Jackson de Sousa Braga
A percepção do mal na vida de Agostinho
Agostinho de Hipona percebe o mal ao longo de toda sua história de vida, por isso começa a se questionar sobre a sua causa e origem. Na obra Confissões, ele retrata o caminho que realizou para encontrar o que lhe fazia ser livre, ou seja, o que o levava a realizar o bem.
Como dito, Agostinho sempre percebeu a presença do mal em sua vida, desde a infância, quando relatou sobre seu desejo ardente de saborear os prazeres e também como vivia as dores da carne (sofrimento – que também é um mal): “nada mais fazia senão sugar os peitos, saborear os prazeres e chorar as dores da minha carne” [1]. Deve-se destacar que Agostinho não tinha lembrança de seus primeiros anos de infância, mas observava as outras crianças (que praticavam os mesmos atos maus) e recebia relatos de seus familiares[2]. Agostinho, então conclui que as crianças também têm sua natureza corrompida, “a debilidade dos membros infantis é inocente, mas não a alma das crianças” [3].
No período da adolescência existe, segundo Agostinho, além das tentações infantis[4], o apetite sexual e a transgressão. O pecado que mais marcou a adolescência de Agostinho foi o da luxúria, “os espinhos das paixões me sobejaram a cabeça, sem haver mão que os arrancasse”[5]. Além disso, foi na adolescência que Agostinho percebeu o prazer que o homem sentia pelo mal, ao narrar o episódio do furto das peras: “Eu quis roubar; não instigado pela necessidade, mas somente pela penúria, pelo fastio da justiça e pelo excesso de maldade […] não pretendia desfrutar do fruto, mas do roubo em si e do pecado.”[6]
Agostinho acreditava que o pecado era dirigir a vontade para as coisas inferiores – ressalta-se que as coisas inferiores (criaturas) são boas na participação no Sumo-bem (Deus), porém são boas em grau menor. O pecado é quando a pessoa se inclina para os bens menores ao invés de se inclinar para o bem em si, ou seja, Deus. Agostinho, ao narrar o episódio do roubo das peras, afirma que a cumplicidade faz com que o ser humano peque ou o induz a pecar, “portanto, amei também no furto o consórcio, daqueles com quem o cometi. Amei, por isso, mais alguma coisa do que o furto, mas não, não mais nada, porque a cumplicidade nada vale.”[7]
No momento de estudos em Cartago, Agostinho percebeu seu prazer pela dor e pela tragédia dos outros, mas os dois pontos que marcaram este momento da vida do bispo de Hipona foram a leitura do livro Hortênsio, de Cícero, e a adesão ao maniqueísmo. Agostinho foi seduzido pelos maniqueus porque esta doutrina buscava a origem do mal, tinha uma concepção de Deus e mostrava como os injustos (assassinos, homens cheios de mulheres… – citados no Antigo Testamento) seriam salvos. Os maniqueus respondiam a essas questões, dizendo que a origem do mal era o deus mal (eles acreditavam que havia duas origens das coisas, uma boa e outra má), que os seres divinos eram materiais e que o Antigo Testamento fora escrito pelo deus mal.
Finalmente, Agostinho teve o contato com os neoplatônicos em Milão e com Ambrósio, os quais o fizeram descobrir o que era realmente o mal, e fizeram-no abandonar a doutrina maniqueísta.
O mal
Agostinho, depois de toda sua experiência de vida, encontra a resposta para o problema da origem do mal, graças aos neoplatônicos, especialmente Plotino que afirmava ser o mal ausência, falta de bem. Plotino, porém, identificava o mal com a matéria, e se Agostinho identificasse o mal com a matéria, ele seria obrigado a dizer que o mal é um bem, pois todas as coisas, enquanto existem, são boas[8].
Agostinho também não poderia atribuir a origem do mal a Deus, pois Ele é Sumo-bem e criou todas as coisas boas. O Bispo de Hipona então chega ao homem, e conclui que o mal é causado pelos seres humanos, pois estes não são o bem pleno, como Deus o é[9]. O homem, ao se afastar de Deus e voltar-se para as criaturas, que são bens inferiores, causa o mal, pois se afasta do bem supremo, “pela propensão imoderada para os bens inferiores, embora seja bons, se abandonam outros melhores e mais elevados, ou seja, a Vós, meu Deus, à vossa verdade e a vossa lei.”[10]
Mas qual é a causa do mal no ser humano? Como ele se volta para os bens inferiores? Agostinho responderá que é pelo livre-arbítrio da vontade, “o livre-arbítrio da vontade é a causa de praticarmos o mal”[11]. O ser humano está sempre buscando um bem, entretanto, sua vontade acaba procurando um bem que não é o bem em si, mas os bens que participam do bem supremo (Deus). Quando o ser humano se volta para o bem verdadeiro, ele será livre[12] e estará agindo bem.
Portanto, o mal é a ausência de bem, ou seja, o mal é o não-ser ou nada. Mas, Agostinho irá questionar-se a cerca dos três aspectos do mal, a saber: ontológico- metafísico, moral e físico.
O mal no nível ontológico-metafísico
Agostinho afirma que “o mal não é uma substância”[13], portanto o mal enquanto ser não existe, não é. O mal não pode ser uma substância, pois todas as substâncias são boas, porque foram criadas por Deus e Deus não criou e não pode criar nada que seja mal. O mal é quando há a privação do bem, ou seja, é o afastamento de Deus.
O ser humano por causa de sua vontade, acabou deixando-se seduzir pelos bens inferiores, decidindo assim a ir para o nada, a inclinar-se para o que não é. Ressalta-se que para Agostinho, todos os seres humanos são um bem em si, até mesmo inclinados para a corrupção, “Se não houvesse nada de bom nelas (coisas corrompidas), não haveria nada aí que pudesse corromper-se”[14].
Portanto, o mal ontológico-metafísico é “um tirar fora, uma privação, uma tendência ao nada, antes que um locus inanis, uma bolsa de nada num mundo bom”[15]. Para Agostinho, mal é o não-ser, é nada, o mal é a privação do bem, é o não-bem. O mal não existe no cosmo, enquanto afirmação de ser.
O mal no nível moral
O mal moral é “uma perversão da vontade desviada da substância suprema – de Vós, o Deus – e tendendo para as coisas baixas: a vontade que derrama as suas entranhas e se levanta com intumescência.”[16]
O mal moral transforma as coisas relativas em absolutas e transforma o absoluto em relativo. Agostinhoobserva esse mal, desde o Gênesis, quando Adão quis ser poderoso comendo o fruto proibido, ele tentou se fazer absoluto, quis tornar-se um ser independente de Deus. Também Agostinho irá perceber o mal moral em sua vida, principalmente quando ele experimenta a morte de seu amigo: “Era desgraçado, e desgraçada é toda alma presa pelo amor às coisas mortais. Despedaça-se quando as perde, então sente a miséria que a torna miserável, ainda antes de as perder.”[17]
O mal moral é fazer das criaturas, que são boas, a perfeição; tratá-las como a única coisa que o ser humano precisa. O ser humano é um ser dependente de Deus e não pode querer fugir desta condição: “criastes-nos para Vós e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Vós”[18]. Nenhum ser humano vive por si só, todos precisam de algo, porém, por ter o livre-arbítrio, ele pode decidir para onde deseja inclinar sua vontade. Quando ele se inclinar para as criaturas, acaba caindo no mal moral , pois poderá até então se satisfazer temporariamente nos bens passageiros, porém estes irão perecer e então o ser humano cairá no sofrimento.
Conclui-se que o mal moral é a inclinação do ser humano para as criaturas, acontece quando o ser humano quer transformar os bens inferiores em bem superior: “eu fixava a atenção naquelas que são contidas pelo espaço, sem aí encontrar um sítio para descansar. Nem elas me hospedavam de modo a poder dizer: ‘isto me basta; estou bem!’ Nem deixavam partir para onde me achasse satisfeito.”[19]
O mal moral se efetiva quando o ser humano anseia por algo que o dê satisfação e felicidade, porém procura estas coisas no lugar errado. É somente Cristo, que concede ao ser humano a sua Graça, que poderá livrá-lo de sua prisão das coisas materiais e fazer com que ele busque a verdadeira satisfação de seus anseios.
O mal no nível físico
O mal físico é consequência do mal moral, ele é observado nas dores e na morte do ser humano. Além disso, pode-se constatá-los nos fenômenos naturais como terremotos e desastres. Agostinho não podia conceber essas coisas como coisas da vontade divina, por isso ele mostra que são consequências do pecado de Adão[20]. Para Agostinho, “‘males naturais’ é uma questão de interesse muito subordinado. Ele não os atribuiria a Deus, mas ao homem. Para ele, não existe uma coisa como ‘o mal natural’.
Ele diz que as coisas são boas, porém o ser humano fez com que elas tomassem um aspecto mal. Além disso, a morte que para ele é o pior mal é consequência do pecado original, é “ uma sinal do efeito do mal sobre suas naturezas intrinsecamente boas.”[21]
Assim sendo, o mal físico é consequência do pecado original, ou seja, pelo pecado o homem provocou todo o mal que há no mundo, desde o espiritual até o natural.
Considerações finais
Diante de tudo que foi dito, pode-se conclui dizendo que o mal é umas das questões que mais tem feito o ser humano se questionar. Ele sempre quis saber seu motivo, principalmente a origem do mal físico, que atinge até mesmo as pessoas que são consideradas boas. Santo Agostinho de Hipona se colocou as mesmas questões e se deixou levar por doutrinas que não apontavam para a verdadeira causa e a origem do mal (ex.: Maniqueus).
Porém, Agostinho sendo o homem que vivia na busca da verdade[22], não se deu por satisfeito e colocou-se no itinerário da busca pela origem do mal, voltando-se para dentro de si mesmo. Até conseguir encontrar a verdade. Graças à ajuda dos neoplatônicos, ele pode descobrir que “em absoluto o mal não existe, nem para Vós, nem para as vossas criaturas”[23]. O mal, na verdade, é a privação do bem. O ser humano, ao se inclinar para as criaturas, que são bens inferiores, acaba se apegando e tratando-as como absolutas, inclusive a si mesmo. Por isso, ele causou sua própria morte ao querer tornar-se autossuficiente e ao apegar-se aos bens inferiores.
O mal é algo que não existe, mas o ser humano tem se voltado para este algo que não existe e isso faz com que ele se angustie e se questione: “Por que escolhemos o mal desde o início?”. Pode-se responder, com Agostinho: porque o ser humano veio do nada. Porém, os anjos que não decaíram vieram do nada também, mesmo assim não se entregaram à vontade errada e não se acharam autossuficientes. Então, a questão continua: “Por que o ser humano escolheu o mal desde o início?”.
Referências
AGOSTINHO, Santo. Confissões e De Magistro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os Pensadores)
EVANS, G. R. Agostinho sobre o mal. São Paulo: Paulus, 1995.
[1] Conf. I, 7, 11.
[2] Cf. Conf. I, 6, 8.
[3] Conf. I, 7, 11.
[4] Na infância, Agostinho percebe as três tentações principais: a concupiscência, a ambição e a curiosidade. (Cf. Conf. I, 10)
[5] Conf. II, 3, 6.
[6] Conf. II, 4, 9.
[7] Conf. II, 8, 16.
[8] Cf. Conf. VII, 12.
[9] Se o homem o fosse iria se coincidir com Deus, pois só Deus é o bem pleno.
[10] Conf. II, 5, 10.
[11] Conf. II, 3, 5.
[12] A liberdade acontece quando há uma adequação da vontade humana à vontade divina.
[13] Conf. IV, 15, 24
[14] EVANS, 1995, p. 61.
[15] EVANS, 1995, p. 61.
[16] Conf. VII, 16, 22.
[17] Conf. IV, 6, 11.
[18] Conf. I, 1, 1.
[19] Conf. VII, 7, 11.
[20] EVANS, 1995, p. 148.
[21] EVANS, 1995, p. 144.
[22] Cf. Conf. III, 4, 8.
[23] Conf. VII, 13, 19.