Thiago Gandra do Vale
Uma das maiores buscas do pensamento ocidental foi a questão do ser. Desse modo, diversos pensadores, conforme o seu tempo, ousaram expor tentativas de se pronunciar sobre o ser. É mediante a esta situação que pretendemos desenvolver este artigo, com o intuito de mostrar como Heidegger nos expõe seu pensamento sobre o ser, a partir do aspecto da liberdade de ser.
Em Ser e Tempo (2004, p. 27), logo no primeiro parágrafo, o filósofo da floresta negra inicia afirmando que no solo do pensamento grego se formulou um dogma sobre a questão do ser, e que desde então ninguém percorreu por vias contrárias. Os que se pronunciaram sobre o ser, se fundamentaram em uma metafísica clássica na busca por esse sentido, o de ser e do ser. E é justamente Heidegger que irá propor essa nova forma de se pensar o ser e seu sentido, precisamente após a metafísica sofrer fortes críticas, posteriormente a Kant. Assim, com Heidegger o ser passa a ser buscado mediante a temporalidade, diante de uma hermenêutica fenomenológica que Stein (1988, p. 9) nomeia “encurtamento hermenêutico”.
O pensador alemão tem consciência de que o ser se dá no mundo, porém limitado à temporalidade. Assim, diante disso, ele se desvia da metafísica clássica e sua tradição para analisar o ser a partir de seu método, o “encurtamento hermenêutico”. Com isso, o filósofo da floresta negra fundamenta o seu pensamento ontológico na temporalidade, onde esta o determina a ter consciência dela, mostrando-o que se está sobre suas condições. Mas, como o ser vai ser então nesse mundo? Como ele vai se constituir enquanto ser-no-mundo? Na medida em que obtiver a consciência dele, da sua finitude e a liberdade para ser nele, o ser se construirá enquanto um ser-no-mundo.
É justamente a liberdade que irá conduzir o ser, e, portanto, deixá-lo ser. O que houve durante o transcorrer da história da humanidade é que nós limitamos o ser com ditames que surgiram de acordo com o seu tempo. No período grego não se detinham espaço para a individualidade do sujeito. A liberdade era vivenciada na pólis, na democracia. No período medieval a liberdade estava condicionada a Deus e a participação de sua bondade. E na modernidade há um egocentrismo exacerbado, que se fluiu pela história e influenciou a contemporaneidade (ABBAGNANO, 2007, p. 605-613). Quem está certo afinal de contas? Que cada um tome por si a melhor resposta a essa questão, pois nosso intuito aqui será apenas provocá-las.
A liberdade que Heidegger irá propor-nos ao ser, em A Essência do Fundamento é de deixá-lo ser e juntamente nós também sermos. “Somente a liberdade pode deixar um mundo dominar e mundificar o estar-aí” (HEIDEGGER, s.d. p. 87). Para se chegar a essa liberdade, o pensador alemão nos propõe uma transcendência, mas não no âmbito de irmos além desse mundo como queria Platão, mas no sentido de irmos ao abismo do mundo, no seu mais puro vazio, onde há o espaço para tudo criar e originar-se, onde tudo pode ser em sua ipseidade. Esse ir ao fundo do mundo é a própria liberdade, uma liberdade de não ter fundamento. “A liberdade é o abismo que se des-funda.” (PAIVA, 1998, p. 124).
O que Heidegger nos propõe em A Essência do Fundamento, é uma busca pelo fundamento de todas as coisas, e após toda a retomada histórica que ele realiza na mesma, conclui que o fundamento é não ter fundamento! O que devemos ter é a liberdade de deixarmos tudo ser e nesse mesmo dinamismo nós também vamos sendo, e constituindo nossas relações de ser-com e ser-em. É só mediante a liberdade das coisas serem elas mesmas e de nós também podermos ser é que as coisas serão elas mesmas, e com isso se instaurar a verdade do ser. O contrassenso que o discurso filosófico caiu foi o propor amarras para o ser. E com isso o ser não se revelou como um si mesmo. Pois, o caminho que o filósofo da floresta negra nos propõe é o de que se nós quisermos chegar a uma determinada verdade sobre uma coisa nós temos de dar o espaço para ela ser ela mesma. Pois, na medida em que lhe concedemos isso, ela vai se revelando em sua ipseidade.
Mas, aqui muitos podem estar pensando que Heidegger é um irrealista ao propor uma liberdade dessa forma, dizendo que seria impossível devido aos limites físicos do mundo ao qual estamos condicionados. Porém, uma vez que ele considera que o ser se revela no tempo, ele leva em consideração os aspectos físicos do mundo ao propor-nos tal liberdade de sermos. O tempo se revela no mundo e o ser no tempo. Logo, o ser se revela no mundo e com isso essa liberdade é vivenciada no mundo. Por isso, também seu movimento de transcendência é, impulsionado pela vontade de ser, em direção ao mundo.
Também poderíamos estar pensando que tal liberdade proposta pelo filósofo da floresta negra seja uma libertinagem, diante de tamanha defesa da liberdade de se ser o que se quer. Mas, isso não pode ocorrer devido a quem vivenciar uma liberdade, em seus desejos e instintos, estaria sendo dependente deles, e, portanto não livre. Mas em Heidegger também não poderíamos dizer que essas dimensões sejam anuladas. Elas podem ser vividas pelo homem, pois é a partir delas que ele vai se construindo e não vira apenas um subordinado delas. Tal liberdade proposta pelo filósofo alemão é o espaço necessário que o ser necessita para ser ele mesmo e ao mesmo tempo os trâmites que ele necessita para ser-no-mundo. No sentido de constituir relações autênticas com ele, que o possibilitam ser ele mesmo.
Tal ação autêntica que o ser necessita vivenciar, e que Heidegger nos fala em Ser e Tempo[1], só é possível pelo horizonte da liberdade. Se não for do devido modo, cada um não revela seu ser em sua ipseidade e se aprisiona em modos, passando a vivenciar relações inautênticas consigo e com os outros. O que o pensador alemão está realizando em seu esboço, é nos alertar de que precisamos nos desprender das amarras que nos colocam e sermos nós mesmos. Por outro lado, ao defender a liberdade como condição do ser, ele nos revela que por de trás de todo condicionamento que nos é imposto, está à liberdade. “A liberdade, enquanto deixar valer o mundo, é a origem do fundamento em geral; (…) A liberdade é, enquanto fundamento tríplice e não obstante único, o ser-fundamento, a origem do fundamento, o «fundamento do fundamento».” (PAIVA, 1998, p. 121).
Nisso, quando os gregos, os medievais e os modernos colocaram seus condicionamentos à liberdade, o que havia antes deles era a própria liberdade. Mas, uma liberdade não totalmente plena, porque ainda dependia dos limites físicos do mundo, mas uma possibilidade de liberdade de sermos e nos construirmos conforme dita cada consciência individual. Pois, por mais que façamos as leis para melhor vivermos em harmonia, o homem se quiser, pela sua consciência, transcende a essas regras. Ou de outra forma, pode negá-los conforme bem lhe entender. O que ocorre é que não respeitam o seu direito de ser e podemos perceber que a justiça só acerta quando se trata de casos que violam os direitos naturais.
Concluindo, gostaríamos de propor algumas questões a serem pensadas, para que cada um possa tomar a resposta que melhor lhe haurir. Como anda hoje o respeito por nossa liberdade de ser? Como caminha nosso respeito à liberdade dos outros de ser eles mesmos? Será necessário libertarmos a liberdade das compreensões que se tem dela? Heidegger nos propõe uma liberdade de não termos fundamentos, não seria isso um fundamento?
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 5ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HEIDEGGER, Martin. A essência do fundamento. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, [s.d.].
______. Ser e Tempo I. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. 13. Ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
INWOOD, Michael. O mundo. In: ______. Heidegger. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Loyola, 2004. P. 43-50. (Mestres do pensar).
PAIVA, Márcio Antônio de. A liberdade como horizonte da verdade segundo M. Heidegger. 1998. 254f. Tese. (Doutorado em filosofia). Editrice Pontificia Universitá Gregoriana, Roma. 1998.
STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre «Ser e Tempo». Petrópolis: Vozes, 1988.
[1] Para mais informações sobre a autenticidade do ser, cf. INWOOD, 2004, p. 37-39.