Wanderson Alves de Melo
Tendo-se uma visão mais aprofundada da filosofia de Montaigne (1533 – 1592), percebe-se que seu interesse é voltado para o estudo do eu, não como substância espiritual, mas como caráter, centro unitário das mais variadas experiências humanas. Tudo parece estar incerto, como: os sentidos enganam, a razão se perde como um labirinto sem fim, a moral muda com o tempo e o lugar. É neste momento que aparece a fé, mas uma fé onde Deus serve ao homem. O que emerge em Montaigne no contexto da Renascença é a valorização da liberdade e da participação do homem na sociedade.
Os escritos de Montaigne, os Ensaios, estão destinados para o homem e não para Deus, por isso neles defende os filósofos antigos ao afirmar que o conhecimento do homem tem o objetivo de alcançar a felicidade. A inscrição “conhece-te a ti mesmo” contida no templo de Delfos, assumida por Sócrates e por muitos pensadores antigos, torna-se para Montaigne o verdadeiro filosofar.
Compreender essa noção de “conhece-te a ti mesmo” está para além do ser pessoal e da sua essência. O homem conhece a si próprio através do outro, convivendo e refletindo as experiências. Porém não é possível definir preceitos para todos os homens devido a sua diversidade, é preciso que cada um construa uma sabedoria à sua própria medida. Cada um só pode ser sábio de sua própria sabedoria.
Os sábios devem procurar rejeitar todo argumento contra a vida, aceitando tudo aquilo de que a vida é feita: dor, doenças, morte. Saber morrer também faz parte do viver. O homem sábio é aquele que sabe ser lógico consigo mesmo e que outra coisa não faz senão o desejo de ter uma vida “selvagem”.
Analisando-se um de seus Ensaios, mais precisamente o capítulo trinta e um do primeiro livro, intitulado “Dos canibais”, é perceptível a visão de Montaigne a respeito do homem em sociedade: a partir dos fragmentos dos primeiros filósofos, faz uma comparação da sua existência no mundo antigo e sua mudança no decorrer da história através da transformação da natureza.
Montaigne comenta sobre o alcance da descoberta do Novo Mundo, que havia recebido o nome de França Antártica. O ajudante de Montaigne o informava sobre os acontecimentos e levava até ele pessoas que o ajudariam na comparação dos mundos (velho e novo) e dos povos (civilizado e selvagem). Trata-se dos habitantes de uma tribo brasileira, conhecida como Tupinambás, os quais não conheciam nada, como: estudo, comércio, literatura, matemática, hierarquia política, domesticidade, nem ricos, nem pobres. Exclusivamente não se ouvia mentira, avareza, inveja, traição, calúnia, perdão. E mesmo assim para os navegadores, aquele tipo de civilização estava longe da perfeita República descrita pelos antigos. Mas Montaigne reconhece que de selvagem aquela tribo não tinha nada. Pois selvagem é aquilo que está da mesma forma que a natureza fez, não houve alteração.
Era difícil ver entre aqueles povos um enfermo ou epiléptico curvado pela idade. A comida, a bebida e moradia eram de perfeita qualidade. As atividades eram bem dividas entre os homens e mulheres. Quando se chegava à velhice, os idosos tinham como tarefa pregar aos ocupantes dos barracões a valentia diante dos inimigos e a amizade a suas mulheres. Eles acreditavam na imortalidade da alma a ponto de afirmarem que as almas que são aprovadas por Deus ficam no céu no lado do nascente, enquanto as amaldiçoadas do lado do poente.
Montaigne aponta ainda que para eles a mentira tinha sua punição. Infeliz daquele que mentir. Pois adivinhar é dom de Deus e mentir é uma postura merecedora de castigo. Esses eram punidos de forma assustadora, eram amarrados no carro de boi e queimados. Os guerreiros das montanhas ignoram a fuga do medo. Os troféus são as cabeças de seus adversários, que eram amarradas na entrada de suas casas. Era de tamanha crueldade a atitude, mas era a forma que as autoridades tinham de cobrar daqueles guerreiros tal forma de vida. A seu modo de ver, Montaigne afirma que o valor de um homem está no seu caráter e força de vontade. A valentia não depende do físico, mas da coragem. Com isso, percebe-se que os mais valentes são os mais infelizes, pois eles fazem com que haja mais derrotas gloriosas do que vitórias. A verdadeira vitória reside na maneira de combater e não no resultado final.
Observa que existe entre nós gente bem alimentada, aproveitando as comodidades da vida, enquanto muitos homens desfavorecidos mendigam à porta dos outros! O pior de tudo é que essa concepção de mundo está nas mãos das autoridades que acham extraordinário que os desfavorecidos suportem tanta injustiça sem se revoltarem a ponto de agirem agressivamente contra a sociedade. Diante de toda essa história de velho e novo mundo, Montaigne chega à conclusão de que os costumes foram corrompidos gerando a desigualdade social.
Referências
DROIT, Roger-Pol. A conpanhia dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MONDIN, Battista. Curso de filosofia. 5.ed. São Paulo: Paulinas, 1981.
MONTAIGNE, Michel de. Dos canibais. In: Ensaios, I. São Paulo: Victor Civita, 1972. p. 104-110. (Os Pensadores)
PADOVANI, Umberto; GASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. 15. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1993.
REALE, Geovanni; ANTISERI, Dário. História da filosofia. 6. ed. São Paulo: Paulus, 2003.
#
Um amigo acaba de me enviar um intrigante texto sobre CULINÁRIA:
“As pessoas eram, de fato, aferventadas em caldeirões e assadas no espeto, na grelha ou por exposição a um fogo aberto. Também foram assadas no vapor, cozidas em pedras preaquecidas e em fogões de terra, defumadas, decompostas primeiro, ressecadas, pulverizadas, postas em conserva, enfiadas em tubos de bambu e colocadas nas brasas, seus ossos queimados até se transformarem em cinzas e misturados a muitos tipos de molhos, sucos e mingaus. Um corpo podia ser enterrado e depois exumado e comido em seu estado de podridão.” (VISSER, Margaret. O Ritual do Jantar. Rio de Janeiro: Campus, 1998, p. 16.)
São os primórdios da ANTROPOFAGIA…
#
Após ler este trabalho fiquei pensando nas palavras que ficaram na minha mente: eu – caráter – felicidade – sabedoria – valentia – coragem.
A felicidade que tanto buscamos não está longe de nós, como um grande sonho que passamos a vida inteira perseguindo, mas ela está aqui, bem dentro de nós.É a sabedoria de saber viver, de enfrentar com coragem os nossos medos, fracassos e sermos fortes para morrer ou viver por aquilo em que acreditamos ser o melhor para nós.