Raimundo Júlio da Silva Neto
Resumo: O presente artigo examina comparativamente as concepções de bem em Platão, Epicuro e John Stuart Mill, mostrando como esse conceito se transforma ao longo da história da filosofia. Em Platão, o bem é apresentado como princípio supremo, fundamento do ser e da verdade, cuja contemplação orienta a vida moral e o governo da cidade. Em Epicuro, o bem deixa de ser transcendental e passa a ser definido empiricamente como prazer, entendido sobretudo como ausência de dor e serenidade da alma, constituindo uma ética prudencial e voltada à autossuficiência. Em Mill, o prazer reaparece sob o princípio da utilidade, segundo o qual ações corretas são as que promovem a maior felicidade possível para o maior número de pessoas; o hedonismo ganha, assim, dimensão social e universalizável. Portanto, cada uma dessas concepções, embora partam de pressupostos distintos, convergem na busca de um critério para orientar a vida humana, evidenciando continuidades e rupturas na elaboração filosófica da noção de bem.
Palavras-chave: Platão; Epicuro; John Stuart Mill; Bem; Felicidade; Hedonismo; Utilitarismo; Filosofia Antiga; Filosofia Moderna.
1. INTRODUÇÃO
A busca humana por uma vida melhor, isto é, menos marcada pelo sofrimento e mais orientada por algum princípio que dê forma e sentido à existência, acompanha a história do pensamento filosófico. Ao longo dos séculos, diversos filósofos procuraram identificar qual seria esse princípio fundamental que orienta as ações humanas: sua natureza, seu alcance, suas condições de realização e seus limites.
Entre esses pensadores, Platão, Epicuro e John Stuart Mill oferecem três concepções paradigmáticas do conceito de bem. Para Platão, o bem é o princípio supremo que ilumina o real e fundamenta tanto a vida moral quanto a vida política. Para Epicuro, o bem encontra-se na experiência concreta do prazer entendido como ausência de dor. Já para Stuart Mill, o princípio que orienta a ação correta é o da utilidade, isto é, a promoção da maior felicidade possível para o maior número de pessoas.
O presente artigo busca examinar comparativamente essas três concepções, evidenciando como a noção de bem desloca-se, ao longo da tradição, de um fundamento metafísico (Platão) para um critério empírico da vida prática (Epicuro) e, por fim, para um princípio moral universalizável e socialmente orientado (Mill).
2. O BEM COMO PRINCÍPIO SUPREMO EM PLATÃO
Na República, Platão apresenta o bem como o mais alto dos objetos de conhecimento e como o princípio que torna inteligíveis todas as coisas. Contudo, conhecer o bem não é tarefa acessível a todos, pois trata-se de uma realidade que ultrapassa o domínio discursivo e exige formação intelectual rigorosa, disciplina ética e ascendência dialética. Platão (Rep. VI 505b) afirma que “para a maioria, é o prazer que se identifica com o bem, ao passo que para os mais requintados é o saber”. Seu comentário não é apenas descritivo: ele critica ambas as posições porque confundem o bem com algo que não é suficientemente universal para ocupá-lo.
A crítica platônica, por isso, opera em dois níveis. Em primeiro lugar, identificar o bem com o prazer levaria a admitir a existência de “prazeres maus”, o que seria contraditório com a própria ideia de bem. Em segundo, identificar o bem com o saber implica supor que existe um “saber do bem”, mas sem indicar seu conteúdo ou sua causa. Em ambos os casos, o bem permanece inadequadamente compreendido.
Para explicitar positivamente sua concepção, Platão recorre à célebre analogia do Sol. Assim como o sol possibilita a visão no mundo sensível, o bem é aquilo que, no mundo inteligível, torna possível o conhecimento e confere verdade aos objetos inteligíveis: “[…] o bem é, no mundo inteligível, em relação à inteligência e ao inteligível, o mesmo que o sol no mundo visível em relação à vista e ao visível” (Rep. VI 508c).
Dessa imagem decorre uma tese central: o bem está acima da própria essência. Ele é causa não apenas do ser das coisas inteligíveis, mas também da possibilidade de conhecê-las. A ascensão ao bem, descrita por Platão nos livros VI e VII, possui, portanto, caráter epistemológico, ético e político. Nesse sentido, Melo (2018, p. 114) observa que essa trajetória possui dois movimentos estruturais: “[…] um que conduz ao processo da a ‘ascensão’ do sensível para o inteligível, e outro, de ‘descida’, de retorno à caverna”. Segue o autor sobre estes movimentos “Estes movimentos sugerem que se leve em consideração uma epistemologia que conduz o filósofo na sua tarefa ético-política.” (Melo, 2018, p.114). O conhecimento do bem, por isso, é condição para o correto governo da cidade. Após longa formação (matemática, dialética e política) os filósofos, ao atingirem cerca de cinquenta anos, devem:
[…] inclinar a luz radiosa da alma para a contemplação do Ser que dá luz a todas as coisas. Depois de terem visto o bem em sí, usá-lo-ão como paradigma, para ordenar a cidade, os particulares e a si mesmos, cada um por sua vez, para o resto da vida, mas consagrando a maior parte dela à filosofia; porém, quando chegar a vez deles, aguentarão os embates da política, e assumirão cada um deles a chefia do governo, por amor à cidade, fazendo assim, não porque é bonito, mas porque é necessário (Rep. VII 540a-b).
Seguindo essa observação a respeito das pessoas mais velhas, que poderiam ter sua alma inclinada para o ser que da luz a todas as coisas, Giovanni Reale (1997, p. 245) acentua:
Recordemos que Platão concebia essa via como extraordinariamente longa: ela devia passar pelas ciências matemáticas, até alcançar a dialética, para poder subir ao conhecimento do Bem, que se realizava aos trinta e cinco anos, mais outros quinze nos quais se devia levar a termo a contemplação e a prática do Bem.
O bem, assim, compreendido como princípio supremo e como causa do ser e do conhecimento, não é apenas fundamento metafísico: ele ilumina a ação ética e sustenta a arquitetura política da cidade justa. O governante ideal é aquele que, amando o ser em sua totalidade, orienta sua vida e suas decisões a partir da forma do bem.
Em suma, com Platão, o bem aparece como medida objetiva e racional da vida boa. Posteriormente, a filosofia helenística reconfigura esse quadro. É nesse contexto que Epicurodesloca o eixo da reflexão: em vez de uma fundamentação metafísica do bem, ele parte da experiência concreta do prazer e da dor, introduzindo critérios empíricos para a vida feliz. Assim, passamos do paradigma racionalista clássico para uma ética hedonista, embora moderada e rigorosa.
2.2. O BEM COMO PRAZER EM EPICURO
Ao contrário da concepção metafísica platônica, Epicuro redefine o bem em termos estritamente empíricos e concretos. Para ele, o prazer “[…] é princípio e fim da vida feliz” (Epicuro, 1985, p. 56). Essa afirmação, frequentemente mal-interpretada, não conduz a uma defesa do hedonismo desenfreado, pois Epicuro distingue claramente os prazeres corporais intensos e passageiros daqueles que constituem efetivamente o bem: os prazeres estáveis da ausência de sofrimento físico (aponia) e de perturbação da alma (ataraxia). Ele afirma: “[…] não nos referimos aos prazeres dos intemperantes […], mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma” (Epicuro, 1985, p. 57).
O prazer é, portanto, critério e medida das escolhas humanas, mas um critério racional. Assim, o filósofo afirma que não se deve buscar qualquer prazer indiscriminadamente, nem evitar toda dor, pois algumas dores conduzem a prazeres maiores e duradouros. Por isso, o filósofo insiste na necessidade de que:
[…] cada um dos prazeres possui por natureza um bem próprio, mas não deve escolher-se cada um deles; do mesmo modo, cada dor é um mal, mas nem sempre se deve evitá-las. Convém, então, valorizar todas as coisas de acordo com a medida e o critério dos benefícios e dos prejuízos, pois que, segundo as ocasiões, o bem nos produz o mal e, em troca, o mal, o bem (Epicuro, 1985, p. 57).
Trata-se, desse modo, de uma ética prudencial, orientada pela autossuficiência, pela serenidade e pelo equilíbrio dos desejos. A justiça, nessa perspectiva, não é uma ideia metafísica, mas um pacto social: “não tem existência por si própria, mas encontra-se nas relações recíprocas […] em que exista um pacto de não produzir nem sofrer dano” (Epicuro, 1985, p. 60). As leis são justas enquanto úteis à convivência. Quando deixam de ser úteis, deixam também de ser justas. Dessa concepção decorre que “O justo é sumamente sereno, o injusto cheio da maior perturbação” (Epicuro, 1985, p. 61). A injustiça, nesse sentido, rompe a paz da alma.
Assim, o bem para Epicuro não é uma realidade transcendente, mas uma prática de vida orientada pela busca da tranquilidade. A harmonia entre prazer e dor, entre bem e mal, possibilita ao indivíduo uma vida feliz, mesmo diante das contingências inevitáveis da existência.
A formulação epicurista do prazer como medida da ação reaparece na modernidade, mas em um contexto social, político e moral profundamente distinto. John Stuart Mill, retomando e reelaborando o hedonismo, introduz a noção de qualidade dos prazeres e a subordina a uma perspectiva utilitarista, na qual o bem deixa de ser apenas individual e assume um caráter coletivo.
Desse modo, a passagem de Epicuro para Mill marca a transformação do hedonismo em utilitarismo liberal, que se torna um dos eixos centrais da filosofia moral do século XIX.
2.3. A UTILIDADE COMO CRITÉRIO DO BEM EM JOHN STUART MILL
John Stuart Mill retoma a noção de prazer como elemento central da vida ética, mas a insere em um horizonte moral mais amplo: o princípio da utilidade. Segundo esse princípio, “[…] as ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrário da felicidade” (Mill, 2000, p. 187). Dessa forma, Mill dá ao prazer, entendido como felicidade e ausência de dor, uma função normativa universalizável. Assim como Epicuro, Mill destaca que o utilitarismo não reduz a vida moral aos prazeres sensíveis. Ele afirma que: “[…] não se conhece nenhuma teoria epicurista da vida que não atribua aos prazeres intelectuais, aos prazeres da sensibilidade, da imaginação e dos sentimentos morais um valor mais elevado como prazeres do que os alcançados pela mera sensação” (Mill, 2000, p. 188). O utilitarismo, portanto, não é uma doutrina da sensualidade, como acusavam seus críticos, mas uma teoria ética que valoriza níveis superiores de satisfação humana.
Além disso, Mill introduz um elemento decisivo que o distingue de Epicuro: o caráter altruísta e social da moralidade utilitarista. O valor moral de uma ação não se mede pela felicidade do agente individual, mas pela soma total de felicidade produzida para todos os envolvidos. Por isso, “[…] a moralidade utilitarista reconhece nos seres humanos o poder de sacrificar seus maiores bens pessoais pelo bem de outros” (Mill, 2000, p. 202). A renúncia pessoal, desde que voltada ao benefício coletivo, integra positivamente o agir moral.
Mill também responde à crítica de que o utilitarismo seria incompatível com a religião, afirmando que, se Deus deseja a felicidade de suas criaturas, então o utilitarismo é a doutrina moral mais coerente com essa vontade divina. Assim, ele enfatiza:
Se fosse necessário responder algo a essa que não passa de uma afirmação gratuita, poderíamos dizer que a questão depende da idéia que formamos sobre o caráter moral da divindade. A ser verdadeira a crença que Deus deseja, acima de tudo, a felicidade de suas criaturas, e de que esse era seu propósito ao criá-las, o utilitarismo não somente não é uma doutrina sem Deus, mas é uma doutrina mais profundamente religiosa do que todas as outras. (Mill, 2000, 208-209).
Portanto, a utilidade não é mero prazer, mas o prazer enquanto critério objetivo da ação justa e promotora do bem-estar comum. Assim, a noção de bem em Mill adquire amplitude ética e política: trata-se do princípio que regula as ações pela capacidade de gerar a maior felicidade possível para o maior número de indivíduos.
3. CONCLUSÃO
A comparação entre Platão, Epicuro e John Stuart Mill mostrou que, embora suas filosofias partam de pressupostos distintos e operem em contextos históricos e metodológicos muito diferentes, é possível relacioná-las a partir de um eixo comum: a pergunta pelo bem como critério orientador da vida humana. Cada autor responde a essa pergunta de acordo com seu próprio horizonte teórico, mas todos convergem na tentativa de estabelecer parâmetros que permitam compreender o que significa viver bem e agir corretamente.
Em Platão, o bem constitui o fundamento supremo da realidade inteligível. Ele é causa do ser, da verdade e da possibilidade de conhecimento, e, por isso, assume papel normativo decisivo tanto na vida ética quanto na organização política da cidade justa. Sua concepção é metafísica, universal e objetiva.
Epicuro, por sua vez, desloca o problema para o terreno da experiência concreta. O bem não é um princípio transcendental, mas a vivência equilibrada do prazer, entendida como ausência de dor e serenidade da alma. Nesse sentido, sua ética valoriza a medida, a prudência e a autossuficiência, oferecendo uma resposta prática para a vida feliz numa perspectiva individual, ainda que socialmente regulada pelo pacto da justiça.
Mill retoma a centralidade do prazer, mas a reconstrói em chave moderna: o critério do bem não é apenas aquilo que proporciona felicidade ao indivíduo, mas aquilo que maximiza a felicidade coletiva. Assim, o utilitarismo amplia e universaliza a noção epicurista de prazer, incluindo dimensões qualitativas e sociais. A ação moral correta passa a ser aquela que promove o maior bem possível para o maior número de pessoas.
Relacionar esses três autores tornou-se possível porque, apesar de suas diferenças, todos oferecem respostas normativas à mesma questão fundamental (o que é o bem?) e partem da premissa comum de que a vida humana requer orientação, critério e medida. As diferenças, porém, são tão instrutivas quanto as convergências: Platão busca um princípio absoluto e metafísico; Epicuro, uma prática sensata da existência concreta; Mill, um princípio moral universal aplicável à convivência coletiva.
Assim, ao percorrer essas três perspectivas, observa-se não apenas a permanência do problema do bem, mas também sua transformação histórica: de um fundamento ontológico para uma experiência individual e, finalmente, para um critério moral de alcance social. Essa trajetória evidencia que a reflexão sobre o bem permanece central para compreender a ação humana, suas motivações e os modos como indivíduos e sociedades procuram orientar a própria vida em direção à felicidade e à justiça.
REFERÊNCIAS
EPICURO. Antologia de textos. In: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco Aurélio. Os Pensadores. Tradução Agostinho da Silva. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985.
MELO, Edvaldo Antonio de. Por uma sensibilidade além da essência: Lévinas interpela
Platão. Roma: Pontificia Università Gregoriana, 2018.
MILL, Jonh Stuart. A liberdade:Utilitarismo. Tradução Eunice Ostrensky. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
PLATÃO. A República. Tradução Maria Helena Da Rocha Pereira. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão. Tradução de Marcelo Perine. 14. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1997.