Prof. Ms. Pe José Carlos dos Santos*
1 Estado da questão
O percurso hermenêutico, proposto por este simpósio, tem por objetivo nos auxiliar no desafiante propósito de estabelecer uma compreensão, justa, do humano. Para tanto, servimo-nos das diversas contribuições que ao longo dos tempos foram formuladas pela filosofia e pela teologia, aqui tão brilhantemente apresentadas pelos muitos especialistas em ambos os saberes. Com efeito, a Arquidiocese de Mariana é reconhecida, em contexto nacional, pela seriedade com que se dedica, ao longo dos séculos, no ensino e na pesquisa em filosofia e em teologia. Na atualidade, o ensino e a pesquisa se enriquecem com a constituição da Faculdade Dom Luciano, e com o crescente empenho e rearticulação do Instituto de Teologia São José.
Peço-lhes, humildemente, a permissão de dirigir-lhes uma reflexão num contexto diverso deste que até então predomina em nosso simpósio. No espaço que me foi concedido procurarei orientar o discurso antropológico para o campo da psicologia. Com efeito, sendo uma ciência que tematiza o humano, uma “ciência humana”, deve ser dito que a psicologia tem as suas raízes imersas em uma visão antropológica, ora implícita, ora explícita (RAVAGLIOLI, 1992, p. 47.). A meu ver, a antropologia subjacente às diferentes psicologias não é algo de importância secundária. Muito pelo contrário. Significa dizer que as diferentes teorias compreensivas ou hermenêuticas da personalidade humana estão ancoradas em diferentes compreensões do humano. Estas antropologias, então, poderão representar o humano de modo consistente e integrado, ou poderão estar eivadas de reducionismos ou de falseamento de nossa realidade, em sua riqueza e complexidade: “Uma neutralidade filosófico-antropológica da parte das ciências humanas é um mito insustentável e não conduz a uma adequada compreensão da realidade estudada; uma psicologia sem pressupostos não existe”[1].
Enquanto ciência do psiquismo (Goclenius, séc. XVI), a psicologia é ainda recente, está evoluindo rapidamente, já tendo constituído diferentes escolas, não somente diversas, mas muitas vezes opostas entre si. A cientificidade é, ao mesmo tempo, riqueza e desafio para a psicologia. Adota o modelo epistemológico das ciências empírico-formais, buscando construir técnicas aptas para investigar o psiquismo enquanto estrutura constitutiva do humano, investigando-o experimentalmente.
Um rápido olhar às diferentes vertentes da psicologia nos faz perceber que sua história nos conduz à tradição filosófica, onde encontram origem muitos de seus conceitos. A diversidade de métodos e modelos, a maior aproximação de uma ou outra matriz filosófica, faz com que se constituam “psicologias”, pelos motivos anteriormente expostos. A título de exemplo, de um lado temos a psicologia existencial, que se constrói a partir da corrente filosófica de mesmo nome; e temos a neuropsicologia, próxima da neurofisiologia. Ambas apresentam grande diversidade, por exemplo, da psicanálise (VAZ, 1991, p. 190).
Mantendo-nos no âmbito do estudo da personalidade, enumeram-se mais de trinta diferentes teorias, cujas impostações de base oscilam de uma perspectiva tendencialmente materialista (B. F. Skinner) a tendências que envolvem fenômenos de natureza mística ou religiosa (C. G. Jung). Compreensões de cunho pessimista (S. Freud), a formulações que veem o humano de modo acentuadamente otimista (C. Rogers). Enquanto há autores que acentuam o pólo das emoções e do inconsciente (S. Freud), há autores que acentuam o pólo da razão e do dinamismo consciente (L. Kohlberg, Piaget).
Houve estudiosos que se dedicaram a construir uma visão de conjunto, panorâmica, das principais correntes psicológicas contemporâneas. Um esquema, que julgo útil, agrupa as diferentes teorias em três grandes modelos teóricos gerais (MADDI, 1996): do conflito, da auto realização, comportamental, da consistência.
2 Modelo do conflito
Para a concepção antropológica subjacente (MADDI, 1996, p. 27) o indivíduo é um ser em tensão permanente e, portanto, está incessantemente em conflito entre gratificar seus instintos ou aceitar as exigências do mundo exterior. O conteúdo do conflito se deve ao contraste entre a natureza passional e instintiva do homem e as exigências de adaptação ao entorno social. Nesta perspectiva, a vida seria pautada por um certo tipo de “acordo”, de “arranjo” que, no melhor dos casos, realizaria um certo equilíbrio entre as forças em conflito; no pior dos casos haveria a tentativa de recusar ou suprimir uma das duas.
3 Modelo da auto-realização
Este modelo (MADDI, 1996, p.100), diferentemente do anterior, concebe a personalidade humana como movida por uma única grande força evolutiva. O homem tem, como inata, uma potencialidade para o bem, e sua existência é vista como tendo êxito quando marcada por uma expressão progressiva desta força única. Nesta ótica não se prevê conflitualidade alguma no processo de maturação. Isto aconteceria, por exemplo, caso o indivíduo não seja aceito sem condições ou se veja obstaculizado no desenvolvimento de seu eu real[2]. Este conceito de maturidade pressupõe, portanto, uma visão antropológica anticonflitual, decididamente otimista.
4 Modelo comportamental
O modelo comportamental considera o comportamento não como qualidade nossa, mas como efeito determinado pela influência ambiental, caindo no determinismo. O fundamento da mudança é o controle ou a manipulação do ambiente externo. Não há, propriamente, conflito, mas adequação ao ambiente externo. Nega a presença do inconsciente e não se interessa pelos conflitos inconscientes do passado. Quanto à maturidade, interessa-se pela modelagem do indivíduo, que é orientado para uma meta concreta e específica, definida por um agente externo. A aprendizagem não vai além da complacência e não se interessa por uma motivação axiológica e teleológica.
5 Modelo da consistência
Este modelo (MADDI, 1996, p. 174) merece um pouco mais de nossa atenção. Sua concepção central identifica na busca da harmonia, integração, não-contradição, a força motivacional característica do sujeito humano (RAVAGLIOLI, 1992, p. 52)[3]. Uma versão modificada, desta teoria, construída de forma interdisciplinar, recebeu o nome de teoria da autotranscedência na consistência (RULLA, 1986). Esta teoria foi construída em virtude da insatisfação, de diversos pesquisadores, com a antropologia subjacente às demais teorias, que apresentam uma série de dificuldades para a compreensão da vida cristã e de seu dinamismo. Constata-se, por exemplo, que nenhuma das teorias leva em consideração os valores religiosos; ainda mais, acentuam dinamismos antropológicos marcadamente egocêntricos, como a auto realização (ou a auto atualização), que estão claramente em contraste com a antropologia cristã, que coloca o acento da vida humana na autotranscedência, direcionada para valores que Não se restringem àqueles meramente naturais. Tais valores têm sua origem na revelação bíblica.
Segundo a teoria da auto transcendência na consistência, os elementos psíquicos ou forças motivacionais que agem em cada um de nós podem nos dispor a receber mais ou menos favoravelmente a ação de Deus. Como afirma Manenti (1987, p. 11), supondo que todas as outras condições sejam iguais, é mais eficaz a pessoa, cristão leigo ou consagrado, que não tenha bloqueios psíquicos em comparação com a pessoa que lhes sofre condicionamentos.
Para esta teoria, a vida é concebida como uma tensão para a transcendência de si mesmo. A opção pela vocação cristão, por exemplo, não é feita em relação a aquilo que a pessoa é ou como a pessoa vê a si mesma, mas em relação com aquilo em que a pessoa desejaria se tornar, àquilo que desejaria idealmente ser, com o auxílio de Deus. A realização de si mesmo é vista como um efeito, um produto colateral da auto transcendência, e não como algo que se deve buscar diretamente. A vocação cristã se edifica sobre a superação do eu, dado que ela convida a orientar-se por valores transcendentes (MANENTI, 1987, p. 11).
Outra afirmação fundamental desta teoria está na necessidade de se construir um ideal objetivo e livre. Este ideal, a partir do processo de internalização, passará a fazer parte da estrutura psíquica do sujeito. Uma vez internalizado, o eu-ideal se tornará capaz de colocar toda a estrutura psíquica em movimento, produzindo a energia necessária para mover o sujeito na direção dos valores pelos quais deseja viver. Enquanto objetivos e livres, os valores auto transcendentes serão vividos como um fim em si mesmos, e não simplesmente para satisfazer as próprias necessidades, sobretudo aquelas inconscientes.
Nesta compreensão de nosso funcionamento mental, a auto transcendência se torna um dinamismo que irá envolver a personalidade como um todo, e ao longo de todo o ciclo vital. Com efeito, e como assinalamos anteriormente, é fundamental perceber que existem, entranhadas em cada um de nós, resistências – inconsistências – que impedem a realização plena dos ideais vocacionais. Tais inconsistências são frequentemente subconscientes, situando-se fora do campo de compreensão do sujeito. Assim, há bloqueios no crescimento humano e espiritual sem que haja má vontade da parte da pessoa. E tais bloqueios, uma vez presentes, podem mostrar-se resistentes até mesmo a esforços heroicos no sentido da orientação da própria vida na direção da vivência dos valores auto transcendentes. É a situação em que a liberdade objetiva pode tornar-se significativamente reduzida em comparação com a liberdade essencial.
6 Conclusão
Como o tempo de que disponho se esgota, apresento de modo sucinto as ideias que considero mais importantes:
1) Há um grande número de teorias da personalidade. Todas têm uma compreensão antropológica subjacente. Tais teorias, em sua quase totalidade, reduzem a compreensão do homem ao campo da imanência. Nenhuma delas considera os valores religiosos, que são a característica fundamental da vocação à vida cristã (RULLA, IMODA, RIDICK, 1995, p. 2-3.
2) O objetivo da vida humana é a transcendência de si mesmo. Ser humano quer dizer ser orientado para algo que é superior e além de nós mesmos. Algo ou Alguém, um significado a realizar ou um outro ser a encontrar ou a amar. Existir quer dizer “perder-se” (FRANKL, 1990, p. 12-13).
3) A auto realização é efeito, resultado, consequência da auto transcendência. Quanto mais a vida se orienta pelos valores auto transcendentes internalizados, tanto mais a realização de si é alcançada.
4) A capacidade de internalizar os valores vocacionais é bloqueada em modo mais ou menos grave pelas inconsistências psicológicas pessoais (RULLA, 1986, p.314ss.). É a situação em que, mesmo querendo seguir os valores vocacionais, a pessoa se sente movida por forças contrárias aos valores proclamados.
5) As inconsistências psicológicas favorecem a busca de valores não-objetivos e nem livres. A pessoa inconsistente não é destituída de valores, mas com facilidade os interpreta em modo subjetivo. Em lugar de modificar o próprio comportamento, a pessoa distorce a compreensão dos valores.
Concluindo, apesar da rapidez desta exposição percebe-se a amplitude e complexidade do tema em questão. Espero que tenha sido suficiente para aguçar nossa curiosidade e desejo de maior compreensão. Grato.
Referências
FRANKL, Victor. Psicoterapia para todos. Petrópolis: Vozes, 1990.
FRANKL, Victor. The Will to Meaning. New York: The World Publishing Co., 1969, p. 31-49.
MADDI, Salvatore R. Personality Theories: a comparative analysis. Pacific Grove: Brooks/cole, 1996.
MANENTI, Alessandro. Vocazione, Psicologia e Grazia: prospettive di integrazione. Bologna: EDB, 1987.
RAVAGLIOLI, Alessandro M. Psicologia: Manuali di Base. Casale Monferrato: PIEMME, 1992.
RULLA, L. M.; IMODA, S.J.; RIDICK, J. Psychological Structure and Vocation. Roma: Editrice Pontificia Università Gregoriana, 1995.
RULLA, Luigi Maria. Antropology of the christian Vocation: Interdisciplinary Bases. Rome: Gregorian University Press, 1986.
VAZ, Henrique. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991.
(*) Texto apresentado no XII Simpósio Filosófico-Teológico da FAM, Mariana – MG, out 2011
[1] “Una neutralità filosofico-antropologica da parte dele scienze umane è un mito insostenibile e non conduce ad un’adeguata comprensione della realtà studiata; una psicologia senza pressuposti non esiste”. (RULLA, IMODA, RIDICK, 1981, p. 21)
[2] Esta visão é presente na compreensão rogeriana da personalidade.
[3] Muitos são os autores situados nesta corrente: S. R. Maddi, R. P. Abelson, D. W. Fiske, G. A. Kelly, etc.
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Boa reflexão, Pe. José Carlos. Contribuiu muito para a reflexão sobre o homem em nosso simpósio. Acredito que a aproximação da psicologia com a filosofia e a teologia faz-se necessária para que não fragmentemos a hermenêutica humana na comtemporaneidade.