Gerlison Ferreira Fernandes
Resumo: O presente artigo analisa os conceitos de princípio (ἀρχή) e causa (αἰτία) no Livro Delta da Metafísica de Aristóteles. A partir da leitura direta do texto aristotélico e com o auxílio de intérpretes como Enrico Berti e Giovanni Reale, são apresentados os seis significados de “princípio”, que vão desde o ponto inicial de algo até o fundamento necessário para a explicação dos fenômenos. Em seguida, examinam-se as quatro causas: material, formal, eficiente e final, destacando sua interdependência e a multiplicidade de explicações possíveis para um mesmo objeto ou acontecimento. Por fim, discute-se a distinção entre causas em ato e em potência, evidenciando a profundidade e a atualidade da reflexão aristotélica sobre a causalidade. Conclui-se que Aristóteles sistematiza um modelo explicativo fundamental para a filosofia e para a ciência, cuja influência se estende até o pensamento contemporâneo.
Palavras-chave: Aristóteles; Metafísica; Livro Delta; Princípio; Causa; Causalidade; Filosofia Antiga.
Introdução
Aristóteles nasceu em 384 a.C. em Estagira, na Macedônia. Foi aluno de Platão em Atenas, mas posteriormente se distanciou de seu mestre, aprofundando-se no conhecimento empírico, ou seja, aquele proveniente da experiência e da observação do mundo. Aristóteles escreveu um tratado composto por dez livros intitulado Estudos de Filosofia Primeira, que mais tarde passou a ser conhecido como Metafísica, nome atribuído por um de seus discípulos, Andrônico de Rodes.
Entre esses livros, o quinto é denominado Livro Delta (Δ). O filósofo italiano Enrico Berti, em sua obra Estrutura e Significado da Metafísica de Aristóteles, afirma que:
Delta é livro à parte, não é outra coisa senão um discurso dos termos usados. Normalmente, diz-se que são usados quando se faz filosofia, quando se fala de filosofia, portanto Delta é um dicionário filosófico. […] provavelmente, o livro Delta nascera como instrumento didático, à parte, e era usado na escola de Aristóteles exatamente para ter presentes os diferentes significados dos termos usados nas discussões dialéticas. (Berti, 2012, p. 74).
Os dois primeiros capítulos do Livro Delta tratam dos significados de princípio e causa. A palavra princípio ou origem deriva do grego ἀρχή (arché), enquanto causa tem sua origem no grego αἰτία (aitía). Portanto, o presente trabalho tem por objetivo analisar de forma aprofundada os significados dos termos princípios e causas atribuídos especificamente por Aristóteles, sem a discussão do significado dos mesmos termos para outros filósofos.
As Seis Acepções de Princípio (Arché)
O significado de princípio é abordado por Aristóteles em seis sentidos distintos. Para o filósofo, princípio pode ser compreendido como: 1) o ponto inicial de algo; 2) o melhor ponto de partida para o aprendizado; 3) a parte originária e inerente de uma coisa; 4) aquilo que move as coisas; 5) o ponto de partida do conhecimento; e, por fim, 6) um fundamento necessário para a explicação dos fenômenos. Cada um desses significados possui uma explicação própria que os diferem entre si, conforme exposto abaixo.
O primeiro significado de princípio refere-se ao ponto inicial de algo, sendo esse ponto variável conforme a perspectiva ou direção de onde se parte para iniciar a análise. O ponto de partida pode, portanto, ser definido de diferentes formas, dependendo do contexto ou da abordagem adotada, como afirma Reale:
Primeiro significado de “princípio”. – Trata-se obviamente, dos extremos, que são ponto de partida e ponto de chegada a igual título, de acordo com o lugar do qual parte. A estrada que vai a de Atenas a Tebas tem seu início em Atenas; todavia em Tebas está o outro princípio da estrada, que é início para quem vai de Tebas a Atenas e, portanto, da estrada considerada na direção de Tebas a Atenas (cf. Asclépio, In Metaph., p.303, 33 s Hayduck). (Reale, 2011, p. 201).
Ou seja, quem parte em direção a Tebas, o princípio é Atenas; já quem parte para Atenas, o princípio é Tebas. Dessa forma, o princípio pode ser entendido como algo relativo ao ponto de partida, que varia conforme a trajetória adotada.
O segundo significado de princípio refere-se à melhor forma para aprender. Nesse contexto, Reale diz que:
Trata-se do ponto que subjetivamente nos é mais propicio para alcançar o melhor modo de fazer uma coisa. O exemplo aristotélico, de resto, é muito claro: para o sujeito que deve aprender uma ciência, o ponto do qual a partir para melhor apender a ciência não coincide necessariamente como que é primeiro na própria ciência. (Reale, 2011, p. 201-202).
Com essa abordagem, enfatiza-se que o ponto de partida ideal nem sempre é o mais óbvio ou o primeiro dentro de uma ciência ou área de estudo. Para aprender de forma eficaz, é necessário considerar o ponto de partida que melhor se adapta às condições e necessidades subjetivas do aprendiz, sem seguir uma abordagem rígida, o que torna o método variável de pessoa para pessoa.
No terceiro significado de princípio se refere à parte originária e inerente à coisa, Aristóteles aborda a questão da seguinte maneira:
[…] a parte originária e inerente à coisa a partir da qual ela se deriva: por exemplo, a quilha de uma nave, os fundamentos de uma casa e, nos animais, o coração segundo alguns, o cérebro segundo outros, ou ainda alguma parte segundo outros. (Metaph. V 1, 1013a, p. 189).
Segundo Reale (2011, p. 202), “Aristóteles, com essa fórmula, costuma designar o elemento; aqui designa, ao contrário, a parte primigênia de uma coisa, da qual se desenvolvem todas as outras partes da própria coisa […]”. O terceiro significado de princípio, portanto, refere-se à parte originária e inerente de algo, que serve como base e origem para todas as outras partes. Essa parte é fundamental para o ponto de partida e necessária para a constituição do todo, não sendo apenas a origem, mas também a unidade e o funcionamento da coisa como um todo.
O quarto significado de princípio define-se como aquilo que move as coisas, como descreve Aristóteles: “[…] a causa primeira e não imanente da geração, ou seja, a causa primeira do movimento e da mudança; por exemplo, o filho deriva do pai e da mãe, e a rixa deriva da ofensa”. (Metaph. V, 1, 1013a, p. 189). Nesta análise, o princípio é denominado como um agente externo que desencadeia um efeito, derivando-se de uma mudança que dá início a outra mudança. O filho só nasce a partir do pai e da mãe, e a ofensa surge através de uma rixa. Todos esses casos necessitam de uma causa primeira e não imanente. Assim, o princípio é a causa inicial que gera a transformação, impulsionando também o desenvolvimento.
Na quinta definição de princípio abordada por Aristóteles, tem-se que: “[…] princípio significa aquilo que por cuja vontade se movem as coisas que se movem e mudam as coisas que mudam; […]”. (Metaph. V,1,1013a, 10-15, p. 189). Essa definição refere-se a algum movimento e mudança das coisas, não se restringindo a uma causa material ou física, mas força movida pela vontade, que impulsiona a ação e a transformação.
Continua Aristóteles “[…] as magistraturas das cidades, as oligarquias, as monarquias e as tiranias, e do mesmo modo as artes e, entre estas, sobretudo as arquitetônicas […]” (Metaph. V, 1, 1013a, p. 189). Com isso, Aristóteles evidencia que o princípio é visto como a vontade que move as coisas, tanto no campo político e nas estruturas de poder, quanto em atividades humanas, como, por exemplo, as artes. Sendo assim, é o que orienta e provoca mudanças por meio de decisões e ações que geram e transformam, com significância, diferentes esferas da sociedade e da criação.
Por fim, o último significado de princípio é entendido como o ponto de partida do conhecimento, onde Aristóteles sugere que, para conhecer algo, é necessário, primeiramente, conhecer as premissas, que são princípios.
As Quatro Categorias da Causa (Aitía)
Outra análise abordada no segundo capítulo é a da causa (aitía), também central no pensamento aristotélico, e que, assim como o princípio, assume diferentes significados. O conceito de causa não se limita a um único tipo de explicação, mas se desdobra em diversas formas, cada uma delas relacionada de maneira distinta, como ocorre no caso do princípio- seja como o fator que gera as mudanças, seja como o propósito final que orienta um fenômeno. As causas aristotélicas são as seguintes: causa material, causa formal, causa eficiente e causa final.
Em primeiro lugar, a causa material, segundo Aristóteles, é definida como aquilo de que algo seja feito, bem como o que recebe forma e é transformado. O filósofo expressa essa ideia ao afirmar: “Causa, num sentido, significa a matéria de que são feitas: por exemplo, o bronze da estátua, a prata da taça e seus respectivos gêneros.” (Metaph. V, 2, 1013a, p. 191). Fica evidente, portanto, que a causa material se refere à substância concreta que compõe o objeto, sem a qual este não existiria. Por exemplo, a prata não é, por si mesma, uma taça, mas é fundamental para a constituição física dela.
A segunda causa abordada por Aristóteles é a causa formal, que corresponde à forma e à essência de algo. Ele a define como aquilo que confere identidade ao objeto, permitindo seu reconhecimento pelo que ele é. Aristóteles afirma: “Em outro sentido, causa significa a forma e o modelo, ou seja, a noção da essência e seus gêneros; por exemplo, na oitava a causa formal é a relação de dois para um e, em geral, o número.” (Metaph. V, 2, 1013a, p. 191). Com base nesse exemplo de natureza matemática, Aristóteles esclarece que a causa formal não se refere à matéria da música, mas à sua estrutura, que é fundamental para quem a organiza. A formalidade da oitava musical, por exemplo, consiste na relação numérica que define a harmonia, expressa na proporção de dois para um.
A causa eficiente, por sua vez, é definida por Aristóteles como o agente ou princípio responsável pela mudança ou pelo movimento. Ela é o fator ativo, aquele que põe a matéria em movimento e provoca a transformação. O filósofo afirma: “Ademais, causa significa o princípio primeiro da mudança ou do repouso […]” (Metaph. V, 2, 1013a, p. 191). Como exemplo prático, pode-se citar o oleiro, que, ao moldar o barro, transforma a matéria em um vaso. Assim, o oleiro é a causa eficiente da mudança que ocorre na matéria, convertendo-a de uma forma potencial em uma forma atual.
Por fim, Aristóteles aborda a causa final, que é o propósito ou o fim das coisas. Para ele, toda coisa tem um fim, que representa o seu propósito. Sendo assim, a causa final é o motivo pelo qual algo existe e pelo qual se move, como afirma o filósofo: “Com efeito, todos estão em função do fim e diferem entre si enquanto alguns são instrumentos e outros ações.” (Metaph. V, 2, 1013b, p. 191).
Ademais, Aristóteles não apenas distingue diferentes tipos de causas, mas também ressalta que um mesmo objeto pode ter uma multiplicidade de causas simultâneas, e isso não ocorre de forma acidental, como ele afirma:
Provavelmente estese são todos os significados de causa. E justamente porque a causa se entende em muitos significados, segue-se que existem muitas causas do mesmo objeto, e não acidentalmente. Por exemplo, tanto a arte de esculpir como o bronze são causas da estátua, considerada sob diferentes aspectos, mas justamente enquanto estátua; todavia ao são do mesmo modo, causas, mas é causa como matéria e outra como princípio do movimento. (Metaph. V, 2, 1013b, p.191-193).
Esse princípio citado por Aristóteles demonstra o exemplo da estátua: tanto o escultor (causa eficiente) quanto o bronze (causa material) são responsáveis por sua existência enquanto estátua. No entanto, as causas referidas não operam da mesma forma; uma atua como substrato físico, enquanto a outra representa o agente da transformação. Dessa maneira, as causas se relacionam de maneira interdependente, cada uma contribuindo para a compreensão do ser de modo distinto.
Aristóteles, ainda argumenta que há causas que são recíprocas, em que um fenômeno pode ser tanto causa como efeito. Ficando evidente ao dizer que “O exercício físico, por exemplo, é causa de vigor e este é causa daquele, mas não do mesmo modo: o vigor é causa do fim, o outro enquanto princípio de movimento” (Metaph. V, 2, 1013b, p. 193). Seu dizer faz compreender que o exercício físico gera vigor (causa eficiente), mas o vigor, pode ser dado como causa final, pois ele representa o objetivo que orienta a prática do exercício. Com esse aspecto fica evidenciado a complexidade do conceito de causalidade em Aristóteles, onde uma relação pode ser analisada sob diferentes perspectivas causais.
Outro ponto relevante abordado por ele é sua concepção da possibilidade nas causas, de uma mesma coisa ser causa de contrários. Ele exemplifica essa ideia ao afirmar que a presença de um piloto do navio é causa da salvação, enquanto a ausência do mesmo pode ser causa do naufrágio:
De fato, aquilo que com sua presença é causa de alguma coisa, às vezes é causa do contrário com sua ausência. Por exemplo, a ausência do piloto é a causa do naufrágio; a sua presença, ao contrário, é a causa de salvação. Tanto a presença como a ausência são causas motoras. (Metaph. V, 2, 1013b, p.193).
Com esse raciocínio Aristóteles demonstra que a causalidade não opera de maneira linear ou mecânica, mas dentro de um contexto dinâmico, no qual a relação entre causa e efeito pode se inverter dependendo das circunstâncias.
Aristóteles ainda sistematiza sua teoria das causas, reduzindo-as à multiplicidade de significados a quatro tipos fundamentais:
As causas de que falamos reduzem-se a quatro tipos. De fato, as letras das sílabas, a matéria dos artefatos, o fogo, a terra e todos os outros corpos, como estes, as partes do todo e as premissas das conclusões são causas no sentido de que são aquilo que as coisas derivam. (Metaph. V, 2, 1013b, p.193).
Essa classificação estabelece então que as causas podem ser vistas como substrato material (causa material), estrutura essencial (causa formal), princípio do movimento ou da mudança, (causa eficiente) e finalidade ou propósito (causa final). Como exemplo já citado neste trabalho, referente à causa eficiente, pode-se agora apresentar de forma mais abrangente o caso de um vaso de cerâmica. O barro é sua causa material, pois constitui a substância de que é feito; a forma do vaso, que define seu formato e sua funcionalidade, é a causa formal; o oleiro, ao moldar o barro e transformá-lo em vaso, representa a causa eficiente, pois realiza a passagem da matéria de um estado potencial para um estado atual; e, por fim, a utilidade do vaso, seja como objeto decorativo, seja para armazenar líquidos, corresponde à causa final.
Aristóteles ainda amplia essa concepção ao afirmar que:
Todas as causas se reduzem a seis, e cada uma delas, ulteriormente é entendida num duplo sentido. Elas são causas ou (1) como particular ou (2) como gênero, ou (3) como acidente ou (4) como gênero do acidente, ou (5) como combinadas umas a outras ou (6) como tomadas a cada uma por si; e todas elas são estendidas (a) ou como em ato ou (b) como em potência. (Metaph. V, 2, 1014a, p.195).
Essas distinções mostram que a mesma coisa pode ter múltiplas causas dependendo da perspectiva que é adotada. Dessa forma, Aristóteles não apenas sistematiza as causas, mas também estabelece um modelo de explicação que influencia a ciência e a filosofia até hoje, permitindo uma compreensão profunda da realidade e de seus processos de mudanças. Com seu pensamento, demonstra que a causalidade é um conceito complexo e dinâmico, onde diferentes fatores se interagem dando sentido ao mundo natural e à experiência humana.
Além desta classificação fundamental, Aristóteles distingue as causas em ato e potência. As causas em ato existem simultaneamente com seus efeitos, como um médico que está curando um paciente. Já as causas em potência não precisam estar presentes no momento do efeito, como um arquiteto que projetou uma casa e que não está mais envolvido na sua construção, como afirmado pelo filósofo:
Porém, estes diferem no seguinte: as causas em ato e as causas particulares existem ou não existem contemporaneamente às coisas das quais são causas; por exemplo, este médico particular que está curando e este paciente particular que é curado, ou este arquiteto particular que está construindo e esta casa que está em construção. Ao contrário, para as causas em potência não é sempre assim: de fato, a casa e o arquiteto não perecem ao mesmo tempo. (Metaph. V,2, 1014a, p.195).
Fica evidente que, ao concluir a distinção entre causas em ato e causas em potência, Aristóteles nos oferece uma compreensão mais profunda do ser e do agir no mundo. As causas em ato se manifestam de forma imediata, enquanto as causas em potência representam uma relação mais distante. Essa distinção nos permite perceber a profundidade da reflexão aristotélica, que não se limita apenas aos processos imediatos da realidade, mas também às potencialidades que envolvem a construção e transformação contínua do ser humano, da natureza e do mundo.
Conclusão
Em suma, o livro Delta da Metafísica de Aristóteles nos traz a complexidade dos conceitos de princípio e causa. As seis análises do termo “princípio” demonstram sua capacidade de conceituar as diversas formas pelas quais a origem pode ser compreendida. Assim como os conceitos de causa evidenciam a multiplicidade das explicações possíveis.
Ademais, podemos constatar a consistência e a sistematicidade com que o Estagirita aborda esses conceitos cruciais da filosofia. A clareza e a precisão com que Aristóteles denomina esses termos fundamentais continuam a influenciar a filosofia e a ciência.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Metafísica: texto grego com tradução ao lado. Tradução: Marcelo Perine. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2015.
ARISTÓTELES. Metafísica: Sumários e Comentário. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
BERTI, Enrico. Estrutura e significado da Metafísica de Aristóteles. Tradução: José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2012.