Delvanir Maurílio
Rodrigo Artur Medeiros da Silva
Decerto que o ser humano é objeto de estudos e reflexões dos tratados filosóficos ao longo de toda a tradição. Assuntos relacionados à sua essência ou à sua existência são, foram e – por que não dizer – ainda serão, por diversas vezes, colocados nas pautas das discussões filosóficas.
Considerando o conceito de essência – à luz medieval – como aquilo que faz com que uma coisa seja ela mesma e não outra coisa e o conceito de existência – à luz da filosofia empirista – como a afirmação de algo que existe e do qual podemos comprovar a existência de forma imediata, à medida que o fenômeno nos é apresentado à consciência, caber-nos-ia – a título didático-metodológico –, antes de tomarmos qualquer posição no presente artigo, fazer uma resumida abordagem sobre como tais conceitos foram atribuídos ao homem no decorrer do pensamento filosófico, desde os seus primórdios.
No período antigo, embora os viesses das reflexões se voltassem mais para as questões cosmológico-metafísicas, o ser humano foi pensado como o ser que por si próprio conseguiu transmutar, de certa forma, o conhecimento para a imanência da razão pensante (ratio loquens). A passagem do “mito ao logos” abriu ao humano a gama de possibilidades de que este necessitava para começar a se auto-afirmar; a partir de então, o ser humano passou a averiguar afincadamente sobre a origem do cosmos[1], bem como a formular conceitos que passariam praticamente incólumes pela tradição[2] e até mesmo a se afirmar – pela eloquência dos discursos bem formulados – como o ser possuidor do conhecimento verdadeiro[3].
No período medieval, a afirmação humana se garantiu pelo ato de submissão. Talvez em virtude do poder que a Igreja católica constituiu na consciência intelectual europeia, sobretudo no período da Escolástica que se compreendeu “entre os séculos X e XIII, aproximadamente”[4], a afirmação de um conhecimento humano considerado como plausível ou verdadeiro se arraigava à perspectiva transcendental: as verdades eram afirmadas apenas pelo fato de que Deus as podia garantir. Todavia, esta postura paradigmática parece ter sido colocada “em xeque” ainda no fim do medievo dado que alguns pensadores – como Duns Escoto e Guilherme Ockham – conseguiram, mesmo que não por completo, imanentizar o conhecimento[5]; tal a lacuna para a inversão paradigmática e o surgimento da chamada modernidade.
No período moderno, firma-se o topo da imanentização humana através da razão; o conhecimento é transferido da transcendência para a imanência do sujeito de modo que o ser humano não precisaria mais de condicionar o conhecimento à afirmação do Deus medieval nem à doutrina da Igreja europeia. Até mesmo Deus – mesmo a-fortiori, isto é, necessário como fundamentação para a completude das concepções de alguns filósofos – passou a ser afirmado pela razão humana de modo a surgir no prisma moderno o conceito filosófico de deísmo. O ápice da razão moderna aconteceu com o Iluminismo preconizado por Immanuel Kant, a partir do qual começaram a surgir os avanços tecnológicos que, por sua vez, acarretaram na história revoluções de pensamento e de força[6].
E assim sendo, percebemos, até o período moderno, certa coerência nos discursos acerca da essência do homem a partir da qual surgiram, como pudemos perceber, os fundamentos para que a existência do mesmo fosse afirmada. Se resumíssemos ainda mais o levantamento paradigmático da tradição filosófica que fizemos, diríamos que a dimensão metafísica vigorava como o cerne do medievo, ao passo que a razão moderna, além de suplantar a metafísica medieval, remodelou a razão antiga. N’outras palavras, no medievo, a essência do ser humano ficou demarcada pela intelectualidade garantida pela dimensão metafísica, ao passo que na modernidade, demarcou-se pela razão subjetiva que vigorava como mecanismo em favor do aprimoramento intelectual visando cada vez mais a evolução tecnológica; e a razão moderna suplanta, mas também retoma alguns pontos da concepção racionalista da antiguidade dado que esta definia o ser humano como um ser que também buscava um aprimoramento intelectual, porém, que às vezes era colocado a serviço de um conhecimento não sólido.
Porém, tal coerência de que falamos parece não ter se firmado no pensamento contemporâneo. Neste, ao que parece, o ser humano perde a sua referência paradigmática. Por um lado, o pensamento parece ter caído numa postura relativista pelo fato de não podermos fundamentar uma saída plausível para o humano; este, por outro lado, parece ainda estar atrelado à consciência moderna de um racionalismo que busca a cada dia o aprimoramento intelectual em virtude da exacerbação da técnica o que gera, por sua vez, uma postura cada vez mais consumista na sociedade. Esta última postura – faz-se necessário ressaltar – é que faz com que alguns estudiosos não consigam diferir o momento em que se dá o término da modernidade e o começo da contemporaneidade.
E diante de tamanha gama de informações, perguntamo-nos: de fato sabemos definir em qual período estamos situados? Será possível calcarmo-nos num prisma que fundamenta a nossa auto-afirmação – enquanto objetos de estudo da filosofia – numa categoria de “tempo”? Os estudos filosóficos do humano sobre o humano teriam chegado a um fim, o que faria com que a filosofia, por sua vez, chegasse a uma verdade e, portanto, também ao seu fim? Tais questionamentos, de fato, são intrigantes; e talvez seja por esta razão que passam a constituir, a partir daqui, a essência do presente artigo, pois tamanha seria a covardia intelectual de nossa parte – enquanto estudantes de filosofia – se ao menos nem tentássemos buscar uma saída sólida para a problematização que aqui foi levantada. Sem contar que poderíamos estar sendo audaciosos por demais se disséssemos que a tradição filosófica se findou pelo fato de termos chegado a uma época da qual não conseguimos definir o paradigma.
Devemos, então, nos perguntar se houve algo peculiar ao ser humano que não citamos e que, por sua vez, é intrinsecamente necessário para a validade de sua afirmação. Diríamos que não, até o momento em que nos fizéssemos uma outra pergunta: o ato do falar, bem como o ato do pensar para conceituar, embora estejam ligados à dimensão racional, não fazem parte de uma categoria distinta que, por assim dizer, consegue se auto-afirmar? Ora, concordamos em dizer que o falar e o pensar intencionais constituem a perspectiva da comunicação – voltemos, sobretudo, ao pensar sofístico e à perspectiva da razão moderna. E ademais em dizer que é remota a possibilidade de desatrelarmos a dimensão da comunicação da dimensão da linguagem.
E assim, pois, podemos até afirmar que o problema da linguagem percorreu toda a tradição filosófica de forma despercebida pelo colégio dos filósofos e, por conseguinte, além de poder se tratar de uma saída para a perspectiva do pensamento contemporâneo, pode ter sido o principal fundamento para a constante vigência da filosofia – desde o seu nascimento – na história.
Com efeito, parece que, de fato, o problema da linguagem sempre norteou o pensamento filosófico. Para que serve a linguagem? Por que devemos nos comunicar? O que nos faz como seres comunicativos? Quais os meios que utilizamos para nos comunicar? Estas questões, ao que percebemos, foram erroneamente desprezadas, mesmo, por certo, vigorando implicitamente ao longo de toda história da filosofia.
Decerto que as faculdades de argumentar, persuadir, refutar ou concordar constituem no humano o poder da comunicação e o diferenciariam dos demais animais pela dimensão da razão, mesmo que também os animais considerados como irracionais, de certa forma, sejam considerados como seres comunicantes entre si. Daí surge, então, uma saída magistral apontada por Mondin: o ser humano passa a ser então compreendido como um ser de fala (homo loquens) e a sua diferenciação para com os demais animais se dá pela intencionalidade da linguagem, ou seja, o homem se comunica com intenção de se fazer entender[7].
De fato, a linguagem intencional implementa no ser humano a perspectiva de convencionar a sua fala posto que o entendimento comunicacional-intersubjetivo pode ser garantido pela convencionalidade das palavras proferidas. Se dissermos aleatoriamente palavras como, por exemplo, celular, not-book ou hot dog, certamente tanto nós quanto nossos ouvintes concordaremos sobre o que queremos dizer. Desta forma, segundo Mondin, é que a linguagem faz do homem um ser totalmente singular.
Assim sendo, parece-nos poder constatar que o ser humano pode permanecer convicto de que – mesmo não sendo considerado como o único ser de comunicação – somente ele, pela linguagem intencional poderá definir (dar fim) ou delimitar (dar limite) algo, o que garantiria, por assim dizer, o paradigma filosófico contemporâneo dado que a premissa clássica aristotélica de que a filosofia é a ciência que estuda todas as coisas só pode ser garantida pelo fato da existência de pessoas para levantar os problemas e criar conceitos. Portanto, questionemo-nos parafraseando Wittgenstein: sem a linguagem, há como fazer filosofia, de agora em diante?
Referências
BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. História da filosofia cristã. 2. ed. Tradução VIER, Raimundo. Petrópolis: Vozes, 1970.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MONDIN, Batista. O homem, quem é ele? Elementos de Antropologia Filosófica. 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 1980.
[1] Referimo-nos aqui aos filósofos naturalistas.
[2] Neste ponto citamos como exemplo Sócrates, Platão e Aristóteles.
[3] Aqui destacamos os sofistas.
[4] LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 318.
[5] Escoto e Ockham, segundo BOEHNER e GILSON, fizeram parte, respectivamente, das fases da Escolástica subdivididas em Alta e Posterior. C.f Sobre a Alta Escolástica (BOEHNER, Philotheus. GILSON, Etienne. História…, pp. 349-532); sobre a Escolástica Posterior (BOEHNER, Philotheus. GILSON, Etienne. História…, pp. 533-569).
[6] Aqui citamos as revoluções Industrial e Francesa, bem como as propostas sociológicas contemporâneas de Marx e Engels.
[7] Cf. MONDIN, Batista. O homem, quem é ele? Elementos de Antropologia Filosófica. 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 144. Sobre todo o capítulo Homo Loquens, C.f MONDIN, Batista. O homem, quem é ele?…, pp. 132-152.
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A começar pelo questionamento que finaliza este artigo coloco-me a pensar que sem a “língua” e seus “símbolos” – constituintes da linguagem – não há nada a se fazer. Como seres racionais que somos, impossível que consigamos fazer algo sem a comunicação que a linguagem nos possibilita.
Há de se convir que a discussão sobre comunicação e linguagem não se aparta dos problemas sociais advindos da contemporaneidade e que tal discussão se constitui de todo um arcabouço teórico.
As teorias nos orientam ao mesmo tempo em que as práticas reformulam as teorias. Isso nos leva a crer que estamos nos aperfeiçoando cada vez mais em nossas potencialidades, fato este que, a meu ver, impossibilitaria o fim da filosofia.
Uma vez instituída como a ciência responsável pelo julgamento das ações, ela se encontra intrínseca à Sociologia, que dá sentido à ação e interação – e à Psicologia – que lança um olhar sobre as causas da ação. Notamos claramente que todas se encontram imbuídas da manifestação de uma força, a própria ação. Tudo o que discutimos hoje é comunicAÇÂO, interAÇÂO.
Somos constituídos de matéria e ação. Nossas ações é que ditam as práticas e conceitos vivenciados, compondo com isso as transformações pelas quais perpassamos, cunhadas em momentos históricos com aspirações político-ideológicas particulares. Por tal motivo é que não posso concordar que exista uma ruptura de um período com o outro, mesmo que marcado por um fato histórico. Acredito sim que existe um panorama crítico composto de cenários formados e construídos a partir de experiências de “mundo vivido”, onde história e cultura se unem na formação do social.
Não estamos perdendo nossa referência paradigmática. Prefiro até ousar dizer que nós, seres pensantes, não possuimos paradigmas de determinadas correntes. Isso nos leva a assumir um apartidarismo – muito positivo para que nos tornemos mais originais.
Reforço aqui que não é preciso colocarmo-nos num prisma que fundamente nossa auto-afirmação. O próprio termo “auto” nos leva a pensar que nosso prisma somos nós mesmos no “ser” e no “devir” humano enquanto ser social, portanto, em sociedade.
Então eu lhe pergunto: é mesmo necessário distinguirmos a era em que vivemos? Acredito que não, até mesmo porque não temos a certeza de que nossos antepassados conseguiram tal feito. Nesse ponto me encontro em meio às infinitas possibilidades que a linguagem me fornece para conseguir expressar o que penso. Reporto-me agora à Bourdieu e ao poder simbólico instituído a partir da linguagem. Considero até que o hábitus, citado por ele, é o grande diferencial das passagens históricas – a que você chama de paradigma – delimitadas pelos períodos que as caracterizam. Pelo hábitus conseguimos “perceber” a essência e “evidenciar” a existência humanas de uma maneira que transcende as ciências. Estaremos nessa eterna dinâmica transdisciplinar de discussão inevitável e infinita nos entornos do kosmos que molda um corpus de conhecimentos, materializados na práxis – o que sucumbe com qualquer viés, seja metafísico, escatológico. Retornamos com isso para o nosso ponto de partida, que é também o ponto de chegada, o ser humano.
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Pois é, Hellen! Obrigado pelas suas colocações, bem como pelo seu questionamento, os quais são, por sua vez, bastante pertinenetes, além de bem fundamentados. Entretanto, creio, sim, ser necessária uma distinção paradigmática da época em que vivemos. Percebamos: se refletirmos sobre a postura do ser humano na contemporaneidade – seja como sujeito, seja como interlocutor de suas ações -, creio não conseguirmos desatrelar a nossa formação de consciência da postura relativista que acarreta em nós mesmos várias outras posturas, a saber: permissividade, libertinagem, racionalização deturpada dos atos, desenfreamento em nossas ações, deseticidade, desmoralização etc. Tais posturas advindas do relativismo, na minha visão, sucumbem não apenas o ser humano, como, principalmente, o período no qual estamos inseridos. Lembro-lhe, em respectiva, de um filósofo e dois sociólogos, quais sejam: Lyotard, Lypovedsck e Zigmunt Baumam. O primeiro – FRANCÊS – CRIA o termo “pós modernidade” e aplica-o à história apenas a partir da última década de cinquenta – aqui vale lembrar que o pouco conhecimento de história que temos nos afirma a dizer que o período da Modernidade termina com a Revolução Francesa, ao fianl do séc XIX. O segundo decalca o ser humano como inserido num contexto de Modernidade elevada à sua máxima potência, isto dá a entender, na pior das hipóteses, que os ideais dos modernos estão sendo alcançados somente agora. Já o terceiro “liquidifica”, na contemporaneidade, vários traços da modernidade, isto é, torna-os líquidos, solúveis, numa linguagem mais científica, tranvalora-os, remodela-os ou até mesmo sublima-os. Percebe? As diversas interpretações das práxis humanas culminam numa dificuldade de “temporizar” a idade “Contemporânea” ou “Pós-moderna”… Não há mais um molde, um modelo, um paradigma, um referencial para o nosso modus vivendi atual…
Como, então, salvaguardar a nossa própria identidade, ainda que seja como seres de “comunicAÇÂO” e de “interAÇÂO”, conforme você bem pontuou e com a qual eu concordo? Parafraseando Sartre: “[…], tudo nos será permititdo”?