Por Júnior César de Sousa*
O grande pedagogo é como a natureza: ele deve acumular obstáculos para que sejam ultrapassados. (F. Nietzsche, O euvres philophiques completes, XIX, 16[88]551)
Um insight me surgiu durante a exposição sobre Nietzsche e, arrisquei-me a escrevê-lo ainda que de forma breve e sem conhecimentos sólidos acerca da filosofia deste filósofo. Mas mesmo assim, queria ousar e tentar. Falando de transvaloração dos valores, de resignificações, redescobertas, de novas possibilidades frente aquilo que sempre aceitamos, da lógica do “sempre foi assim”, pensei que seria possível relacionar a situação do ensino brasileiro (pelo menos dentro do cenário que eu trabalhei, ainda que de forma breve) com a proposta nietzschiana de romper com aquilo que já estava arraigado, pronto e determinado.
Sempre me questionava sobre a situação que o ensino do nosso país vivia, ou seja, cada vez mais notava que o currículo escolar estava pautado somente nos processos classificatórios e eliminatórios (vestibulares e concursos). Eu, graduando em Matemática, jovem e sonhador, queria propiciar um ensino em que os próprios alunos, principais beneficiários do ensino, vissem as aplicabilidades teóricas das disciplinas não somente nos processos classificatórios.
É muito difícil dar um tratamento mais concreto e significativo as teorias ensinadas, uma vez que o próprio estudante, na maioria das vezes quer é apenas adquirir um conhecimento momentâneo (pseudo-conhecimento) para passar numa prova de vestibular ou concurso e pronto. Ele mesmo se fecha as possibilidades de aprendizagem escolar que lhes eram propostas para a aquisição de um conhecimento mais significativo. Via claramente que aquele tipo de “conhecimento adquirido” se dissolvia, prestando-se apenas para um dado instante no tempo.
Os professores por sua vez tinham que cumprir um cronograma estabelecido por seus superiores, afinal o mercado escolar tem como um de seus objetivos lucrar (no caso do ensino das redes privadas), não exercendo propriamente seu papel de ponte entre o estudante e o conhecimento. Infelizmente, as escolas acabam se tornando meros comércios onde os conteúdos são vistos apenas como uma sequência linear de informações e pré-requisitos associados à cronogramas, em detrimento da qualidade do ensino em questão. Mas, de que vale apenas cumprir um cronograma pré-estabelecido, sabendo que os alunos não adquiriram as competências mínimas necessárias?
Era (e é) fundamental neste âmbito “educacional” rever o processo de ensino aprendizagem, (embora uma perspectiva de mudança já se levanta, quando percebemos a tentativa de reelaborar os métodos avaliativos, privilegiando o raciocínio e não apenas a retenção de fórmulas e procedimentos, ou seja, a mera repetição e decoreba) Mas muito ainda precisa ser feito; afinal é preciso “mudar o pensamento” de muitos professores educadores, diretores e aqueles que direta ou indiretamente estão no meio educacional. É necessário também capacitar melhor o meio docente, dando-lhes ferramentas para trabalhar, subsidiando meios para que a mudança ocorra, valorizando estes profissionais basilares da sociedade, com salários dignos, planos de carreira. Em suma, dando aos educadores, a valoração que lhes são devidas. Fazia-se urgente uma maior motivação tanto dos profissionais de educação quanto de todo o corpo discente, que infelizmente vivem sobre a cultura do utilitarismo e imediatismo e por conseguinte, da inconsistência do saber, do querer apenas “passar” de ano, ” passar” no vestibular e pronto!
Talvez se o ensino fosse visto sob a ótica das redescobertas, possivelmente poder-se-ia ter um resultado mais eficaz; afinal o aluno poderia a partir de suas investigações, “re-descobrir” um caminho para solução de um problema, por exemplo; sem falar que esta seria uma forma de aprendizado na qual o aluno poderia trazer toda a sua carga de conhecimentos prévios, que nem sempre eram aproveitados em sala.
Com isso, quero dizer que o mundo do aluno seria valorizado, suas experiências prévias sobre determinado assunto estariam em pauta. Nisso Nietzsche nos ilumina muito, ao dizer que o conhecimento não é explicar, mas interpretar. Ou seja, o próprio aluno à luz de sua cultura, seu universo traria para aula um jeito tão correto de analisar a realidade quanto aqueles formais ensinados ou imposto pelo professor. Logo,o aluno seria instigado a investigar e, por conseguinte poderia com mais naturalidade, se apropriar do conhecimento adquirido por si mesmo, e, com efeito, estaria apto a usar este conhecimento quando necessitasse.
No cotidiano, as crianças e jovens lidam com o dinheiro, comprando objetos, brinquedos e roupas, outros ajudam seus pais no comércio, pesquisam preços e muito mais. Nestas pequenas situações, a capacidade de trabalhar com o cálculo mental vai se aperfeiçoando pouco a pouco. Este conhecimento prévio e prático nem sempre é considerado em sala de aula como ferramenta de apoio que antecede o formalismo das mesmas operações.
Quando se desconsidera o que o aluno já traz consigo, ele fica condicionado a um não-vislumbramento de suas potencialidades de raciocínio e abstração, como se uma viseira o direcionasse a um caminho pré-determinado que o faz aceitar um modelo definido como único, e acaba impedindo as descobertas feitas por si mesmo. Segundo Nietzsche isso seria o mesmo que castrar o intelecto, pois o conhecimento nunca é neutro, ele sempre traz em suas motivações elementos inconscientes, que fazem parte do universo cotidiano da pessoa.
Nietzsche não comunga muito do ensino tradicional (primário, ginasial e universidade), mas propõe uma educação na qual se valorizaria mais a cultura (a cultura seria a base do ensino), o contato com os pais e os mais idosos e, posteriormente o ensino técnico como apuramento profissional, e o superior enquanto uma cultura realmente superior (maturidade). Todavia, Nietzsche apontava para uma humanidade capaz de criar novos valores.
A educação que Nietzsche valoriza mais a cultura e a auto-formação, capazes de refletir sobre aquilo que já está previamente determinado – costumes, leis, valores, etc – fazendo assim, um reinterpretar a realidade, um redescobrir de sentidos.
Para o filósofo do martelo, a educação deveria propiciar aos alunos não somente um despertar das representações na consciência, mas na possibilidade dos alunos decifrarem tais representações, compreendendo um ver e vislumbrar daquilo que nelas se oculta. Talvez um “ver para além de”. Daí, segue-se necessariamente que o professor seja capaz de instigar, provocar, impulsionar novas possibilidades; mas primeiramente, ele (o professor) deve estar imbuído desta perspicácia, que segundo Nietzsche, se adquire de uma boa educação, maturidade, ambientação cultural. Com isso, Nietzsche sugere que o professor esteja formado conscientemente de sua própria experiência individual.
Creio que as três metamorfoses que Nietzsche propõe na obra Zaratrusta vai ao encontro daquilo que aqui procurei refletir. Talvez a atitude mais coerente diante do processo de ensino-aprendizagem deva ser realmente a passagem pelas três metamorfoses, nas quais deve-se primeiramente se libertar do espírito do camelo, que está impregnado por tudo aquilo que já é fruto de uma tradição consolidada, que aceita tudo sem questionar, afinal tudo já está dado, pronto e acabado. É preciso evoluir e sofrer a metamorfose do leão, que assume uma postura de não-aceitação frente aos pseudos-determinismos (sempre-foi-assim; convenções). O espírito de leão é questionador, corajoso, busca autonomia e, já não aceita as imposições. Procura a liberdade de pensamento, mas ainda não consegue criar novos valores nem resignificar antigos paradigmas. Logo, ainda é preciso sofrer mais uma metamorfose, e transforma-se no em criança, uma vez que o espírito de criança, é aventureiro, cria valores, não tem medo e, por isso mesmo, dá o seu significado a realidade, descobre por si mesmo e desbrava o novo. Portanto, exige como nos alerta Nietzsche:superação de si.
Vejo que necessitamos de um ensino que ajude os estudantes a amadurecer a capacidade crítica, auxiliando-os em seu papel de agente transformador da realidade vigente, ou seja, que eles sejam cidadãos mais entrosados com seu ambiente. As mudanças sem dúvida são difíceis e muitas não são bem aceitas, mas se ninguém toma uma iniciativa em busca de melhorias educacionais, ficaremos condicionados a uma estagnação do ensino (que já vivemos), e o este ciclo vicioso vai se arrastando anos a fora, como se tudo estivesse normal e sob controle. Precisamos romper com a cegueira, enxergando que é preciso mudar, e mudar urgente! É esse espírito de criança que devemos promover, instigar. O ensino precisa ser redescoberto, reconstruído.
* o autor é formado em matemática e cursa filosofia na FAM
Fonte de consulta
NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre educação. Tradução Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: PUC-RJ; São Paulo: Loyola, 2003.
Notas de aula de Antropologia I, 2013.
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Olá, Júnior!
Primeiramente, que belo texto! Acho importante esse novo gás dentro da reflexão sobre a educação.
Eu acredito que há algo que pode ser aproveitado em reflexões de Nietzsche sobre a educação, mas que normalmente é ignorado por haver lá um certo ranço aristocrata. Se trata da universidade para os fortes: ou seja, a universidade para a potência.
Esta universidade não prepara seus alunos para o império (que seria, na contemporaneidade, o mercado de trabalho), diz Nietzsche, mas para o livre pensar. A universidade que não prepara para o mercado, não submete o pensamento a nada, portanto, é um local de estudo desinteressado. Melhor, é interessado unicamente pela potência, pelo querer-saber sem fim.
Ao mesmo tempo, Nietzsche não achava que a educação era feita para todos (já que era só para os bons, os fortes), isso porque deveria haver uma camada de pessoas técnicas, portanto, fora do livre pensar, da livre formação. A técnica é o oposto da educação para a potência, a técnica é democratizante e, portanto, decadente.
Eu tentei dar um pitaco sobre isso aqui, no Colunas Tortas, no post “A proliferação das universidades no Brasil e Nietzsche”, dá uma olhadinha depois 🙂 : https://colunastortas.wordpress.com/2014/08/08/a-proliferacao-das-universidades-no-brasil-e-nietzsche/