Douglas Lopes Amaral
Diante da facticidade e efemeridade da vida na qual o ser humano se vê mergulhado, várias questões existencias se apresentam ao espírito humano, como a busca pela origem, pelo sentido da vida. Tais questões tocam o mais profundo do existir humano e sempre permanecem indecifráveis, enigmáticas e misteriosas ante a nossa capacidade limitada de conhecer a razão de todas as coisas.
Em nosso texto versaremos a respeito de uma das questões existenciais que mais desperta a curiosidade e desencadeia uma série de sentimentos, os mais variados, em todos aqueles que têm consciência de sua própria existência, a saber, o tema da morte. Para tanto nos valeremos do pensamento heideggeriano, e partiremos de sua analítica existencial dos modos de ser do Dasein que, no modo de ser-para-a-morte, nos apresentará a morte como horizonte de possibilidades para uma vida autêntica.
O modo de ser do Dasein é ser enquanto existente, pois sua essência é a existência, e existência é poder ser no sentido de projetar-se, de superar-se, de transcender. O Dasein existe enquanto é ser-no-mundo. “Estar no mundo significa fazer do mundo o projeto das ações e dos possíveis comportamentos do Dasein” (VALE, 2008, p. 14). Entretanto, o Dasein não se restringe só a este modo de ser, seu ser não pode ser determinado apenas por esta estrutura. Isso significa que existem outras.
Ao mesmo tempo em que o Dasein é ser-no-mundo, ele é também ser-com os outros. “Heidegger observa que quando lançado no mundo, o Dasein mantém uma interação, uma relação, consigo mesmo, com os outros entes e com o mundo” (VALE, 2008, p. 16). Mesmo quando não deseja, ele, ainda assim, mantém-se em relação com o outro, pois compartilha o mundo com ele. A ação do outro sempre reflete sobre os demais Daseins.
Sendo no mundo e com os outros, o Dasein é também ser-em um mesmo mundo com os outros. Este modo de ser “(…) é, pois, a expressão existencial do Dasein na medida em que este possui, por constituição essencial, o ser-no-mundo, sendo assim (…) ser-em faz parte da essência do Dasein” (VALE, 2008, p. 18).
Pudemos perceber acima que o Dasein possui uma multiplicidade de estruturas de ser. Todavia, estas estruturas unidas formam sua unidade estrutural. Para compreendermos como esta unidade se dá, precisamos entrever o modo pelo qual o próprio Dasein se mostra para si de forma unitária, simplificada, de forma que seguindo este mostrar-se, elabore seu sentido existencial. E essa experiência é realizada através do sentimento da angústia que se torna fundamental (DUBOIS, 2005, p. 41).
Primeiramente, é preciso deixar claro que a angústia não se confunde com o medo. “O temor é de alguma coisa, a angústia, ao contrário, é angustia de nada, diante de nada. É necessário interpretar esse nada, esse nada não é nada. Nenhum ente intra-mundano, pois a angústia é precisamente a experiência do ser-no-mundo enquanto tal (…)” (DUBOIS, 2004, p. 41), ou seja, a experiência do próprio dasein. Portanto o medo diz respeito diretamente aos entes intramundanos, ao passo que a angústia, pelo contrário, não se refere a nenhum ente intramundano (VALE, 2008, p. 23).
Segundo Vale (2008), a angústia é um fenômeno privilegiado pelo fato de conduzir o Dasein do impessoal para a possibilidade de ser ele mesmo. “A angústia manifesta no Dasein o ser para o poder ser mais próprio, isto é, o ser-livre para a liberdade do se-escolher-e-se-apropriar-de-si-mesmo” (HEIDEGGER citado por DUBOIS). Nesse sentido, a angústia faz do Dasein um ser de possibilidades; a partir dela ele se vê livre para escolher-se. Enquanto ser-no-mundo o Dasein é “(…) aquele que constrói, é aquele que se projeta, é poder-ser, é deixar-ser; é liberdade enquanto possibilidade” (VALE, 2008, p. 25). “Para Heidegger é indiscutível que o dasein autêntico necessita estar angustiado” (MALLMANN, 2008, p. 62).
Ainda como estrutura fundamental da existência, figura o cuidado. “O cuidado (…) é o ser do Dasein e funciona a este título como puro a priori. Ele é, assim, a condição de possibilidade, a abertura necessária, o espaço de jogo para fenômenos como o querer, o desejar, a propensão, a inclinação” (DUBOIS, 2005 p. 43). As estruturas dos modos de ser do Dasein encontram seu ponto de unidade no cuidado.
“Para Heidegger, o fenômeno mais originário, que sustenta ontologicamente a unidade e a totalidade da multiplicidade estrutural do cuidado é a temporalidade” (VALE, 2008, p. 35).
A Sorge (cuidado) é presente, passado e futuro. No presente sempre já está implícita a idéia da faticidade à qual se liga a idéia da hermenêutica. A idéia de futuro aqui em questão não é aquela na qual morremos e que tudo termina, mas a idéia de futuro que nos move agora no presente. Por isso, o Dasein é o ser-para-a-morte. Somos futuro, passado e presente num único movimento. Somos sempre um adiante de nós, já no mundo, junto das coisas. O passado é uma possibilidade que já foi e o futuro, o ser-para-a-morte, é a última possibilidade ou a impossibilidade de qualquer nova possibilidade (MALLMANN, 2009, p. 66).
O Dasein que se abre ao futuro, que tem por sua vez a característica da finitude, abre-se a questão da morte, pois é tendo em vista o futuro, ou seja, o por vir, que o Dasein poderá antecipar-se em busca da totalidade.
Porém, enquanto ser-no-mundo, ou seja, enquanto ente, o Dasein nunca poderá alcançar o seu fim no sentido de totalidade. “Enquanto a pre-sença é um ente, ela jamais alcançou sua ‘totalidade’. Caso chegue a conquistá-la, o ganho se converterá pura e simplesmente em perda do ser-no-mundo” (HEIDEGGER, 2005, p. 16), o que significa que o Dasein deixará de ser Dasein pelo fato de perder o Da de sua constituição, ou seja, o aí do ser-aí.
Por causa disso, somos impossibilitados de fazer a experiência de nossa própria morte, pois quando ela acontece o Dasein deixa de existir, já não é mais. Porém, apesar de não podermos experenciar a “minha própria morte”, podemos fazer a experiência do fenômeno ontológico da morte, ou seja, da passagem do modo de ser do Dasein que é a vida, para o modo de não-ser-mais-presente, através da morte dos outros (HEIDEGGER, 2005, p. 18).
Mas, “em sentido genuíno, não fazemos a experiência da morte dos outros. No máximo, estamos apenas juntos” (HEIDEGGER, 2005, p. 19). Muito menos podemos assumir a morte do outro, morrer pelo outro no sentido ontológico. “Pode-se ‘morrer por outrem’. No entanto, isso quer dizer sempre: sacrificar-se pelo outro ‘numa coisa e causa determinada’. Esse morrer por…, no entanto, jamais pode significar que a morte do outro lhe tenha sido, de alguma maneira, retirada” (HEIDEGGER, 2005, p. 20). Cada Dasein deve assumir ele mesmo sua própria morte, “(…) ela é um processo que cada um deve e necessita fazer por si próprio, na singularidade” (MALLMANN, 2009, p. 71).
Como dissemos, o Dasein não pode fazer a experiência de sua própria morte, pois quando morre ele não é mais Dasein, nem pode experienciar a morte do outro pelo fato de que “‘o morrer’ é da ordem do insubstituível” (DUBOIS, 2005, p.49). Para resolver esse problema Heidegger propõe que pensemos existencialmente o fim do Dasein, isto é, enquanto possibilidade, poder-ser, antecipação.
Porém, Heidegger constatará que a maioria das pessoas encara a morte a partir da cotidianidade e do impessoal. Por acontecer frequentemente, a morte torna-se algo comum, que não choca. Ela sempre acontece, mas nunca comigo: “A interpretação pública da pre-sença diz: ‘morre-se’ por que, com isso, qualquer um outro e o próprio impessoal podem dizer com convicção: mas eu não; pois esse impessoal é o ninguém” (HEIDEGGER, 2005, p. 35).
Tanto é verdade que as pessoas fogem da morte e não querem aceitá-la, que, quando se deparam com um enfermo, ficam alimentando a esperança de que ele não morrerá, que vai se curar: “(…) os ‘mais próximos’ frequentemente ainda convencem o moribundo que ele haverá de escapar da morte e, assim retornar a cotidianidade tranquila de seu mundo de ocupações” (HEIDEGGER, 2005, p. 36). Heidegger afirma que essa tentativa de consolar e tranquilizar o moribundo é, antes de tudo, a tentativa dos próprios consoladores de se tranquilizarem a si próprios, pois “o impessoal não permite a coragem de assumir a angústia com a morte” (HEIDEGGER, 2005, p. 36).
A angústia não deve ser confundida com o medo de deixar de viver ou mesmo com a morte. Ela deve ser entendida como a “disposição que possibilita uma compreensão existencial da morte” (VALE, 2008, p. 47); é a angústia que faz com que o Dasein se perceba como lançado no mundo para sua possibilidade mais própria. “Angustiando-se com a morte, a pre-sença é colocada diante da possibilidade insuperável, a cuja responsabilidade está entregue” (HEIDEGGER, 2005, p. 36).
Mas quando o Dasein vive na cotidianidade mediana do impessoal, mesmo que tente fugir disso, ele se vê como de-cadente. Enquanto de-cadente ele busca a todo o momento fugir de si mesmo, fugir da morte. Porém, mesmo quando o próprio impessoal não está pensando na morte, a cotidianidade do Dasein mostra que ele está se determinando como ser-para-a-morte. (HEIDEGGER, 2005, p. 37). Fica claro, portanto, que o Dasein é ser-para-a-morte.
Enquanto ser-para-a-morte o Dasein precisa transportar-se para a consciência de que a existência é escolha, que é fundamental escolher. É preciso, portanto, sair do impessoal e esta decisão só depende de mim, uma vez que é de mim que se trata. É, pois, a consciência que me chama, enquanto eu, a ser eu mesmo (DUBOIS, 2005, p. 54).
A voz da consciência faz com que o Dasein sinta-se “em dívida para com a sua verdadeira natureza e encaminha-o para uma decisão antecipadora, que projeta a existência autêntica como um viver-para-a-morte” (VALE, 2008, p. 51). Dessa forma, a relação do Dasein com a morte se dá antes que a morte aconteça, e esta relação faz com que o Dasein se abra para a sua possibilidade mais própria.
Em suma, ser para-a-morte é ser angustiado, pois “a angústia é uma forma privilegiada de abertura, pois ela não permite que o ser fique quieto e alienado no seu mundo impessoal” (MALLMANN, 2009, p. 53). Além do mais,
a angústia coloca o homem diante do nada, isto é, ao não sentido dos projetos humanos e da própria existência. Existir autenticamente exige, então, coragem para enfrentar a realidade própria do não-ser e sentir a angústia do ser que caminha para a morte. Existência autêntica implica aceitar a sua própria finitude. (TRANSFERETTI citado por MALLMANN, 2009, p. 81).
Assim, viver de maneira autêntica é viver tendo a consciência de que somos finitos e um dia vamos morrer. Quem vive de maneira autêntica encara a morte como possibilidade da impossibilidade da sua existência, e não como faz o impessoal que diz “morre-se”, na tentativa de mascarar essa realidade. Viver autenticamente é reconhecer-se ser-para-a-morte e a partir disso, diante das possibilidades para as quais ela nos abre, projetar e construir a nossa vida a partir dessa constatação. Portanto, a morte deve ser vivida como experiência antecipadora, isto é, deve ser vivida no dia a dia de nossa existência. Todas as nossas ações devem ter em vista, como horizonte, essa possibilidade, a mais própria do Dasein.
Referências
DUBOIS, Christian. Heidegger: introdução a uma leitura. Tradução de Bernardo Barros Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 13. ed. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2005.
MALLMANN, Márcio. Para além do impessoal: em busca da autenticidade. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2009.
VALE, Antônio Adriano. A possibilidade da impossibilidade: a morte na obra ser e tempo de Martin Heidegger. Mariana, 2008. (TCC em filosofia).
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Este artigo, foi de grande impotância para minhas questões pessoais acerca da morte. Sem dúvida, me fez entender e aceitar minha existência. Parabéns pelo artigo.
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foi muito bom consultar este artigo porque até irá me ajudar na minha tese de lincenciatura que estou a preparando durante este ano. muito obrigado e que não parem por a´í
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99% das pessoas no leito da morte perdem-se por não aceitar morrer, do ser-para-a-morte; perdem-se em si mesmas, ficam loucas e com medo. Ver alguém chegar à esta situação é mais doloroso do que a morte em sí; a morte do ser, de seu ponto de vista sobre si mesmo, perdido entre a realidade já vivida mas passada e a da paranóia completa.
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Este artigo,mostra o quanto o se humano pode ter certeza da sua existência, enquanto ser. As certeza que a morte,temor,as angústias do ser humano,podem ser amenizada uma ver que entendemos a nossa existência. Parabéns pelo artigo!