Márcio Henrique da Silva
Você tem preconceitos? Essa é uma pergunta sobre a qual cabe uma profunda reflexão. Por que preconceito? Qual será sua validade? Terá ele alguma utilidade? O pensamento acerca do preconceito é o que nos traz a uma análise na ótica de Gadamer[1]. Muitos, porém, têm uma visão em sentido negativo sobre o que venha ser preconceito, e isso pode vir a interferir quando somos inqueridos sobre tal concepção. Vemos, em nossos dias, que quaisquer formas de preconceitos, sejam eles religiosos, étnicos, raciais, sociais, econômicos etc., são considerados crimes, e quando praticados, implicam penalidade.
Ao analisarmos o que Gadamer entende por preconceito, poderemos ter uma visão mais ampla nesse sentido.
Gadamer reavalia o conceito de “preconceito”, entendendo como pré-conceitos as ideias que tecem nossa Vor-vertändnis, isto é, nossa pré-compreensão, as quais continuamente subjazem à prova da experiência (REALE; ANTISERI, 2008, p.260).
Todos nós temos pré-compreensões. Por exemplo: Quando estamos por conhecer alguém, certamente vem à nossa mente: como será a pessoa? E logo nos vêm ao pensamento ideias de altura, peso, cor dos olhos, o que mais a pessoa gosta, o que menos ela gosta, música preferida etc., e assim vamos construindo uma imagem com as nossas pré-compreensões. De fato, não sabemos se tais ideias corresponderão ao que a pessoa a ser conhecida seja; mesmo assim, não deixamos de fazer um preconceito a seu respeito.
Tudo aquilo que é desconhecido gera em nós incerteza, mas ao mesmo tempo uma esperança. Dar crédito ao que seja negativo ou positivo dentro do preconceito é próprio de cada um, mas não podemos afirmar que ele seja em si negativo nem tampouco positivo; dependerá do sujeito que faz tal prejuízo.
A palavra preconceito tem uma ligação etimológica com a palavra prejuízo. “Préjudice, como praejudicium, também significa, assim, simplesmente limitação, desvantagem, dano, prejuízo”. Mas este caráter negativo é apenas uma consequência. É justamente a validade positiva, o valor prejudicial da decisão precedente – como, justamente, de um “precedente” – que fundamenta a consequência negativa (REALE; ANTISERI, 2008, p. 260).
Só podemos falar de um caráter negativo na palavra preconceito, porque existe dentro da mesma uma abertura ao positivo. Por isso, ele se funda tanto no que seja negativo quanto no positivo.
Podemos nos perguntar, por que, então, temos uma concepção de que preconceito seja algo infundado e mesmo de posição negativista?
A noção de preconceito sofreu grande influência negativa por parte do iluminismo, que viu nele um empecilho para a razão, cuja função é a busca pela verdade, a libertação do homem, passagem da menoridade para sua maioridade. Naquele momento, o iluminismo se preocupava tão somente com o que o homem poderia produzir a partir se sua capacidade intelectiva. O progresso estava nas mãos do sujeito, e para que ele o alcançasse seria necessário romper com quaisquer tipos de ideias, dogmas, conhecimentos infundados, partir do “nada” seria o caminho. Destruir os preconceitos, essa era a ordem.
Ao pulverizar a imagem de preconceito, os iluministas buscaram dissipar também a religião cristã, cuja função é garantir e fazer valer o Magistério eclesial, a Sagrada Escritura e a Tradição; tudo isso constituía, para os iluministas, um entrave para o progresso técnico-científico, pois não baseados na razão impediam o avanço humano em relação ao fazer. A deusa razão, ante a Igreja, encontrava seu maior obstáculo; “A crítica iluminista da religião acoplou ao conceito de preconceito o significado de ‘juízo infundado’” (REALE; ANTISERI, 2008, p. 260).
“Uma análise da história do conceito mostra que é somente no Aufklärung que o conceito de preconceito recebeu o matiz negativo que agora possui” (GADAMER, 1998, p.407). O ideal iluminista procurou descartar tudo aquilo que o impedia de seguir adiante em seus anseios progressistas, e se valeu de uma interpretação unilateral para por de lado qualquer tipo de preconceito, por caracterizá-lo como pensamento infundado, irracional.
Para os racionalistas,
Somente a fundamentação, a garantia do método (e não o encontro com a coisa como tal) confere ao juízo sua dignidade. Aos olhos do Aufklärung, a falta de fundamentação não deixa espaços para outros modos de certeza, pois significa que o juízo não tem um fundamento na coisa, que é um juízo “sem fundamento” (GADAMER, 1998, p. 407-408).
Segundo o filósofo, é impossível estarmos isentos de quaisquer preconceitos diante da nossa capacidade de especulação; são também eles que nos impulsionam a ir ao encontro do que seja verdadeiro. Não longe disso, a falta de fundamentação poderia acarretar num descrédito daquilo a que se faz alusão.
O iluminismo quis fundamentar tudo na razão, e fez dela um método para alcançar seus ideais, porém se esqueceu de que não se pode fazer uma busca partindo do zero, sem noções que sejam prévias. Quando se busca algo, é pelo fato de se ter sido impulsionado anteriormente.
O preconceito, como caminho para o conhecimento, tem sua validade e utilidade, mas não se trata de tê-lo ou não. É, antes de mais, uma posição que tomamos ante o que se nos apresenta, podendo assumir um juízo positivo ou negativo. Já não é mais possível ficar indiferente quanto ao preconceito. Sua parcela representa muito em nossos atos e em nosso jeito de ver o mundo. Cabe a nós fazermos dele bom uso, seja nos âmbitos religiosos, étnicos, raciais, sociais, econômicos. Diga sim ao preconceito responsável.
Referências
GADAMER, H-G. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. In: ______. Verdade e método. Trad. Flávio P. Meurer. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da filosofia: De Nietzsche à Escola de Frankfurt. Trad. Ivo Storniolo. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2008. (Coleção História da filosofia, 6).
[1] Aluno de Heidegger, Hans George Gadamer (1900-2002) – professor em Leipzig, depois em Frankfurt e, por fim, em Heidelberg -, intérprete refinado e arguto, sobretudo da filosofia antiga, mas também de Hegel e dos historicistas, publicou em 1960 uma obra hoje considerada clássica para a teoria da hermenêutica, Verdade e método, onde tanto as questões técnicas como as perspectivas filosóficas da hermenêutica fundem-se em um todo coerente (REALE; ANTISERI, 2008, p.250).
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Parabéns, Márcio!
Gostei do texto! Tenho uma pergunta para iniciar nossa discussão. A pré-compreensão de que fala Gadamer, tem uma relação com seu discurso sobre a importancia da tradição. Usando uma frase de Ricouer para ilustrar minha pergunta: “a história precede e antecipa a reflexão”. Ou seja, existe uma relação entre preconceito e tradição em Gadamer? A ques tão da tradição, parece-me que fica implícito no seu texto. Estou certo?
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Márcio Henrique
A tradição, tão combatida pelo iluminismo, ávido de progresso, fez desacreditar não somente os preconceitos como também a tradição. Na nossa leitura, há uma relação entre ambas sim, porque a tradição não é fruto do acaso, mas de uma experiência que perpassa as idades. Na mesma linha, os preconceitos são inerentes ao sujeito, pois ninguém parte do ‘nihil’; há uma ideia que nos foi incutida e que não se originou em nós mesmos, mas num tempo anterior; tal ideia é o pressuposto para nossas discussões e ações.
Muito grato pelo questionamento.
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Excelente artigo, no meu modo de pensar: claro, objetivo, sucinto, bem escrito – gramaticalmente falando – e, sem contar, atingiu a proposta do autor. Parabéns!
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Ótimo artigo, parabéns!!!