Daniel Filipe da Silva
Este artigo tem por finalidade apresentar o conceito de Esclarecimento em Theodor W. Adorno e Max Horkheimer[1], segundo o Excurso Primeiro – “Ulisses ou mito e Esclarecimento” – da obra A dialética do esclarecimento publicada em 1947.
O que a expressão Esclarecimento significa se encontra explícito na primeira parte da obra mencionada acima e é intitulada Conceito de Esclarecimento, segundo a qual, “esclarecimento é desencantamento do mundo” (DUARTE, 2004, p.27), pois é uma tentativa de o homem dominar a natureza, vencer as ameaçadoras forças naturais através do conhecimento, i. é, da ciência, da racionalidade, que vem caracterizando o desenvolvimento da civilização ocidental, há séculos (idem).
Porém, segundo Adorno, antes mesmo de a ciência ser usada como uma arma pelo homem, para que ele pudesse intervir nos processos naturais, o ser humano, por meio do feitiço ou por outras ações, acreditava interferir neles.
Inicialmente, afirma-se, de passagem, que, para Adorno, o elemento básico do mito é a projeção do subjetivo na natureza, pois:
O sobrenatural, o espírito e os demônios seriam imagens especulares dos homens que se deixam amedrontar pelo natural […] Todas as figuras míticas podem se reduzir, segundo o Esclarecimento, ao mesmo denominador, a saber, ao sujeito (DUARTE, 2004, p.52).
Adorno, nos primeiros versos do Excurso Primeiro, chama a atenção para a proximidade que há entre a epopéia, que, por sua vez, é um poema longo sobre assuntos grandiosos e heróicos, e o mito, uma vez que, em Homero, ambos – epopéia e mito, forma e conteúdo- confrontam-se e se esclarecem mutuamente e, além disso, “têm de fato em comum: dominação e a exploração” (ADORNO; HORKHEIMER, 1947, p. 55).
Outra semelhança entre epopéia e mito é que neles, de certo modo, o sábio é aquele que, ao mesmo tempo, expõe-se mais audaciosamente à ameaça da morte, na qual se torna duro e forte para a vida (idem, p. 56).
Ulisses, conforme apresentado por Homero na Odisséia, e o viajante civilizado – portugueses e espanhóis – no período colonial são exemplos perfeitos de sábio, posto que, para saírem vencedores nas aventuras, usaram, como recurso, o perder-se para se conservar. Essa astúcia é explicitada no momento em que Ulisses “logra as divindades da natureza como também depois no instante em que o viajante civilizado logrará os selvagens oferecendo-lhes contas de vidro coloridas em troca de marfim” (DUARTE, 2004, p.55).
Deve-se reconhecer, de antemão, que são poucas as vezes em que Ulisses aparece fazendo trocas, a saber: quando se dão e se recebem os presentes de hospitalidade, estes estão a meio caminho entre a troca e o sacrifício, uma vez que se “deve pagar pelo sangue não incorrido seja do estrangeiro, seja do residente vencido pelos piratas para selar a paz” (ADORNO; HORKHEIMER, 1947, p. 57).
Para Adorno, é possível derivar dos sacrifícios a racionalização, pois “o próprio sacrifício já aparece como o esquema mágico da troca racional, uma cerimônia organizada pelos homens com o fim de dominar os deuses” (DUARTE, 2004, p.56).
Crê também que a parte desempenhada pelo logro no sacrifício é o protótipo das astúcias de Ulisses e é exatamente assim que muitos estratagemas são armados à maneira de um sacrifício oferecido às divindades da natureza, p. ex.: Quando os etíopes ofereciam sacrifícios a Possêidon, para que ele não lançasse a sua cólera contra Ulisses (ADORNO; HORKHEIMER, 1947, p. 58).
Nesses sacrifícios, que Possêidon aceitou prazerosamente, já estava envolvido um logro, dado que, para ele se saciar dos bois etíopes, deveria, em troca, dar vazão à sua cólera contra Ulisses (idem, p. 58).
O logro presente no sacrifício, além disso, adquire um elemento do caráter, uma mutilação do herói astuto, arrojado pelo mar, cuja fisionomia está marcada pelos golpes que deferiu contra si mesmo a fim de se auto-conservar (idem, p. 61).
O sacrifício tem uma teoria, que o relaciona à representação do corpo coletivo, da tribo, à qual deve refluir, como força, o sangue derramado do membro da tribo. Também é preciso dizer que, no sacrifício, a racionalidade e a irracionalidade se complementam e, por esta, o princípio do sacrifício se mostra efêmero, porém, ao mesmo tempo, ele perdura por aquela (idem, p. 60).
Quanto ao canibalismo, o qual é difícil distinguir dos sacrifícios, Adorno diz que o caráter ilusório dessa racionalidade bárbara pode ter sido revelado antes da formação das religiões populares. A expressão canibalismo designa o fato de que o coletivo só consegue sobreviver provando a carne humana.
E, no caso dos sacrifícios feitos por Ulisses, afirma que, ao mesmo tempo, ele é vítima e sacerdote, que se sacrifica para abolir os sacrifícios, pois:
Sua renúncia senhoril é, enquanto luta com o mito, representativo de uma sociedade que não precisa mais da renúncia e da dominação: que se tornou senhora de si mesma, não para fazer violência a si mesma e aos outros, mas para a reconciliação (ADORNO; HORKHEIMER, 1947, p. 60).
Já, no que concerne aos presentes homéricos, convém ainda dizer que anunciam o princípio do equivalente e toda navegação na Grécia Antiga mostra isso, pois nela os heróis negociavam com Possêidon, logrando-o:
O hospedeiro recebe real ou simbolicamente o equivalente de sua prestação […] e mesmo que o hospedeiro não receba nenhuma compensação imediata, ele pode ter a certeza de que ele próprio ou seus parentes serão recebidos da mesma maneira (ADORNO; HORKHEIMER, 1947, p. 57).
E quanto às aventuras de Ulisses, nas quais sai vitorioso narradas na Odisséia de Homero, Adorno reconhece que são todas elas perigosas seduções que desviam o eu da trajetória de sua lógica. Ele sempre se cede a cada nova sedução, experimenta-a como um aprendiz incorrigível e é, até mesmo, impelido por uma tola curiosidade. Aqui, a expressão eu designa o ser humano ao qual não se credita mais a força mágica da substituição.
Ele percebe que o mito revela ou descreve o trajeto de fuga de um personagem diante das potências míticas, p. ex.: as obras Ilíada[2] e Odisséia[3], e a oposição entre o eu sobrevivente e as múltiplas aventuras do destino, expressando assim a oposição do esclarecimento ao mito.
Essas oposições são nitidamente reveladas, sobretudo, no episódio da viagem errante de Tróia a Ítaca na obra Odisséia, em que se desvela um caminho percorrido através dos mitos por um homem fisicamente muito fraco em face às forças da natureza (idem, p. 56), mas que faz dos sacrifícios um meio para vencê-las, dominá-las, por sua própria decisão racional.
As viagens descritas na Odisséia foram de grande relevância, possibilitaram a desmitificação da natureza, pois “permitiram ver o lugar com o seu nome e ter uma visão de conjunto e racional do espaço” (ibidem, p.56).
Ao ver de Adorno e de Horkheimer, no mito, todos os personagens têm o seu papel a ser cumprido, dado que cada um “é obrigado a fazer sempre a mesma coisa. Todas elas consistem na repetição” (idem, p. 63).
Porém, é exatamente contra isso que Ulisses vai lutar, procurando romper com todas as relações jurídicas que o encerravam, ameaçavam-no e que, de certo modo, estão inscritas em cada figura mítica.
Mas, para fazer essa ruptura, ele usará de sua astúcia, como se vê no episódio das sereias, no qual Ulisses, preso ao mastro, ouvia a linda canção das sereias, mas não se ajuntava a elas, apesar da violência de seus desejos, posto que, além de ele estar amarado, os seus companheiros, que estavam a remar, tinham seus ouvidos tapados de cera e, portanto, não ouviam nem a canção das semideusas e nem os gritos desesperados de seu comandante (idem, p. 64).
E, por meio de tal astúcia, Ulisses se apercebe do dualismo, quanto à idéia de que a palavra deveria ter um poderio imediato sobre as coisas e, posteriormente, nota também que uma mesma palavra pode significar coisas diferentes, p. ex.: Ulisses se autonomina ninguém ao Ciclope, dado que, por meio de um trabalho racional, descobriu que “o nome Oudesis pode ser atribuído tanto ao herói, quanto a ninguém” (idem, p. 65), o que lhe possibilitou lograr o Ciclope – a quem Homero tacha de “monstro que pensa sem lei”, dado que seu pensamento é, assistemático, rapsódico, pois não foi capaz de se dá conta do sofístico duplo sentido do nome falso dito por Ulisses (idem, p. 69).
Mas, é preciso deixar nítido que o sucesso dessa artimanha só foi possível, porque Ulisses já havia feito o cálculo de que o Polifemo responderia ninguém, quando fosse indagado por sua tribo, quanto ao nome do culpado, e isso ajudaria a ocultar o acontecido, possibilitando-lhe a fuga da perseguição, ‘estabelecendo assim o domínio sobre a natureza’, o que dá a impressão de que seja uma racionalização (idem, p. 71).
Quanto à possível relação entre as palavras Ulisses [Odisseus] e nada [Oudeis], Adorno afirma que elas possuem grafias diferentes, porém a pronúncia é muito semelhante [homófono] e é que é possível imaginar que, em algum dos dialétos, em que se transmitisse a história do retorno a Ítaca, o nome do rei desta ilha fosse de fato um homófono do nome ninguém (idem, p. 71).
Outro episódio no qual Ulisses, mais uma vez, por meio de sua astúcia, consegue lograr a mais uma das potências míticas, que é representada por Circe, que é uma feiticeira que encantava os homens e os transformava em animais, porém Ulisses escapa de sua magia, pois, antes de dormir com ela, ele a faz proferir o juramento dos bem-aventurados, que o protege da mutilação, da vingança, do seu encanto e submetendo-a a seu domínio (idem, p. 74).
Portanto, após ter realizado o objetivo desse artigo, que é o de apresentar o conceito de Esclarecimento em Adorno e Horkheimer, segundo o Excurso Primeiro – “Ulisses ou mito e Esclarecimento”, é preciso dizer que Adorno muito contribui com o seu pensamento para a filosofia, uma vez que procura olhar, com profundidade, para sociedade, o que o torna um pensador ímpar.
O reflexo disso se vê na sua obra A dialética do esclarecimento, a qual é considerada de grande relevância, dado que nela são tratados temas atuais, p. ex.: a devastação da natureza pelo homem, a opressão das mulheres, o racismo e a estultificação das pessoas pelos meios de comunicações sociais, tornando assim a obra, verdadeiramente, ímpar não só no cenário filosófico contemporâneo, mas também em todo o pensamento ocidental (DUARTE, 2004, p.8).
No seu pensamento, vê-se expresso o empenho em se tentar mostrar o quanto, desde o período mítico, o homem vem se esforçando para estabelecer e estender o seu domínio sobre a natureza, i. é, para obter o esclarecimento – o desencantamento do mundo – e que, para a realização desse fim, num primeiro momento, ele usará dos sacrifícios – que é uma forma de lograr as grandes forças naturais (idem, p.56) – e de outros artifícios contando com a sua astúcia, como fez Ulisses, um dos maiores representantes da era mítica.
Outro fato importante é que, ao se estudar a História da Filosofia, recebe-se a afirmação, quase que unanime entre alguns pensadores e comentadores, de que a filosofia – o trabalho racional – surge na passagem do mito ao Logos. Aquele sendo considerado o período infantil do conhecimento, em que o homem não conseguindo explica por via racional os fenômenos humanos e naturais, recorria à imaginação para explicá-los, atribuindo-lhes como causa os deuses. Por outro lado, o logos é exatamente o período em que se busca uma explicação racional para os fatos humanos e naturais, porém, em alguns momentos, recorrendo-se ao mito, p. ex.: Platão com o Mito do Carro Alado[4].
Ou seja, é como se o período mítico fosse um tempo em reinava a irracionalidade e na Era do logos fosse o momento racional. Mas, ao ver de Adorno e Horkheimer, não é bem assim, pois crêem que no mito, já exista um trabalho racional que tem como fim o Esclarecimento – o desencantamento do mundo – uma tentativa de o homem dominar a natureza, vencer as forças naturais ameaçadoras através do conhecimento.
Referências
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. [1947]
DUARTE, Rodrigo Antonio de Paiva. Adorno / Horkheimer e a dialética do esclarecimento. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
MONDIN, Battista. Curso de filosofia: os filósofos do Ocidente. vol.3. Trad. Benôni Lemos. São Paulo: Paulinas, 1983.
[1] Theodor Adorno e Max Horkheimer pertencem à Escola de Frankfurt e são dois amigos que não se limitaram a se encontrar freqüentemente, a participar das mesmas alegrias e das mesmas dores, trocando idéias, discutindo programas e formulando teorias. Além disso, pensaram e escreveram juntos, de modo que, em várias situações, é praticamente impossível estabelecer, com exatidão, qual deles é autor de um escrito ou de uma tese (MONDIN, 1983, p. 259). Nas obras escritas com a colaboração de Horkheimer, Adorno estuda problemas fundamentais, como relativos à natureza do progresso, ao valor da ciência e à estrutura da sociedade, o que torna perceptível que o seu interesse especulativo se estende à sociologia, à estética, à gnosiologia e à ciência. Quanto a esta, faz uma crítica de que “ao invés de extirpar, de vez, a crença e superstição, acaba engendrando uma mitologia” (DUARTE, 2004, p.9).
[2] Ocupa-se da narração da Guerra de Tróia.
[3] Narra o retorno de Ulisses de Tróia a Ítaca.
[4] Por ele, Platão procura explicar a origem da alma e o motivo por que está aprisionada no corpo – compreendido por este filósofo como cárcere da mesma.
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Daniel Filipe da Silva,vc foi intuitivo, simples e direto. Parabéns.