Rodrigo Artur Medeiros da Silva
Embora Henri Bergson (1859-1941) talvez não seja muito conhecido e, consequentemente, comentado nas cadeiras filosóficas discentes da contemporaneidade, trata na sua obra “Matéria e memória” de um dos principais problemas enfrentados pela filosofia: a relação do transcendente com o imanente, através do corpo com o espírito.
A obra “Matéria e memória”, sobretudo na primeira parte cujo objetivo principal é mostrar o papel do corpo na seleção e, posteriormente, na representação das imagens, privilegia a memória[1]. Esta, segundo o autor, é estudada como uma ponte para a compreensão da relação corpo-espírito; deste modo, a superação das dificuldades do dualismo clássico, como pretende o autor sem, porém, descartar as dificuldades de um monismo simplificador[2], pode ser concebida e até mesmo aceita mais facilmente.
Bergson não conceitua a matéria como algo misterioso, como ideia que transcende a representação humana[3]. Matéria, nesta obra, é entendida como conjunto de imagens existentes que podem ser vistas a olho nu; haja visto que começa seus escritos propondo uma seleção de imagens para que, posteriormente, o cérebro as represente. Para selecioná-las, o autor parte do pressuposto de que não conhece nada acerca das teorias da matéria bem como do espírito. Ora, para que algo seja selecionado, necessariamente, deve ser cognoscível. Logo, a seleção de imagens começa de seu próprio corpo devido, para este poder ser conhecido até mesmo em se tratando das “doenças interiores[4]”.
Todavia, o modo como essas doenças instauram-se no corpo humano deve ser examinado a fim de que, posteriormente, seja descoberto como elas se intercalam entre estímulos extrínsecos e movimentos que ainda serão executados visto que, segundo Bergson “o corpo pode e consegue causar mudanças nas imagens que o circundam[5]”. “O corpo é uma imagem que atua como todas as outras no mundo das matérias(…) Contudo, é uma imagem que se difere das demais por poder desenvolver o que recebe[6]”.
É possível que Bergson, ao defender este ponto de vista, esteja enfatizando a dimensão da racionalidade humana; isto se confirma, pois ao que parece, o autor tem traços racionalistas. Tanto é que o mesmo faz uma divisão e, ao mesmo tempo, uma distinção do conceito de memória: “a memória pura que é entendida como atividade espiritual, e a memória-hábito, de essência mecânica e material”[7]. A última tem como função primar pela adaptação dos comportamentos humanos em seu ambiente de vivência, enquanto a primeira conscientiza cada indivíduo sobre a importância do voltar ao passado.
E arraigado à totalidade do conceito de memória, Bergson ressalta a importância do cérebro. Este, segundo o autor, “não é – de modo simplista – o órgão da memória; em primeiro lugar porque não existe a memória (existem duas), e em segundo lugar porque Bergson acha inválida uma teoria das localizações”[8].
Se o cérebro se tornar algo análogo, em sua essência, não haveria representação de nenhuma imagem da matéria, pois “não há como buscar no movimento outra coisa além daquilo que não se vê”[9]. Dito isto, fica perceptível que “um dos papéis do cérebro é selecionar, conduzir ou inibir o corpo a movimentos”[10]. Também são confiadas às responsabilidades do cérebro as percepções, visto que estas dependem indubitavelmente dos nervos cerebrais – centrípetos e centrífugos – cujas funções são, respectivamente, o impulso de estímulos[11] para o centro[12] e a filtração, a absorção desses estímulos na razão.
Daí percebe-se, por hora, que as percepções humanas não dependem somente dos movimentos cerebrais, mas também da percepção da matéria: “a matéria compõe a memória”[13]. Porém, partindo do pressuposto bergsoniano de que o corpo é o centro de toda matéria, e não se podendo negar a existência de vários corpos, poderia então ser dito que cada corpo ao relacionar-se consigo mesmo influiria na forma comportamental dos outros corpos; diga-se de passagem: uma relação entre causa e efeito, sendo este proporcional a causa.
“Como se explica que as mesmas imagens possam entrar no mesmo tempo em dois sistemas diferentes, um onde cada imagem varia em função dela mesma e na medida bem definida em que sofre a ação real das vizinhas, o outro onde todas variam em função de uma única, e na medida variável em que elas refletem a ação possível dessa imagem privilegiada?”[14]
Trata-se de uma problemática do bergsonismo acerca da seleção das imagens. Bergson, como já fora citado, tenta combater uma dualidade entre o idealismo – matéria da memória – e o realismo – memória da matéria – uma vez que ao entender o primeiro, se voltado para o subjetivismo como aquele que tenta fazer com que a ciência seja causa da consciência, e o segundo como a separação desta causalidade, consequentemente a problemática da dualidade consegue ser decifrada, entendendo que simplesmente um tenta deduzir o outro.
O realista, apesar de partir do universo de imagens, de certa forma negando a centralidade de cada humano, é obrigado a constatar o “centro”, ao constatar as percepções. Daí parte o idealista, o qual centraliza as imagens a partir do seu corpo. Se o idealista quiser se remeter ao passado ou programar o futuro, terá que abandonar a idéia de corpo como centro das imagens e, ademais, deixar que a estrutura corpórea viva em função das demais matérias. Porém, pensando-se desta forma, poderia inferir como conclusão que tanto o pensamento idealista quanto o realista bastar-se-iam por si próprios.
Daí percebe-se, pois, que estas duas doutrinas – idealismo e realismo – exigem sobremaneira a percepção a qual, para Bergson, é entendida como conhecimento puro. É o que dá a entender o exemplo dos movimentos corpóreos, tratado em “Matéria e memória”: “(…) para que o corpo se movimente, é necessário o cérebro conhecer cada movimento a seu devido tempo, independentemente de conhecer a estrutura corpórea em sua totalidade”[15].
Esta argumentação se fundamenta, visto que ao partir do pressuposto de que o cérebro, tendo a função de comunicar, capta o que percebe. Ora, se uma ação pensante for indeterminada, pode ser justificada num erro de percepção do cérebro. E se percepção implicar lembranças, para que uma determinada coisa seja percebida, é necessário ao cérebro remeter-se ao passado. Logo, percepção será uma forma de explicar o presente através do passado. E é exatamente contra este tipo de argumentação que Bergson trabalha.
“Matéria e memória” propõe ao cognoscente no ato da seleção de imagens, que não se trabalhe apenas com a percepção no sentido de remeter-se ao passado, mas com a percepção pura, capaz de perceber, sobretudo, o presente, o momento do ato intelectivo. Para que a percepção se fite na imagem em sua totalidade, é necessário que, paulatinamente, o sujeito cognoscente faça as devidas críticas e diferenciações no objeto cognoscível.
Ainda com relação à percepção, Bergson trata de fazer uma diferenciação pedagógica acerca da conceituação da mesma; difere-as em percepção consciente e inconsciente. Como fora dito, essa diferenciação é dada apenas a título de maturação de conceito e aprofundamento de pesquisa sobre a importância da relação corpo e espírito a partir da seleção de imagens.
A visão bergsoniana sobre percepção consciente não é muito otimista. Há, segundo o autor, um empobrecimento considerável em se tratando de percepção consciente, uma vez que esta vislumbra a princípio o exterior, descartando a parte interior da matéria, na qual pode estar a essência, guardadas as suas devidas proporções. Logo, a percepção inconsciente é opostamente analisada à primeira.
Porém, o autor em sua análise positivifica algo no empobrecimento da percepção consciente, visto que através desta é que pode ser feito um discernimento sobre algo[16]. Enxerga uma correspondência rigorosa entre “percepção consciente e modificação cerebral”[17]: o cérebro sofre modificações no momento em que percebe algo de conturbado na matéria selecionada. E dessa correspondência é que advêm a indeterminação do querer.
E ainda, já quase fundamentando o seu pensamento acerca do papel do corpo na seleção das imagens, Bergson tenta desmistificar uma possível confusão psicológica que, a seu ver, pode existir entre a percepção pura e a memória. Parte do ponto de que os sentidos humanos têm necessidade de uma educação arraigada, referindo-se à percepção da matéria. Esta educação é que diferenciaria a memória no ato da percepção.
Tendo em vista que nenhum sentido consegue perceber imediatamente as coisas, chega-se às seguintes conclusões: somente com uma educação maturada é que os sentidos conseguirão perceber cada objeto em sua totalidade; alguns dos sentidos só conseguirão funcionar mais facilmente, captar o cognoscível, a partir do momento em que os nervos ópticos captarem, sobretudo, a essência da imagem e, por fim, que cada um dos sentidos tem a sua ação própria.
Conclui-se, portanto, que “percepção e matéria não devem simplesmente ser postos em paralelo”[18]. Ao contrário, o cérebro e a matéria devem relacionar-se, intrinsecamente, pois de outra forma, não haveria como classificar sequer o corpo como matéria, visto que para esta ser entendida e, posteriormente, classificada de antemão deve ser percebida.
Referências
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
G. Deleuze, Le bergsonisme, P.U.F, 1989. Disponível em www.acafif.com.br. Acesso em: 24.mar.2010.
[1]DELEUZE, 1989.
[2] Idem
[3] Idem
[4]Na obra, segundo DELEUZE-1989, entendidas como doenças do espírito.
[5] BERGSON, Henri. 1990. P.12
[6] Idem
[7] G. Deleuze, Le bergsonisme, P.U.F, 1989.
[8] Idem
[9] BERGSON, Henri. 1990. P.14
[10] Idem
[11] Bergson-1990, entende estes como movimentos moleculares.
[12] Bergson-1990, entende este conceito como razão, a qual possibilita as percepções.
[13] BERGSON, Henri, 1990. P.15
[14] BERGSON,Henri, 1990. P.13
[15] BERGSON, Henri. 1990. P.19
[16] Entendido em “Matéria e memória” como indeterminação do querer.
[17] BERGSON, Henri. 1990. P.29
[18] G. Deleuze, Le bergsonisme, P.U.F, 1989.