Bruno Viana Campos
A capacidade racional do homem é o principal elemento que o diferencia dos demais animais. A linguagem, que é uma das dimensões da racionalidade, desenvolveu-se e se aprimorou ao longo do processo evolutivo humano. Por isso, inúmeros estudos foram feitos sobre ela, tendo como enforque sua origem, seu desenvolvimento e sua relação com a sociedade. Alguns autores se destacaram nessas reflexões, como, por exemplo, o filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) em seu livro Ensaio sobre a origem das línguas (1759).
Rousseau relata, na referida obra, que é a linguagem que diferencia os homens dos animais [1]. Ela, além de ser expressão do pensamento humano, pode dividir-se basicamente em duas formas: através dos gestos (artes pictóricas, símbolos, gesticulações etc.) ou da articulação de diferentes sons (a voz). Ambos – os gestos e os sons – podem ser detectados também nos animais, mas estes seguem uma determinação natural, pois a linguagem dentro de uma espécie, aparentemente, não muda.
Os homens, por outro lado, desenvolveram o que Rousseau chama de linguagem de convenção [2] (gestos e palavras), que, embora sirva muitas vezes de empecilho para a sua comunicação, possibilita que haja progresso na língua, já que a mesma não está delimitada pela predeterminação natural, mas é desenvolvida e aprimorada ao longo dos tempos. Por conseguinte, Rousseau passou a especular sobre o motivo pelo qual o homem desenvolveu a sua linguagem de convenção, já que ela é unicamente dele.
Com efeito, tanto os animais quanto os homens possuem praticamente as mesmas necessidades físicas. Por isso, estas não poderiam ser a causa determinante da linguagem de convenção. Rousseau, contudo, apresenta uma faculdade que é, de certa forma, própria do homem: os sentimentos [3]. Estes possibilitaram o desenvolvimento daquela linguagem, pois as primeiras línguas certamente tinham o intuito de falarem de sentimentos, como os usados no ato de expulsar um intruso, de repelir uma injusta acusação, ou seja, de expressar os anseios de qualquer convívio social. As necessidades físicas repeliam os homens (fome, frio, sede, etc.), mas os sentimentos os reuniam, pois era necessário um convívio social para superar as dificuldades da natureza [4].
Além disso, Rousseau observava uma diferença entre as línguas do hemisfério norte e as do sul: estas eram pronunciadas por homens que não enfrentavam comumente as dificuldades da natureza e, por causa disso, elas teriam uma sonoridade macia, melodiosa, calma e amigável; já os homens que habitavam o hemisfério norte, enfrentavam pesadas intempéries naturais (frio, gelo, rigorosos invernos) e, por isso, tinham uma linguagem mais áspera e maior necessidade de convívio social. Consequentemente, as línguas do norte tenderiam a se desenvolverem mais eficazmente para serem mais exatas e atenderem as exigências da comunicação que aumentavam de acordo com a expansão do convívio social [5].
Do mesmo modo, Rousseau acreditava que, no princípio da humanidade, foi necessário que o homem reconhecesse o seu semelhante para ter sentimentos de empatia e criar vínculos afetivos que fossem além dos familiares [6]. Por isso, quando os homens tiveram consciência dos seus semelhantes, puderam raciocinar sobre o convívio social (o outro com os mesmos sentimentos que eu) e se associarem para superarem as adversidades da natureza [7]. Foi desse modo, enfim, que a língua falada se desenvolveu até ser inventada a língua escrita, criada para facilitar a comunicação, tornando-a mais objetiva e clara (aperfeiçoamento da gramática e da lógica, pois se fala de sentimentos, mas se escrevem idéias). Observa-se ainda que tanto a escrita quanto a fala estão em constante mudança, já que ambas têm o escopo de atender à comunicação, que é dinâmica [8].
Tendo em vista toda a trajetória feita pela linguagem, Rousseau conclui que o progresso dessa se deu sobretudo de acordo com as necessidades ligadas aos sentimentos do homem [9], além da mesma nascer com a liberdade dos homens em se expressarem, visto que os mesmos eram livres para se comunicarem. Não obstante, Rousseau, no último capítulo da referida obra, decidiu analisar qual a relação entre a linguagem, sociedade e governo.
De fato, segundo Rousseau, num estado tirânico, não há espaço para a liberdade. A linguagem que se originou na forma de um instrumento para a livre comunicação, foi substituída pela força repressiva e pela corrupção. O homem se tornou alienado e sua língua passa a ser apenas “sussurro dos sofás” [10] e estranha para si e para os seus próprios concidadãos.
Nos estados despóticos, a única linguagem que prevalece é a repressiva e alienante, uma vez que o discurso que pode ser dito é o sermão, ou melhor, os discursos autoritários. Desse modo, um orador pode proclamar a sua fala durante horas, mas a maioria das pessoas ali presentes não sabe a respeito do que foi dito, pois as suas palavras eram vazias de conteúdo, não expressavam o verdadeiro sentimento que havia no povo reprimido: a ânsia por liberdade. Por isso, quando as línguas são ditas de forma livre, multidões ouvem atentamente os oradores. Porém, em um contexto de repressão, as palavras dos déspotas se tornam infrutíferas e inaudíveis pelo povo [11].
Portanto, Rousseau encontra uma relação entre costumes e atitudes de um povo com a sua respectiva língua, relação essa que se origina na condição livre do homem. A linguagem expressa, enfim, a liberdade: se o homem for reprimido de forma autoritária, a sua linguagem será vazia, monótona, própria de alguém que tem medo de exprimir a sua opinião; por outro lado, se o homem tiver condições de se expressar sem receios, ele certamente terá uma linguagem aberta e eloqüente, própria do ser humano livre e responsável pelo seu pensar e seu agir [12].
Referências
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: vol. II, de Spinoza a Kant. São Paulo: Paulus, 2005.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre o entendimento das línguas. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores).
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1 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 159.
2 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 163.
3 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 163.
4 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 180.
5 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 184-185.
6 No início da humanidade, a organização social se limitava ao círculo familiar. Não havia a idéia de nação ou tribo formada por diferentes famílias.Cf. ROUSSEAU,1978, p. 183.
7 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 181.
8 Houve uma passagem do homem caçador para pastor e deste para agricultor (deixou de ser nômade). Ao mesmo tempo, o homem desenvolveu sua capacidade de comunicação, passando de uma linguagem simplesmente sonora para uma mais complexa, perpassando pela criação de uma linguagem escrita e lógica. Da relação entre diferentes povos, as línguas primitivas se fundiram com o objetivo de se aprimorarem e se tornarem mais claras e abrangentes dentro de um círculo social. Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 170-171.
9 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 198.
10 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 199.
11 Cf. ROUSSEAU, 1978, p. 199.
12 Tal reflexão de Rousseau deixa transparecer os ideais de liberdade – sobretudo social – que se difundiam largamente na época da Ilustração e posteriormente.
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Parabéns Bruno, pelo seu artigo sobre Rousseau.
Vejo que você foi preciso ao descrever a diferença
das línguas nórdicas das línguas, digamos, meridionais, se é que podemos usar tal nomenclatura em Rousseau. E, como não podia deixar de aparecer, a percepção de uma tal linguagem dentro da questão política, marca de Rousseau, como também dos iluministas de seu tempo.
Continue pesquisando e trabalhando. Você vai longe…
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Olá, adorei a materia sobre o ROUSSEAU.
Preciso copia-lá, favor é possivel me enviar por e-mail para eu imprimir……..
Grata desde já….
meu msn é :
cassildagr@hotmail.com
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Um bom artigo! Conseguiu esclarecer alguns pontos sobre Rousseau e a linguagem de uma forma bem simples e acabou me ajudando muito.
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Parabéns! Esse artigo sobre Rousseau clareou um pouco a minha
ideia a respeito do tema do meu TCC.
Valeu mesmo!!!
Um grande abraço,
Anabel – Estudante de Letras – UFAL
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Ontem li a origem das palavras e fiquei impressionada com seu artigo foi claro e sucinto.
Parabéns.
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Redação clara e simples, sem perder a profundidade do texto original. Parabéns!
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Obrigado por prestigiarem o blog e meu artigo, estou grato pelas considerações.
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Parabéns Bruno!
Seu artigo é maravilhoso.
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Gostei muito do artigo, ajudou muito a entender sobre Rousseau.
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obrigado mais uma vez por prestigiarem o blog e meu artigo, estou sempre a disposição!!!
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Muito bom!!!