Por Júnior César de Sousa*
Resumo: O presente artigo tem como objetivo uma abordagem panorâmica da concepção plotinina acerca da antropologia, a partir do método dedutivo da processão hipostática do Uno. Tal concepção não se trata de uma abordagem sistemática de alguma Éneada, mas de aspectos pinçados de sua filosofia, que se convergem principalmente na processão do cosmos físico e na descida da alma aos corpos. A visão de Plotino, de certa maneira semelhante a de Platão, vê o corpo como hospede da alma, mas a alma tem em si a potencialidade de domínio sobre o corpo, podendo ascender dialeticamente em direção ao Uno, visto que a felicidade plena consiste na felicidade verdadeira, e esta, provem única e exclusivamente do Uno.
Introdução
Com a Alma encerra-se a tríplice processão plotiniana, culminando depois dela, a origem do cosmo físico, o mundo sensível. Depois de uma sequência processual do mundo Inteligível, Plotino chega ao cosmos material, no qual habita o homem, que por sua vez está intimamente ligado a uma alma particular, que lhe concede o dinamismo(1) da vida. Plotino também afirma que há uma hierarquia de almas, a começar da grande Alma, que procede do transbordamento hipostático do Nous, e posteriormente às que dela procedem: a alma do mundo, da qual procede o cosmos físico e por fim, as almas particulares(2), que animam e regem os diferentes corpos.
Neste âmbito, o cosmos físico seria associado àquela última dissipação de luz proveniente do Uno, isto é, a analogia dos círculos concêntricos, da qual vários círculos de luz são irradiados do centro, que é o Uno(3). A primeira irradiação luminosa é aquela que atribuímos a primeira processão(4), do Uno à Inteligência (nous), seguindo a processão da Inteligência à Alma e por fim, a irradiação mais fraca, onde praticamente cessa-se a luz, emergindo-se numa escuridão. Esta analogia dos círculos concêntricos nos sugere que no estágio último onde a luz quase se extingue, situa-se o mundo físico.
Com efeito, a materialidade sensível é resultante deste enfraquecimento potencial em relação ao Uno, assim como menciona Giovanni Reale: “A matéria sensível torna-se, assim, esgotamento total e, portanto, privação extrema da potência do Uno e, por conseguinte, do próprio Uno ou, em outros termos, privação do Bem […] Nesse sentido, ela torna-se mal […] [compreendida assim] como falta e privação do positivo!’” (1994, p. 487)
1 Características da matéria inteligível e da matéria sensível
Faz-se necessário estabelecer as diferenças entre a matéria inteligível e a matéria sensível, uma vez o que deve ser levado em consideração não é propriamente o substantivo matéria, mas sim, no adjetivo que o caracteriza. (idem, p. 486). À semelhança de Platão, Plotino caracteriza a matéria Inteligível como sendo simples, imutável e eterna, enquanto a matéria sensível revela-se de natureza oposta, sendo composta, sujeita ao devir (temporalidade) e efêmera (corruptível), por conseguinte, imperfeito.
Uma vez que a alma do mundo é uma potência enfraquecida, não consegue força suficiente para elevar-se à contemplação da Alma que a processualizou e, então, gera o mundo físico, sendo a alma do mundo responsável pelo ordenamento dos seres sensíveis (compostos de matéria – sensível – e forma – dada pela alma, sendo esta superior ao corpo), tentando potencializar este mundo com todos os seus seres, mas de forma especial, a alma humana, dando a esta a possibilidade de voltar-se para o cosmos inteligível, ao campo luminoso processualizados dos círculos concêntricos.
2. O Homem: origem e natureza
Não conseguimos compreender o cosmo físico sem algo ou alguém que o submetesse. Necessariamente, esta função não poderia ser de um ser inanimado, mas de um ser que fosse superior a ele (enquanto racionalidade) e que contivesse aspectos comuns a este (materialidade). Plotino, então, seguirá com sua filosofia da descida da alma aos corpos. Reale frisa que:
o corpo nasce da união da forma com matéria, e é o resultado da qualidade unida à matéria. Em particular, Plotino especifica que a “corporeidade” enquanto tal é forma, é logos, é razão seminal produtiva, que gera o corpo concreto em união com a matéria. […] O corpo é portanto, em última análise, uma criação da forma. (1994, p. 495)
Mas como se dá esta união com o corpo? Espontaneamente, necessariamente ou involuntariamente? É o que vamos ver, a seguir.
2.1 A descida da alma aos corpos
Se considerarmos o homem apenas como uma alma particular, poderemos afirmar que ele já preexistia a corporalidade, estando interligada à grande Alma. Como argumenta Plotino:
Nós! Quem somos “nós”! […] estávamos lá em cima: éramos outros homens, individualmente determinados e também Deuses […] alma puras, como o Espírito juntamente com o Ser, inteiras, partes da realidade espiritual sem confins e sem cisões, mas pertencentes ao todo; tanto é verdade que até hoje não estamos separados dele. Hoje, porém, àquele Homem do Espírito acrescentou-se, infelizmente, um homem bem diferente, desejoso de existência […] e eis que então nos tornamos esses nosso “conjunto de dois” e não somos mais o que éramos antes. Mais ainda, às vezes, somos exclusivamente o segundo homem que se acrescentou, quando aquele primitivo Homem é inerte ou ainda, de algum modo, encontra-se distante. (Éneadas, VI, 4,14)
Percebe-se que a Alma individual já preexiste e é associada a um corpo em virtude da própria processão, da qual a Alma do mundo gera todos os seres particulares, inclusive o ser humano; nota-se aí que as almas se associam aos corpos em virtude da ordenação e governo (administração) das realidades sensíveis, potencializando-as. Estas duas atividades, ordenar e governar o que é inferior, constituem-se nas atividades principais das almas quando associadas a um corpo. Porém, se considerarmos a veracidade desta argumentação plotiniana, poderemos facilmente notar que a descida das almas nos corpos é involuntária, uma vez que não é um ato de escolha das almas, mas algo há salvaguardar a ordenação do cosmos sensível e, notar-se-á que então é também uma necessidade administrativa.
A alma é intimamente relacionada ao corpo que habita, sendo, no entanto, superior a este. Ela é responsável pelas sensações, pelas percepções e pelo conhecimento. […] a Alma comanda ou constitui-se como guia do corpo. O corpo que obedece a alma consegue se harmonizar como os elementos mais elevados da realidade e aproxima-se de um estado de união com esta realidade plena. Por outro lado, a Alma quando dominada pelo corpo, perde sua unidade por dispersar-se entre as coisas físicas individuais, que dominam sua atenção. (COLLINSON, 2004, p. 50)
O grande problema desta descida consiste justamente no fato de que, tendo descido aos corpos, as almas se excederam no cuidado com este, em outras palavras, se acomodaram a estarem nos corpos, amando a realidade sensível mais que a inteligível. Esquecendo a esta última, voltaram-se para as coisas exteriores(5) e esqueceram de si mesmas, desejando, com efeito, serem independentes e aquém do próprio ser ou seja, dispersaram-se. A origem do mal que as tomou foi a vontade própria, foi a entrada na esfera da alteridade e o desejo de pertencerem a si mesmas. Elas conceberam um prazer nessa liberdade, e se permitiram mover-se por si mesmas. […] afastando-se cada vez mais [de seu princípio], acabaram por perder até mesmo a lembrança de sua origem. […] caíram na autodepreciação. (cf. Éneadas, V, 1,1),
Esta atitude de grande afeição ao corpo e aos deleites das paixões corporais (idem, I, 6, 5) constitui o que denomina-se culpa(6). Além deste tipo de culpa, Plotino também nos fala sobre uma culpa relacionada à própria descida, visto que consiste numa experiência dolorosa. Quando, então, o ser humano padece algum mal, o corpo físico é quem sofre, visto que é corruptível (perecível), sendo assim, a alma é impassível ao padecimento. Contudo, vale ressaltar que para Plotino o homem é essencialmente alma, e alma dotada da faculdade racional (cf. Enéadas V 4, 2) , que se serve do corpo físico, e por conseguinte, é capaz de dominando as paixões, regressar a trancendentalidade, via ascese.
3 O fim último do homem: teleologia plotiniana
A teleologia plotiniana conduz o homem à felicidade, não mundana, mas eterna. Esta visão ética perpassa a dimensão da liberdade, e esta constitui-se em voltar-se para o Uno (o Bem e o Belo) (cf. I, 6, 7). Optar pela felicidade plena é optar pelo desejo de retorno ao Inteligível. Só é verdadeiramente livre quem opta por este caminho. E uma alma que se permitiu amar mais a realidade objetiva do que a realidade sublime só conseguirá ascender ao inefável abandonando as preocupações e paixões terrenas, atendo-se a ascese (purificação) espiritual via dialética e a mística (união mística com o Uno(7)), num caminho processão inversa de retorno ao Absoluto.
O corpo e alma, no homem, representam uma unidade, a qual pode ser “simplificada” ainda mais, no sentido espiritual, interiorizando-se, recolhendo-se no mais recôndito de si. A unificação interior preludia a experiência da assemelhação ao Uno. Em outras palavras, a busca do espírito humano converte-se em posse do Uno, fim último de todos os anelos. (ULLMANN, 2008, p. 135)
Em outras palavras, voltando-se para si mesma, sua dignidade, ou seja, contemplando sua feição inteligível, a alma é capaz de ascender até o plano superior, a Grande Alma. O caminho, Plotino enfatiza, é o caminho da interioridade(8), do desapego (despojamento) de si e das paixões, eliminando tudo aquilo que é obstáculo para o “reencontro” consigo e, posteriormente com o próprio Uno, processo este, de conversão, que pode chegar ao ponto máximo da contemplação, o êxtase (cf. Enéadas, I, 6, 7).
4 Considerações finais
Ao descer aos corpos as almas acabam turvando-se devido à sedução pela realidade sensível, a qual a deveria governar e subjugar, mas acaba sendo dominada pela corporeidade. Assim, a alma se afasta do principio originário. Mas, sendo dotada da faculdade da razão, a alma é capaz de voltar-se para si mesma, interiorizando e deste modo, ascender a trancendentalidade e a contemplação do Uno, tornando-se pela experiência mística, “una com ele”. Contemplando-se, a alma vê-se sublime e ascende dialeticamente ao Uno, num movimento ascendente da processão plotiniana.
Notas
* o autor é graduado em matemática e aludo de filosofia da FAM
1. A alma particular está associada a grande Alma, não havendo separação, mas apenas distinção. A alma é que concede o principio básico da vida (enquanto dzoe), animando assim a materialidade corpórea.
2. Salvaguardando a multiplicidade.
3.Do qual há dois atos distintos, o primeiro corresponde aquilo que carcteriza o Uno enquanto Uno , Imutável, e, segundo, a emanação do Ser que atualiza todas.
4. A processão se refere a atividade hipostática, na qual o que é procedido, volta-se em contemplação ao procedente, e num segundo momento, voltando-se para sim, processa algo distinto de si, mas de certa maneira interligado a si. UNO > NOUS > ALMA > COSMOS FÍSICO
5. São seduzidas por estas realidades exteriores, embora as coisas exteriores de certa forma participam a beleza inteligível, pois refletem a beleza do sublime. O fato consiste em se apegar mais a estas do que a Beleza e ao Belo em si mesmo.
6. Talvez não seja o melhor termo para ser utilizado, uma vez que como já dito, a descida das almas aos corpos constitui num ato involuntário.
7. Experimentada algumas vezes pelo próprio Plotino nas menções aos seus êxtases. O êxtase por sua vez, é a plenitude, onde a alma se sente uma com o Uno.
8. Olho interior.
Referências
COLLINSON, Diané. Plotino. In: _____. 50 grandes filósofos. Tradução Maurício Waldman e Bia Costa. São Paulo: Contexto, 2004. p. 49-52
PLOTINO. Tratados das Enéadas. Trad. Américo Sommerman. São Paulo: Polar Editorial, 2007.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga: As escolas da Era Imperial. Tradução Marcelo Perine e Henrique Cláudio de Lima Vaz . São Paulo: Loyola, 1994. [vol. IV]
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Plotino: um estudo das Enéadas. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.