Lucas Antônio Ferreira
“No rosto, apresenta-se o ente por excelência”
(Lévinas)
No decorrer dos anos, a sociedade vem se deparando com diversas situações alarmantes, como violências, sequestros, corrupção política, homicídios, aborto, injustiças, dentre muitos outros fatores que demonstram o fruto da dominação do homem sobre si mesmo. Assim, pode se observar que a questão mais pertinente nos dias atuais é uma questão eminentemente ética. É neste contexto problemático que Emmanuel Lévinas (1906-1995), filósofo da contemporaneidade, apresenta a ética como busca do sentido do humano a partir da alteridade, do rosto do outro.
Mas, de que modo se expressa o rosto segundo Lévinas? Seria algo puramente estético? Simplesmente uma exposição da aparência, entendido na sua plasticidade? Vejamos: quando Lévinas se refere ao rosto, ele não está mostrando-o na perspectiva da face, mas da forma com que o outro se apresenta a mim. “O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a ideia do Outro em mim, chamamo-lo, de fato, rosto” (LÉVINAS, 1980, p. 37).
Nesta perspectiva, analisemos mais profundamente o pensamento filosófico de Lévinas acerca do rosto, sabendo que este aparece como epifania[1], ou seja, como “(…) a verdadeira essência do homem apresenta-se no rosto” (LEVINAS, 1980, p. 270), contrapondo-se a fenômeno. Visto que é na relação face a face, que se dá a linguagem ética como fonte de todo o sentido do humano, que se dá este contato. Sendo assim, buscaremos perceber o sentido da alteridade na relação intersubjetiva, e veremos que rosto faz um apelo à responsabilidade para com Outrem.
Nosso filósofo teve grande influência da fenomenologia de Husserl e da ontologia de Heidegger, dois de seus principais mestres e interlocutores, porém Lévinas faz uma ruptura com a filosofia deles, para assim, construir um novo pensamento ético na filosofia contemporânea. Ele se contrapõe com a fenomenologia de Husserl, visto que o rosto, para nosso filósofo, está para além de uma descrição, de uma definição, ou seja, ele não se reduz a si próprio. “O rosto está presente na sua recusa de ser conteúdo. Neste sentido, não poderá ser compreendido, isto é, englobado. Nem visto, nem tocado” (LÉVINAS, 1980, p. 173).
Dessa forma, nosso filósofo afirma que não há uma fenomenologia do rosto, pois ela é um método filosófico, mas há sim uma revelação[2], ou seja, há uma significação, porém sem contexto (LÉVINAS, 1980). Assim, ele mostra que esta significação do rosto opõe-se à fenomenologia.
Não sei se podemos falar de “fenomenologia” do rosto, já que a fenomenologia descreve o que aparece. Assim, pergunto-me se podemos falar de um olhar voltado para o rosto, porque o olhar é conhecimento, percepção. Penso antes que o acesso ao rosto é, num primeiro momento, ético. Quando se vê um nariz, os olhos, uma testa, um queixo e se podem descrever, é que nos voltamos para outrem com para um objecto. (…) A relação com o rosto pode, sem dúvida, ser denominada pela percepção, mas o que é especificamente rosto é o que não se reduz a ele (LÉVINAS, 1982, p. 77).
Observa-se que o rosto não é simplesmente aquilo que aparece na forma de luz, sensível, ou seja, não é uma simples exposição da aparência, daquilo que está na frente da cabeça ou aquilo que a envolve, em outras palavras, não é entendido em seu sentido plástico, estético e/ou, até mesmo, psicológico. Ele não é restrito à percepção, mas aquilo que revela e expressa a alteridade. É mais que a exposição de algo humano que escapa, ele se revela constantemente.
Sendo assim, pode-se dizer que há uma epifania do rosto. Epifania esta que não pode ser caracterizada como simplesmente a manifestação do Outro, ou entendida como um desvelamento do ser como afirmado por Heidegger. Em Lévinas, a epifania vem destacar eminentemente que o rosto, na sua expressão, revela-se como alteridade absoluta. A epifania como revelação destaca o valor em si presente no próprio rosto. É neste sentido que Lévinas, em Ética e infinito, demonstra que não se pode fazer uma descrição fenomenológica do rosto, visto que ele na sua epifania se expressa e é capaz de falar por si e o seu dizer revela sua própria significação ética.
Além disso, “o rosto do Outro recorda as obrigações do ‘eu’” (COSTA, 2000, p. 140). Primeiramente, ele é uma ordem, um mandamento: não matarás! Quando se fala que o rosto diz “não matarás”, se quer significar justamente que, nesse processo de construção da ética no rosto, além do “eis me aqui” e do “não mataras”, encontra-se uma imposição no rosto do outro, mesmo nu, dando uma ordem e pedindo clemência. O “não matarás” está inscrito no rosto do outro, sendo-lhe expressão original. Brilhando em seus olhos, em sua abertura transcendental.
O infinito apresenta-se como rosto na resistência ética que paralisa os meus poderes e se levanta dura e absoluta do fundo dos olhos, sem defesa na sua nudez e na sua miséria. A compreensão dessa miséria e dessa fome instaura a própria proximidade do outro. (…) Manifestar-se como rosto é impor-se para além da forma, manifestada e puramente fenomenal, é apresentar-se de uma maneira irredutível à manifestação, como a própria retidão do frente a frente, sem mediação de nenhuma imagem na sua nudez, ou seja, na sua miséria e na sua fome. No Desejo, confundem-se os movimentos que vão para a altura e a Humildade de Outrem (LÉVINAS, 1980, p. 178-179).
“Esse infinito, mais forte que o assassínio, resiste-nos já no seu rosto, é o seu rosto, é a expressão original, é a primeira palavra: ‘não cometerás assassínio’” (LÉVINAS, 1980, p. 178). Observa-se, portanto, que é impossível matar o outro, pois por mais que se tente fazê-lo, nenhuma tentativa o anularia. Mesmo quando o fato fisicamente acontece, sobra somente o corpo – o cadáver – e o outro, por sua vez, escapa. Ninguém tem o direito de findar a vida do outro, negando-o. O assassino deseja negar o outro totalmente. “Matar não é dominar, mas aniquilar, renunciar em absoluto à compreensão” (LÉVINAS, 1980, p. 177). O ato de matar, então, não é apenas isolar o outro, negar-lhe autonomia, mas de forma radical, tirar-lhe a vida. “A epifania do rosto suscita a possibilidade de medir o infinito da tentação do assassínio, não como uma tentação de destruição total, mas como impossibilidade – puramente ética – dessa tentação e tentativa” (LÉVINAS, 1980, p. 178).
A esse respeito, nota-se que o rosto é uma condição de possibilidade para a realização da ética, ou seja, “(…) a epifania do rosto é ética” (LÉVINAS, 1980, p. 178). Mas que tipo de ética é esta proposta por Lévinas? Tendo em vista que não é uma ética ontológica, nem uma ética de valores, mas, sim, uma ética da alteridade, o rosto convida para uma relação com ele sem interesses, uma relação de entrega.
A expressão que o rosto introduz no mundo não desafia a fraqueza dos meus poderes, mas o poder de poder. O rosto, ainda coisa entre coisas, atravessa a forma que entretanto o delimita. O que quer dizer concretamente: o rosto fala-me e convida-me assim a uma relação sem paralelo com um poder que se exerce, quer seja fruição quer seja conhecimento. (LÉVINAS, 1980, p.176).
A relação que se estabelece com o rosto não é de conhecimento, de necessidade, mas, sim, de um desejo, pois o infinito está expresso, ou melhor, a ideia de infinto está contida no rosto do outro. Desta maneira, Lévinas traça um caminho para compreendermos melhor o infinito do rosto.
Como poderíamos, pois, pensar no infinito já que somos finitos? Lévinas vai além superando a compreensão cartesiana[3]. Ele afirma que o infinito é impensável, mas possuímos o desejo de compreender esta idéia, apesar de não termos a capacidade de compreendê-la em sua totalidade. No rosto de outrem está a ideia do infinito a ser desejado por nossa tentativa de compreensão, porém, nunca se terá uma conclusão sintetizada. Em Lévinas,
O infinito no finito, o mais no menos que se realiza pela ideia do Infinito, produz-se como Desejo. Não como um Desejo que a posse do desejável apazigúe, mas como o Desejo do Infinito que o desejável suscita, em vez de satisfazer. Desejo perfeitamente desinteressado – bondade (LÉVINAS, 1980, p. 37).
Nesse entendimento, nota-se que o desejo não é caracterizado pela falta ou necessidade, ele visa, acima de tudo, o que o excede, o absolutamente Outro.
A idéia do Infinito, no brilho do rosto de outrem, desperta no Eu uma aspiração nova: o desejo (desir), o qual difere-se radicalmente da necessidade. A necessidade, que está na base do gozo, marca uma relação com um outro captado pelo Eu que o alimenta e através do qual se satisfaz, de modo que sua alteridade incorpora-se na identidade do Mesmo. Já na estrutura do desejo, a alteridade e exterioridade do Outro é conservada (CASTRO, 2007, p. 36).
Diante da alteridade, da relação com o outro, o rosto faz um apelo à responsabilidade, que, por sua vez, é desinteressada. Assim, devo ser “(…) responsável por outrem sem esperar a recíproca, ainda que isso me viesse a custar a vida” (LÉVINAS, 1982, p. 90).
Nosso filósofo mostra “a responsabilidade como sendo a estrutura essencial, primeira, da subjetividade” (TEXEIRA, 2001, p. 25).
Entendo a responsabilidade como responsabilidade por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz, ou não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito, é por mim abordado como rosto. (…) Desde que o outro me olha, sou por ele responsável, sem mesmo ter que assumir responsabilidades a seu respeito; a sua responsabilidade incumbe-me. É uma responsabilidade que vai além do que faço. Habitualmente, somos responsáveis por aquilo que pessoalmente fazemos. Digo, em Autrement qu’être, que a responsabilidade é inicialmente um por outrem. Isso quer dizer que sou responsável pela sua própria responsabilidade. (LÉVINAS, 1982, p. 87-88).
De fato, “o rosto pede-me e ordena-me” (LÉVINAS, 1982, p. 89), de modo que sou responsável por outrem sem esperar reciprocidade. A minha responsabilidade é de uma responsabilidade total, ou seja, “(…) o eu tem sempre uma responsabilidade a mais do que todos os outros” (LÉVINAS, 1982, p. 91, grifo nosso), de forma que ela não cessa. A esse respeito, Lévinas, em sua obra Ética e infinito, cita Dostoievski: “Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros” (LÉVINAS, 1982, p. 93), de maneira que sou responsável até pela responsabilidade de outrem.
Assim, podemos perceber a profundidade e a coerência do pensamento filosófico de Lévinas, visto que ele propôs um novo pensamento ético na filosofia contemporânea: a ética da alteridade. Para tal, ele demonstra que todo o sentido da ética ou mesmo o sentido do humano origina-se a partir do rosto, ou seja, o itinerário percorrido por Lévinas permitiu a ele abrir os horizontes na compreensão da filosofia, descobrindo o sentido do humano no rosto do outro. Rosto, que por sua vez, faz uma convocação a todos para a responsabilidade para com outrem.
Referências
CASTRO, Mauro César de. Grandeza e falsidade da arte: a questão estética na obra de Emmanuel Levinas. 2007. 108 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS. Porto Alegre, 2007.
COSTA, Márcio Luis. Lévinas: uma introdução. Tradução de J. Thomaz Filho. Petrópolis: Vozes, 2000.
DESCARTES, René. Meditações. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores)
LÉVINAS, Emmanuel. Ética e infinito. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 1982.
______. Totalidade e infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições70, 1980.
TEIXEIRA, Gislei Roberto Marques. A concepção de subjetividade em Emmanuel Lévinas. Monografia (Graduação em Filosofia) – Instituto de Ciências Humanas, PUC-Minas. Belo Horizonte, 2001.
[1] Lévinas utiliza o termo epifania para destacar o caráter de revelação que expressa o rosto do Outro.
[2] Em Lévinas, o termo revelação não está ligado à revelação entendida na tradição bíblica, teológica como uma revelação divina. Para nosso filósofo, revelação significa que o outro fala por si, sem qualquer mediação. O rosto revela a alteridade como significância ética na relação.
[3] A compreensão de Descartes para a temática do infinito, sendo o mais breve possível com estas palavras, é de que o infinito é uma teoria posta em nós, visto que um ser finito tem a idéia de infinito, já que ele é limitado. Assim, René Descartes, em sua obra Meditações, afirma que por mais que “a idéia da substância esteja em mim, pelo próprio fato de ser eu uma substância, eu não teria, todavia, a idéia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido colocada em mim por alguma substância que fosse verdadeiramente infinita” (DESCARTES, 1979, p. 116), ou seja, somente um ser infinito pode embutir em mim a ideia de infinito.
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Penso que esta ideia sua, como segue: “A esse respeito, nota-se que o rosto é uma condição de possibilidade para a realização da ética”, é problemática, pois estar em relação com o rosto é relacionar-se eticamente com o outro, ou seja, não há separação entre rosto e ética em Levinas. O rosto já é ética e não condição de possibilidade para ética, penso que no sentido que vc colocou a ética estaria separada do rosto.
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Desculpe minha ignorância da compreensão de rosto em Levinas, mas aproveito este espaço para ampliar meu conhecimento. Pergunto a você como se dá este encontro com o outro na relação com o rosto se a pessoa não utiliza da percepção dos sentidos como a visão deste rosto. Ou seja, no caso de uma pessoa com deficiência visual, qual rosto lhe é apresentado? A percepção através de outros sentidos como a audição seria o canal para o encontro com este outro? Daí seria um encontro fenomenológico e existencial? O rosto, então neste caso, não se revelaria através de um encontro de almas que vão além de corpos que se apresentam?