristeza do soberano. “Um tirano, conhecedor dos perigos de sua condição, representou o medo de quem comanda, por uma espada suspensa sobre a cabeça. Que poder é este, então, que não consegue expulsar a dor da preocupação e evitar o tormento dos temores?”[7]
A quarta, a glória, se procede da mesma forma que os outros anteriores, não poderá ser a felicidade, uma vez que ela é limitada, dependendo sempre do olhar do outro, pois muitos podem conquistá-la pelas opiniões errôneas dos mesmo. Ela não acrescenta nada ao sábio que não pode se deixar levar pelos rumores das opiniões do povo. Além disso, é algo passageiro e não tem origem na pessoa que a possui, mas nos outros que a fazem famosa. “(…) Muitos obtiveram grande reputação devido á superficialidade da opinião pública, a coisa mais ignominiosa que se pode imaginar, pois, os que são exaltados pelas virtudes que não têm, são os primeiros a envergonhar-se dos louvores que não merecem(…).”[8]
A quinta, o prazer, acompanhará os antecedentes, não podendo ser a felicidade, por ser algo momentâneo e limitado, e se o homem afirmasse que o prazer é a felicidade, então também os animais seriam felizes, por estes estarem condicionados a natureza, no entanto ela( felicidade) é própria dos homens, pois o homem não está condicionado à natureza. “Admitindo-se que estes tragam a felicidade, não vejo porque os animais não possam ser chamados de felizes, pois sua inclinação está totalmente voltada a satisfazer as exigências do corpo.” [9] No entanto a felicidade é própria dos homens, pois eles não estão condicionados á natureza, ele a transcende dando significado às coisas. As pessoas almoçam uma comida deliciosa e depois do almoço por mais que aquela comida seja gostosa ele não sentirá vontade de comer, pois está farto, deixando ela desse de trazer o prazer.
(…) todos esses bens, no entanto, não tornam o homem plenamente satisfeito, não dão ao homem uma felicidade completa. Ora, a verdadeira felicidade é completa em si mesma e os homens só buscam estes bens por considerarem que eles os preenchem. Mas os bens terrestres não dão ao homem aquilo que prometem. Eles não tornam o homem ausente de perturbações e ainda geram novas necessidades, tornando-nos mias dependentes de outras contingências exteriores.[10]
Pode-se chegar à conclusão de que estes caminhos apresentados jamais poderão levar á felicidade, assim explicita Boécio no diálogo com a Filosofia, ou seja, estes princípios são a manifestações do bem, que é a felicidade, no entanto não é ela mesma. A cada uma daquelas características pressupõe a felicidade e que estas estão reunidas em um único objeto, presume-se de que há algo que é a natureza da verdadeira felicidade assim explicita a Filosofia, e, além disso, ele é formado por estes cinco elementos, a suficiência, a potência, a fama, o respeito e a alegria e que constitui uma única substância e que desesperadamente os homens procuram aqui na terra. Essa verdadeira felicidade pode ser entendida como Sumo Bem. “A Filosofia termina mostrando a Boécio que a essência desta felicidade, só ‘“ reside em Deus: nele “reside a felicidade substancial e perfeita”, porque Ele é o Sumo Bem”’[11].
Portanto, pelos mesmos motivos é necessário admitir que a suficiência, a potência, a fama, o respeito e a alegria são nomes diversos, mas que em nada diferem na substância (…). O que é uno e simples por natureza, a maldade dos homens procura despedaçar, e procurando levar uma parte de quem não possui partes, nem se apodera da parte, que não existe, nem do todo, que não lhe interessa[12].
Buscar a felicidade na riqueza, na honra, no poder, na glória e no prazer é fragmentar a felicidade. Felicidade verdadeira e perfeita torna auto-suficiente, poderoso respeitável, famoso e alegre quem a possui. Sendo ela, portanto, uma felicidade plena, ou seja, esta não necessitará de mais nada, uma vez que tudo está contido nela. A partir deste ponto Boécio e a Filosofia chegam à conclusão de que a felicidade não é deste mundo, está no transcendente (Deus). Ressalta Ferreira:
A Filosofia insiste em fazer ver que a busca da felicidade é uma nota constante dos homens. Estes, entretanto, insistem em julgar que a riqueza, a honra, o poder, a glória e o prazer é a verdadeira face da felicidade. Ser feliz é ter muita riqueza, não ter falta de bens materiais. A filosofia demonstra entretanto a incapacidade absoluta deste tipo de bens para satisfazer a alma humana: “Nenhum destes bens pode dar ‘o estado perfeito’ de felicidade”.[13].
Neste ponto o diálogo é interrompido por um instante, e Boécio assim como Platão em seus diálogos invoca a proteção divina para conseguir encontrar a verdade. E o canto termina com um pedido:
Concede, ó pai, á minha mente elevar-se á tua sublime morada; concede que eu possa atravessar a fonte purificadora do bem, e, descoberta a luz, que eu possa fixar em ti os olhos atentos de meu espírito. Dissolve as névoas e o peso de minha massa terrena e refulja em teu esplendor; pois tu és a serenidade, tu és o repouso tranqüilo para os justos, contemplar-te é o nosso fim; tu és, ao mesmo tempo, o princípio, o sustentáculo, o guia, o caminho e a meta[14].
Todo o caminho percorrido por Boécio teve como guia sua mestra (a Filosofia), para que ele melhor pudesse se encaminhar na busca da verdadeira felicidade, uma vez que ela é a sabedoria que ilumina o pensamento do homem. Pois o homem procura erroneamente falsos bens por não conhecer ainda o Bem Supremo. Todos compreendem que ele seja a felicidade, mas não conseguem defini-lo por conceitos, de modo que Ele não se deixa apreender por conceitos, ou seja, quando aplica um conceito a Ele, acha-se que se pode abarcá-lo e na verdade não é possível.
A Filosofia termina por mostrar a Boécio que a essência desta felicidade é Deus, sendo Ele divino, só se possui a felicidade na posse do divino, o que é o princípio de todas as coisas, sendo um fim a ser buscado durante a vida toda do homem sobre a terra.
Tendo em vista que a questão é muito abrangente, que ela continua, e visto que este trabalho se limitou a refletir um ponto específico e não o todo, da obra boeciana, percebe-se o quanto o tema da felicidade tem grande importância na filosofia de Boécio. Ela é entendida como o referencial para o entendimento de outros aspectos da obra “A consolação da Filosofia”. Sendo assim, o estudo do livro III desta obra retrata a questão da felicidade, se torna, portanto, indispensável.
Foi neste intuito que este trabalho buscou abordar “o tema da felicidade”, ou seja, perceber realmente o quanto ela é importante e assim ressaltar esta importância por meio de alguns pontos que comprovam tal afirmação.
Referências
BOECIO. A Consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998
COELHO, Cleber Duarte. A felicidade na De Philophiae Consolatione, de Boécio. In: COSTA, Roberto Nunes (org). A filosofia medieval do Brasil: persistência e Resistência. Recife: Printer, 2006.
DE BONI, Luiz Alberto. Filosofia Medieval: textos. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005.
FERREIRA, João. O “De Consolatione Philosophia” de Boécio. In: SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de (org). Pensamento Medieval: X Semana de Filosofia da Universidade de Brasília. São Paulo: Loyola, 1983.
[1] Consolação da Filosofia, III, prosa II.
[2] Consolação da Filosofia, III, prosa II.
[3] Consolação da Filosofia, III, prosa II.
[4] COELHO, Cleber Duarte. A felicidade na De Philophiae Consolatione de Boécio.
[5] Consolação da Filosofia III, prosa III.
[6] Consolação da Filosofia III, prosa IV.
[7] Consolação da Filosofia III, prosa V.
[8]Consolação da Filosofia III, prosaVI.
[9] Consolação da Filosofia III, VIII.
[10] COELHO, Cleber Duarte. A felicidade na De Philophiae Consolatione de Boécio.
[11] FERREIRA, João. O “De Consolatione Philosophia” de Boécio.
[12] Consolação da Filosofia III, prosa IX.
[13] FERREIRA, João. “O De Consolatione Philosophia” de Boécio.
[14] Consolação da Filosofia III, prosa IX.
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Meu caro amigo Ildeu.
Parabéns pelo artigo, ficou muito bom.
Esta reflexão de Boécio é muito profunda, nos revela algo da nossa intimidade: a felicidade, que tanto desejamos. Acho interessante, que a posse da felicidade, segundo Boécio, encera em si todos os nossos desejos, isto me faz pensar, que este desejo é um desejo absurdo, um desejo infinito, como disse Lévinas: que o eu tem desejo do infinito.
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Jesus disse no seu evangelho “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim.” (São João 14,6). Creio também que a felicidade que é a vida plena e infinita, só se pode ter por essa via, assim, se nos empenharmos em seguir Jesus, através da prática de seus ensinamentos, principalmente e inclusive o amor aos inimigos, poderemos vislumbrar a verdadeira felicidade!
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Olá! Gostei do conteúdo do seu site, muita informação boa, vou recomendar!