Marcelo Geraldo de Oliveira
Em sua obra A condição pós-moderna, Jean-François Lyotard[1] aponta que o objeto de seu estudo é a modificação na natureza mesma da ciência (e da universidade) provocada pelo impacto das transformações tecnológicas sobre o saber, nas sociedades pós industrial mais desenvolvidas, denominadas cultura “pós-moderna” a partir do final do século XX. A palavra “pós-moderna” foi utilizada no continente americano, por sociólogos e críticos.
A crítica pós-moderna rumo à modernidade trouxe consigo discussões em torno de alguns pressupostos básicos da tradição iluminista. Dentre eles, encontram-se as noções de filosofia da história, de sujeito e de valores. Estamos vivendo um momento histórico conturbado em que não só a filosofia da história, mas também a razão e a subjetividade, os fundamentos e os valores, as identidades e as certezas se tornam ambíguos. O saber é legitimado por um “metarrelato” que implica em uma filosofia da história com conceitos de justiça e verdade pré-determinadas. O livro de Lyotard se propõe, precisamente, a desvendar os caminhos do saber nas sociedades informatizadas e da deslegitimação das grandes narrativas modernas como passaremos a demonstrar.
A hipótese de trabalho de Jean-François Lyotard é a mudança do estatuto do saber nas sociedades pós-industriais e a cultura pós-moderna ou sociedade informativa. Esta passagem teve início no final dos anos 50, deixando marcado para a Europa o fim de sua reconstrução. Foi uma modificação rápida conforme os países e, nos países, conforme os setores de atividade: donde uma discronia geral, que não torna fácil o quadro de conjunto.
O saber científico está intimamente ligado ao discurso. Percebe-se que há mais de quarenta anos que as ciências e as técnicas versam sobre a linguagem. Nas palavras de Lyotard:
A fonologia e as lingüísticas, os problemas da comunicação e a cibernética, as matemáticas modernas e a informática, os computadores e suas linguagens, os problemas de tradução das linguagens e busca de compatibilidades entre linguagens-máquinas, os problemas de memorização e os bancos de dados, a telemática e a instalação de terminais ‘inteligentes’, a paradoxologia eis aí algumas provas evidentes, e a lista não é exaustiva.[2]
Existem informações tecnológicas sobre o saber que devem ser levadas em consideração. Ele é ou deve ser afetado em suas duas principais funções: a pesquisa e a transmissão de conhecimentos. Com relação à pesquisa, um exemplo é a genética, que deve seu paradigma teórico à cibernética. Quanto à transmissão de conhecimentos, hoje em dia já se sabe como normalizando, miniaturizando e comercializando os aparelhos, mudam-se as operações de aquisição, classificação, acesso e exploração dos conhecimentos. Essa multiplicação de máquinas informais afeta e afetará a circulação dos conhecimentos, o desenvolvimento dos meios de transportes, dos sons e das imagens.
Diante dessas transformações, a natureza do saber não permanece intacta. Ele não pode se submeter aos novos canais e tornar-se operacional, a não ser que o conhecimento possa ser traduzido em quantidades de informação. Prevê-se então que tudo o que no saber constituído não é traduzível será deixado de lado, e que com as novas pesquisas se subordinará à condição de tradutibilidade dos resultados eventuais em linguagem de máquina. Percebe-se então que os produtores e os utilizadores do saber devem e deverão ter os meios de traduzir nestas linguagens o que alguns inventam e outros aprendem. Com a hegemonia da informática, impõe-se uma certa lógica e, consequentemente, um conjunto de prescrições que versam sobre o saber.
Espera-se uma explosiva exteriorização do saber em relação ao sujeito que sabe, em qualquer ponto que este se encontre no processo de conhecimento. O antigo princípio segundo o qual a aquisição do saber é indissociável da formação (Bildung) do espírito, e mesmo da pessoa, cai e cairá no desuso.
Outra modificação desse novo universo do saber é a sua transformação radical em valor como mera mercadoria. O saber terá como objetivo da sua produção, o mercado e a troca, tornando secundário o seu valor de uso. Nos últimos decênios, o saber se transformou na principal força de produção e elemento econômico decisivo das populações produtivas nos países em desenvolvimento[3]. Dessa forma Lyotard afirma que:
Na idade pós-industrial e pós-moderna, a ciência conservará e sem dúvida reforçara ainda mais sua importância na disputa das capacidades produtivas dos Estados-nações. Esta situação constitui mesmo uma das razoes que faz pensar que o afastamento em relação aos países em vias de desenvolvimento não cessará de alargar-se no futuro. […] Sob a forma de mercadoria informacional indispensável ao poderio produtivo, o saber já é e será um desafio maior, talvez o mais importante, na competição mundial pelo poder. Do mesmo modo que os Estados-nações se bateram para dominar territórios, e com isto dominar o acesso e a exploração das matérias-primas e da mão-de-obra barata, é concebível que eles se batam no futuro para dominar as informações. Assim encontra-se aberto um novo campo para as estratégias industriais e comerciais e para as estratégias militares e políticas. [4]
Contudo, a “mercantilização do saber não poderá deixar intacto o privilégio que os Estados-nações modernos detinham e detêm ainda no que concerne à produção e à difusão dos conhecimentos”.[5] Em outras palavras, para Lyotard houve uma mercantilização generalizada do saber.
A transformação da natureza do saber exerce um efeito de retorno tal que os obrigue a reconsiderar suas relações de direito e de fato com as grandes empresas e mais especificamente na sociedade civil. A reabertura do mercado mundial, a retomada de uma competição econômica ativa, o desaparecimento da hegemonia do capitalismo americano, o declínio socialista, a abertura do mercado chinês às trocas, e muitos outros fatores, vêm preparar os Estados, no final dos anos 70, para um revisão séria do papel que se habituaram a desempenhar desde os anos 30, que era de proteção e guia, até a planificação dos investimentos. Entretanto, as novas tecnologias, pelo fato de tornarem os dados úteis às decisões (portanto, os meios de controle) instáveis e sujeitas à pirataria, não podem senão exigir urgência deste reexame.
Assim, percebe-se que a informatização tecnológica do saber, ocorrida a partir da revolução industrial, e a telematização, circulação de imagens e sons, determinam a aceleração intensa dos conhecimentos que modificam nossa vida cotidiana, conforme as idéias retratadas por Jean-François Lyotard. Fica-nos uma pergunta: diante disso, é possível acompanhar este movimento constante de tantas informações na sociedade hoje?
Referências
HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna. Tradução: Ricardo Correia. 5 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
MARINHO, Cristiane M. Pensamento pós-moderno e educação na crise estrutural do capital. Tese de Doutorado. UFCZ. Fortaleza- CE, 2008.
[1] HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. p. 636. Filósofo francês, nascido em 1924, em Paris. Professor de filosofia a partir de 1950, obtém doutorado de Estado em 1971. Após dez anos de ensino de filosofia em escolas secundárias (também em Constantina, Argélia, de 1950 a 1952), mais de vinte anos de ensino e pesquisa em estabelecimentos superiores (Sorbone, Nanterre, CNRS, Vincennes) e doze anos de trabalho teórico e prático dedicado ao grupo “Socialisme ou barbárie”, depois a Pouvoir Ouvrier, também foi professor de filosofia na Universidade de Paris VIII (Vincennes, Saint-Denis) e distinguished professor na Universidade da Califórnia, Irvine. Faleceu em 1998.
[2] LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. p. 3.
[3] MARINHO, Cristiane M. Pensamento pós-moderno e educação na crise estrutural do capital. p. 4.
[4] LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna. p. 5.
[5] LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. p. 5.