Thiago Gandra do Vale
Todos nós um dia nos deparamos com a nossa condição de seres limitados. Se isso ainda não ocorreu, uma hora ocorrerá; ou em muitas vezes já vivenciamos tal situação, mas não a percebemos devido ter sido de pequena importância seu enfrentamento. Isso se dá por causa das categorias de tempo e de espaço, que limitam o ser humano. Com isso, Baruch (Benedito) de Spinoza em sua obra intitulada Ética, na terceira parte “Origem e natureza dos afetos”[1], tenta nos mostrar como esse limite comumente nos é transmitido através das vias afetivas; e de que modo somos afetados pelas coisas[2] que compõem as categorias de tempo e espaço, e o quanto isso nos impossibilita de chegar ao conhecimento, e a termos uma vida virtuosa. Sabemos que essa obra possui um sistema montado que visa auxiliar o homem em sua conduta, e com isso nosso intuito será o de focalizarmos apenas no capítulo que se refere aos afetos, e percebermos neles, o quanto eles possuem uma dimensão considerável no ser humano.
Nesta terceira parte de sua obra, Spinoza constrói uma verdadeira geometria da afetividade humana, deduzindo a partir de princípios a priori toda a rica e complexa gama de afetos que determinam a nossa conduta, como nos afirma Pecoraro (2009, p. 246). De acordo com o mesmo pensamento toda a diversidade da vida afetiva nasce das múltiplas variações do desejo (op. cit. p. 246). Por afeto, Spinoza entende ser aquilo pelo qual a nossa potência de agir é aumentada ou diminuída (SPINOZA, 1959, p. 131).
A partir dessas ações afetivas em nosso corpo ou em nossa mente, produzimos causas[3] que são adequadas e inadequadas. As adequadas são aquelas cujo princípio se encontra na raiz da própria ação. E por inadequada se entende aquilo cujo princípio não se explica apenas pela nossa natureza, mas depende de sermos afetados por fatos que estão exteriores a nós do qual não somos o seu princípio, mas apenas vítimas de uma nova causa que se segue a partir do encontro desse movimento exterior conosco.
Essas idéias adequadas e inadequadas constituem a essência da mente humana, onde, ela mesma, esforça-se “em si” para que se preservem as idéias adequadas. A esse esforço Spinoza (1959, p. 141) dá o nome de vontade, é o que nos mostra a demonstração da proposição 9. E quando a alma está dominada pelas causas adequadas, as causas inadequadas não existem nela, pois ambas não existem simultaneamente, se assim fosse uma anularia a outra, o que é impossível segundo Spinoza com a afirmação de sua proposição de número 4: “Nenhuma coisa pode ser destruída, senão por uma fonte externa”[4] (SPINOZA, 1959, p. 139). Isso se dá devido à vontade não possuir tempo de duração determinado, pois se envolvesse um tempo limitado de sua existência, provocaria assim então uma possibilidade simultânea da existência das duas causas contrárias.
Spinoza nos deixa claro que quando o nosso corpo é afetado por algo que diminui ou aumenta a sua capacidade de ação, do mesmo modo a nossa mente também será. Assim fica claro que a nossa mente pode sofrer um advento de transformações, em uma hora passará da alegria à tristeza, ou vice-versa. As causas adequadas produzem em nós o sentimento de alegria, e as inadequadas, o seu contrário. Essas transformações em que a mente está sujeita, leva-a ao esforço em imaginar sempre aquelas coisas que aumentam a capacidade da ação do corpo, principalmente quando ela se sente afetada por pensamentos que diminuem a sua potencialidade da ação corporal. Pois assim sendo, o homem vivenciará sempre uma alegria ao perceber as suas ações sendo louvadas por outros, e afetando-os com a mesma alegria que se experimenta. (SPINOZA, 1959, p. 181)
No entanto, quando nossa mente é afetada simultaneamente por dois afetos, posteriormente, numa segunda afecção, mesmo que for por apenas um, sempre se lembrará do outro. Com isso, podemos concluir que uma determinada coisa pode ser por acidente causa de alegria ou de tristeza, como nos é mostrada pela proposição 15: “Uma coisa qualquer pode ser acidentalmente, causa de alegria, de tristeza, ou de desejo” [5] (SPINOZA, 1959, p. 146).
Spinoza nos mostra no escólio da preposição 17 (p. 148) que a mente sofre com certo movimento da alma chamado de “fluttuazione d´animo” (flutuação da alma), ou seja, quando alguma determinada coisa faz com que nós experimentemos um afeto de tristeza, mas a mesma se assemelha com algo que nos faz experimentar um afeto de alegria, esta coisa será motivo, ora de amor, ora de tristeza. Esse movimento é tão intenso, que faz com que a nossa mente experimente o mesmo afeto de tristeza ou alegria por uma mesma coisa passada ou futura. O afeto age de uma forma tão intensa no homem, que lhe proporciona um sentimento de tristeza pelo simples fato de imaginar a possibilidade de destruição daquilo que ama. Mas o contrário também acontecerá quando perceber um determinado esforço pela conservação da coisa amada.
O afeto com suas dimensões variáveis no homem, chega a deixá-lo irracional, a ponto de se alegrar ao ver aquilo que odeia sendo destruído, como nos afirma a proposição de número 20, “Se imaginar que venha a ser destruído aquilo que se odeia, se alegrará”[6] (SPINOZA, 1959, p. 151). Com base nessa proposição, podemos derivar várias interpretações como: a) quando vemos aquilo que amamos sendo afetado de alegria por outra coisa, nós passaremos a amar e a nos identificar com essa coisa; ou b) odiá-la se ela afeta de tristeza aquilo que amamos; c) da mesma forma, seremos afetados de ódio para com alguém que afeta de alegria aquilo que não gostamos; e d) ficamos alegres com aquele que afeta de tristeza aquilo que odiamos; e assim segue-se sucessivamente. Mas, de certa forma, sentimentos tão conformes podem gerar outros opostos menores. Isso é explicitado pela preposição 47 quando diz que essa alegria que nasce, traz consigo certa tristeza para a mente humana. (SPINOZA, 1959, p. 174).
Assim, sempre nos esforçamos para mencionar aquilo que nos agrada, em nossa relação com a coisa amada; e para esquecermos o que nos desagrada, esforçamo-nos em negar tudo o que a afeta de tristeza, ou mantê-la distante disso, e aproximá-la de tudo o que lhe causa alegria. Fazemos isso devido ao fato de sermos também afetados pela mesma alegria, como nos afirma a proposição 30:
Se alguém faz qualquer coisa, que modifica os outros de alegria será afetado pela mesma causa que acompanha essa alegria, acompanhado pela idéia de mesma causa, contemplará a si próprio. Mas se ao contrário há feito qualquer coisa que modifica os outros de tristeza, contemplará o contrário, a tristeza. [7] (SPINOZA, 1959, p. 160)
O escólio da proposição 31 (p. 161) nos diz que esse esforço que fazemos para que cada um aprove o que amamos ou odiamos, é denominado de “ambizione” (ambição). Assim, como sempre almejamos a felicidade para nós, e para as coisas que amamos, sentiremos inveja quando não estamos felizes, e vemos alguém nesse estado, ou raiva quando esse gozo é refletido por aqueles que não simpatizamos. Do contrário, sempre nos gloriaremos, quando a coisa amada experimenta um gozo para conosco. Mas sofreremos ódio para com a coisa amada quando a vemos aliada a outro, por um laço mais estreito do que o nosso, e invejaremos esse outro ente de atração da nossa coisa amada.
O afeto possui uma dimensão tão estimável em nós, que pelo simples fato de nos lembrarmos de bons momentos com uma determinada coisa amada, desejaremos possuí-la nas mesmas circunstâncias. E quando ocorre esse encontro e as sensações não são as mesmas, seremos afetados por uma tristeza, segundo nos afirma o corolário da proposição 36 (p. 166). E esse ódio será maior do que o amor que se sentia pela coisa amada, como nos afirma a preposição 38:
Se alguém começa a odiar a coisa amada, de modo que o amor venha a ser destruído por sua causa, terá por ela um ódio maior do que nunca a tivesse amado, o ódio será maior quanto primaz for o amor. [8] ( SPINOZA, 1959, p. 167)
Aquele que odeia determinada coisa, sempre se esforçará em lhe prejudicar e lhe fazer o mal. Mas do contrário, sempre lhe esforçará em fazer-lhe o bem. E se somos odiados por alguém que julgamos não lhe ter dado nenhum motivo para tal ato, passaremos a odiá-lo também. Mas se percebemos alguma causa justa nesse ódio, teremos a sensação de vergonha. E se somos afetados de ódio por alguém que amamos, viveremos em uma flutuação mental e da alma. Da mesma forma, sofreremos essa flutuação se também formos amados por alguém que odiamos. Spinoza dá o nome de cólera ao esforço que fazemos em fazer mal àquele que odiamos. E o de vingança à retribuição do mal que nos foi feito. (SPINOZA, 1959, p. 171).
Somos de igual modo afetados pela tristeza, quando fazemos um benefício a quem amamos, e percebemos que esse benefício foi recebido com ingratidão. Isso é o que denominamos como “amor não correspondido”, pois sempre que amamos, buscamos o bem para a coisa amada, como já nos foi dito, e através disso esperamos receber uma resposta positiva dessa coisa a qual amamos, e nos dedicamos a ela. Porém, a única forma de superarmos esse ódio, que é fruto de um amor não correspondido, é amando a coisa novamente, dando a ela uma segunda oportunidade. Mas tem de ser uma nova oportunidade sem levar em conta o viés da primeira experiência, pois o amor é a única forma de superação do ódio, como nos diz Spinoza em sua preposição 44: “O ódio é vencido inteiramente pelo amor, se muda em amor, e por isso o amor é maior do que o ódio, se não o houvesse precedido” [9] (SPINOZA, 1959, p. 173).
Entendendo essas condições dos afetos sobre a nossa mente, podemos também entender o motivo de às vezes nós não simpatizamos com uma nação diferente da nossa, pois em muitos casos ocorre de que ao sermos afetados de forma negativa por alguém de outra nação, isso nos gerará uma tristeza, e com isso manifestaremos o mesmo sentimento para com toda essa nação. O contrário também é válido nesse caso. É o que nos vem confirmar a preposição de número 46:
Se alguém de outra classe ou nação diferente da sua, lhe afeta de alegria ou tristeza, acompanhado da idéia dessa pessoa como causa, não somente amará ou odiará essa pessoa, como também toda a sua classe ou nação. [10] (SPINOZA, 1959, p. 174)
Mas isso são casos subjetivos, pois pode ocorrer que um determinado homem ame o que o outro odeie, e assim também o inverso. Da mesma forma os homens podem amar o que antes odiavam, pois dizíamos acima que “o ódio pode ser convertido em amor”. (p. 173). Pois cada homem exerce o seu julgamento em relação ao bom ou mau, melhor ou pior segundo os seus princípios afetivos, que são subjetivos. (SPINOZA, 1959, p. 178.187). Por isso o homem não invejará a ação de outros, mas somente de seus semelhantes que possuem uma natureza idêntica à sua, pois seus princípios de ação e de julgamento derivam dessa natureza. O homem invejará a estes quando eles se decidirem pelo correto, e ele pelo errôneo. (SPINOZA, 1959, p. 184).
Diante disso, Pecoraro (2009, p. 248-249) lança a questão: como podemos moderar a potencialidade dos afetos? Respondendo nos revela que Spinoza, mesmo sendo um racionalista, defende a existência de afetos que nascem do próprio exercício intelectual, e com isso podemos moderá-los e assim transformamos a nossa existência, pois como vimos os afetos não se originam de uma faculdade abstrata e antinatural, mas tem sua expressão plena também nas vias racionais do homem. Sendo assim, as idéias sendo adequadas orientarão de forma devida os desejos.
Com isso, percebemos que a concepção de afeto sofre uma oscilação com as idéias de Spinoza, pois os filósofos antigos só se preocupavam em emitir juízo de valores sobre os afetos; e Descartes o considerava como um conhecimento confuso como nos afirma Rovighi, (1981, p. 195). E ao que percebemos os afetos possuem uma relevância considerável no ser humano, pois são eles os encarregados de aumentar ou diminuir a capacidade de ação do nosso corpo e da nossa mente, como afirmávamos anteriormente. A transformação que a concepção de afeto atinge no pensamento spinoziano chega a ser tão considerável, que Hamlyn (1990, p. 138-139) chega a definir os afetos não apenas como algo que afeta ao corpo humano e suas idéias, mas sendo eles a própria idéia.
Diante do que aqui expusemos, podemos concluir que Spinoza, mesmo sendo um racionalista, não desvaloriza a parte afetiva do homem e mostra-nos que a fonte do nosso erro nas escolhas, ou a origem do nosso astral decaído que às vezes demonstramos, tem de certa maneira suas raízes nos afetos. E que estes, são uma parte que compõe o ser humano que deve ser considerada, pois o conhecimento que o homem busca atingir transita também pelas suas vias afetivas e a aplicação desse conhecimento, após ser alcançado, percorre o mesmo caminho, possibilitando assim, ressonâncias éticas na sociedade.
Referências
HAMLYN, David Walter. Racionalismo. In: ______. Uma História da Filosofia Ocidental. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. p. 134-142.
PECORARO, Rossano. Espinosa. In: ______. Os Filósofos Clássicos da Filosofia: de Sócrates a Rousseau. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 238-261 V.1.
ROVIGHI, Sofia Vanni. B. Spinoza. In: ______. História da Filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel. Tradução de Marco Bagno e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 1999. p. 175-206.
SPINOZA. Origine e natura degli affetti. In: ______. Etica: Dimostrata secondo l´ordine geométrico. Tradução de Sossio Giametta. Torino: Bollati Boringhieri editor, 1959. p. 129-191. Título original: Ethica ordine geométrico demonstrata. (1677, póstumo).
[1] “Origine e natura degli affetti”
[2] Por esse termo entendemos como sendo referente tanto a pessoas como a objetos.
[3] Por esse termo entendemos como sendo aquilo que é o princípio de toda ação.
[4] (Tradução nossa). “Nessuna cosa puó essere distrutta se non da una causa esterna.”
[5] (Tradução nossa). “Causa di letizia, di tristezza o di cupidità può essere, per accidente, uma cosa qualunque.”
[6] (Tradução nossa). “Chi immagina che venga distrutto cio che odia, si rallegrerà.”
[7] (Tradução nossa). “Se uno há fatto qualcosa, che immagina modifichimediante letizia gli altri, sara affetto da letizia accompagnata dall´idea di si stesso come causa; ossia contemplarà com gioia se stesso. Se al contrario ha fatto qualcosa, che immagina modifichi mediante tristezza gli altri, allora contemplerà se stesso com tristezza”
[8] (Tradução nossa). “Se qualcuno ha preso a odiare la cosa amata, in modo che l `amore venga del tutto rimosso, a parità di causa, egli la perseguirà con odio maggiore che se non l `avesse mai amata, e con tanto piú odio quanto maggiore prima era stato l `amoré.”
[9] (Tradução nossa). “L`odio che viene interamente vinto dall´amore, si muta in amoré, e l´amore è perciò piú grande che se l´odio non l´avesse preceduto.”
[10] (Tradução nossa). “Se qualcuno da un altro appartenente a una classe o nazione diversa dalla sua è stato affeto mediante letizia o tristezza, accompagnata dall`Idea come causa di lui, sotto il nome generale della classe o nazione, egli amerà o odierà non solamente quello, ma tutti quanti della stessa classe o nazione.”
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Muito bom! Um texto que mostra o lado afetivo da vida de um ser humano, falando sempre no amor e no ódio e também na alegria e na tristeza. Interessante quando ele destaca que o afeto age de uma forma tão intensa na vida de uma pessoa que acaba lhe proporcionando a tristeza pelo simples fato de imaginar a “perda“ e a destruição daquilo que ama. Sem dúvida um ótimo texto. Que continuemos enriquecendo nosso lado afetivo da vida…
Parabéns . Muito sucesso pra você…
Sabrina Cristina de Souza.
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Muito lindo o texto thiagoo..
O lado afetivo de um ser humano é sempre um ponto muito forte.
Pois sao lados muito opostos…
Amor e odioo…
alegria e tristezas…
A perda…que as vezes é tão dolirida q pareçe uma ferida..que doi tantoo…perde algo que amamos nunca é facil…
Parabéns Thiago
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Parabéns pelo texto. Interessante como logo que começamos a ler nos indentificamos com algumas situações mostradas referente tanto a pessoas como a objetos. É interessante também como os opostos são próximos e como isso de certa forma afeta a nossa vida astral, isso é uma potencialidade do ser humano que deve ser considerada pois, através das vias afetivas é que o homem vai buscar mais conhecimento.
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Com certeza esse texto nos situa muito devido a não podermos fugir dessa dimensão tão disafiadora em nós, mas ao mesmo tempo tão rica e misteriosa. Obrigado pelo enriquecimento de seu comentário!!!