Fábio Avelar Salmen
Um dos aspectos do pensamento de Adorno[1] abordado de forma crítica e objetiva na obra Dialética do Esclarecimento refere-se à indústria cultural[2] contemporânea, responsável pelo empobrecimento e ideologização da cultura, deturpando seu significado essencial como elemento de caracterização e difusão de tradições e valores.
Segundo Rabaça (2004, p. 16-18), a origem da dialética do esclarecimento é encontrada na negação do mito pela razão, sendo o interesse pelo conhecimento a consequência do sentimento de medo das forças da natureza e da violência social. Considera o autor que a dialética do esclarecimento, entretanto, implica em consequências para o ser humano, porquanto, traduzindo a conversão da natureza em objetividade, ele aumenta seu domínio sobre ela, mas dela também se aliena de forma crescente. Na sociedade industrial avançada, o indivíduo se torna supérfluo. O sistema administrativo e a cultura de massas convergem na uniformização da percepção e da linguagem.
O progresso da razão apresenta-se, portanto, como um paradoxo na história da humanidade, enquanto tomado na perspectiva de progresso inevitável e desejável para o desenvolvimento humano, mas contraposto ao que nos permitimos chamar de perda de identidade das pessoas. Rüdiger (2004) escreve que tal progresso é “gerador de um avanço que não pode ser separado da criação de novas sujeições e dependências, responsáveis pelo aparecimento de sintomas regressivos na cultura e de uma silenciosa coisificação da humanidade” (RÜDIGER, 2004, p.21).
Reale e Antiseri (2006, p. 472) encontram na crítica à razão instrumental a motivação principal para a composição da Dialética. Segundo esses autores, esse tipo de razão, preterindo a função de expor o fracasso da sociedade capitalista, incorpora a determinação por atingir fins desejados e controlados, de forma a “racionalizar o mundo para torná-lo manipulável e subjugável por parte do homem”. De forma coerente com tal visão, a indústria cultural, constituída pelos variados e amplos meios de comunicação de massa, como a televisão, o rádio e a publicidade, dentre outros, transforma-se em meio de imposição de “valores e modelos de comportamento, cria necessidades e estabelece a linguagem”.
A crítica de Adorno e Horkheimer (1985, p. 37-39) ao esclarecimento vigente aponta para seu caráter totalitário, comparando-o a outros sistemas e identificando sua inverdade na antecipação do que deve ser decidido. O pensar é então preterido em sua essência e torna-se vítima de reificação em um processo automático e autônomo que implica a subordinação obediente da razão ao imediatamente dado, descaracterizando o primado do conhecimento em favor de sua restrição a um caráter repetitivo e carente de criatividade. Assim, configura-se a regressão do esclarecimento à mitologia, que refletia a repetição cíclica dos eventos naturais.
O preço da dominação não é meramente a alienação dos homens com relação aos objetos dominados; com a coisificação do espírito, as próprias relações dos homens foram enfeitiçadas, inclusive as relações de cada indivíduo consigo mesmo […] O animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas. O aparelho econômico, antes mesmo do planejamento total, já provê espontaneamente as mercadorias dos valores que decidem sobre o comportamento dos homens. […] As inúmeras agências da produção em massa e da cultura por ela criada servem para inculcar no indivíduo os comportamentos normalizados como os únicos naturais, decentes, racionais. De agora em diante, ele só se determina como coisa, como elemento estatístico […] (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 40).
A indústria cultural configura-se como o elemento de transformação da realidade, privando o sujeito de sua prerrogativa fundamental de protagonista de sua construção. No dizer de Duarte (1997, p. 57), a realidade constituída encontra suas raízes em uma “exploração pulsional dos indivíduos”, de maneira que as opções de diversão e lazer que a indústria cultural lhes oferece veicula a falsa impressão de satisfação da demanda de seus desejos, trazendo, concomitantemente, lucros a seus agentes e reforço ao conteúdo ideológico do sistema dominante.
Vários aspectos do processo de massificação aplicado pela indústria cultural são abordados por Adorno e Horkheimer (1985, p. 117-119), revelando o trágico enfraquecimento do senso crítico dos indivíduos diante do que lhes é apresentado. Por exemplo, a velocidade da apresentação dos filmes é tal que impedem a atividade intelectual do telespectador, caso não se disponha a perder os próximos fatos da sequência. Também a inutilidade do novo é apontada, pois dá lugar à imitação e à repetição, como em canções de sucesso ou novelas que ressurgem ciclicamente, cujo conteúdo só varia na aparência e, não obstante, encontram eco na aceitação do público alienado de sua capacidade de percepção.
A letargia da qual é acometido o pensar encontra espaço na diversão, cujo propósito seria o de oferecer um escape ao trabalho mecanizado, como que restabelecendo forças para a rotina que desmotiva. Os autores, entretanto, registram (1985, p. 128) a impossibilidade desse alcance, uma vez que as próprias opções de entretenimento também pressupõem a aceitação passiva do conteúdo, estipulando a não necessidade de pensamento próprio e de raciocínio lógico. Assim, o propósito de divertir transforma-se em instrumento que serve aos interesses da indústria cultural:
Na medida em que os filmes de animação fazem mais do que habituar os sentidos ao novo ritmo, eles inculcam em todas as cabeças a antiga verdade de que a condição de vida nesta sociedade é o desgaste contínuo, o esmagamento de toda resistência individual. Assim como o Pato Donald nos cartoons, assim também os desgraçados na vida real recebem a sua sova para que os espectadores possam se acostumar com a que eles próprios recebem. […]
Cada espetáculo da indústria cultural vem mais uma vez aplicar e demonstrar de maneira inequívoca a renúncia permanente que a civilização impõe às pessoas. […]
Tanto técnica como economicamente, a publicidade e a indústria cultural se confundem. […] Lá como cá, sob o imperativo da eficácia, a técnica converte-se em psicotécnica, em procedimento de manipulação das pessoas. […]
Mas a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, 130-156).
Um contraponto interessante à crítica feita à indústria cultural é colocado por Rüdiger (2004, p. 210), quando sugere que “os mecanismos de sujeição capitalistas não se baseiam na força nem na ideologia, mas na produção de prazer com o consumo de bens e serviços”. De acordo com este autor, a submissão dos indivíduos acontece porque assim alcançam satisfação. Sem discutirmos o mérito da questão ideológica, entendemos tal opção pela satisfação alcançada como um tipo de alienação da realidade, enquanto entendida como condição de esclarecimento amadurecido.
Não obstante algumas décadas já tenham transcorrido desde a produção de Dialética e Esclarecimento, o horizonte delineado pela obra, que aponta para o enfraquecimento da razão crítica das pessoas, permanece, a nosso ver, tristemente atual e preocupante, crescentemente alimentada pela dominação do homem pelo próprio homem. Entretanto, entendemos ser necessário crer em um resgate da esperança quanto à transformação da realidade social, haja vista o permanente histórico esforço filosófico, a exemplo de Adorno e Horkheimer, para multiplicação do estado de esclarecimento e a não raras vezes latente demanda do homem para conferir maior sentido à sua existência.
Referências
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia. São Paulo: Saraiva, 2000.
DUARTE, Rodrigo. Adorno: nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Belo Horizonte: UFMG, 1997.
RABAÇA, Sílvio Roberto. Variantes críticas: a dialética do esclarecimento e o legado da escola de Frankfurt. São Paulo: Annablume, 2004. Disponível em: <http://books.google.com/books?id=dTJOAZmrbfIC&pg=PA13&dq=dial%C3%A9tica+esclarecimento+cr%C3%ADtica&hl=pt-BR&ei=-rVTTrr7Iei20AHx9_DtBQ&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1&ved=0CCoQ6AEwAA#v=onepage&q=dial%C3%A9tica%20esclarecimento%20cr%C3%ADtica&f=false>. Acesso em: 23 ago. 2011.
REALE, G., ANTISERI, D. História da Filosofia: de Nietzsche à escola de Frankfurt, v. 6. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2006. Disponível em: < http://www.4shared.com/get/Tla71tg7/Histria_da_Filosofia_-_Volume_.html>. Acesso em: 27 out. 2011.
RÜDIGER, Francisco. Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural: comunicação e teoria crítica da sociedade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=zVxj_5HYXaAC&pg=PA134&dq=compreender+adorno&hl=pt-BR&ei=7ZKpTuHXA8TcgQft8PAO&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=10&ved=0CFoQ6AEwCQ#v=onepage&q=compreender%20adorno&f=false. Acesso em: 27 out. 2011.
[1] Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969) nasceu em Frankfurt, Alemanha. Considerado um dos expoentes da chamada Escola de Frankfurt, escreveu, em conjunto com Max Horkheimer, A dialética do esclarecimento, uma de suas principais obras, em que faz a crítica da razão iluminista e do processo de massificação das pessoas.
[2] Indústria cultural é um termo difundido por Adorno e Horkheimer para designar a indústria da diversão vulgar. Por meio desta e da diversão seriam obtidas a homogeneização de comportamentos (COTRIM, 2000, p. 225).
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Muito apropriado este texto para o momento que estamos vivendo< Excelente!
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Magnífico texto!
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Fabio Avelar salmen, vc foi intuitivo, simples e direto. Parabéns.