Daniel Junior dos Santos
A vida humana é marcada por inúmeros paradigmas (felicidade versus tristeza, soberba versus desapego, dor versus prazer, amor versus ódio), entretanto um dos mais conturbados e questionados é o seguinte: De onde vimos e para onde nos dirigimos? Encontramos múltiplas teorias que tentam fundamentar e sistematizar uma resposta, porém não existe um consenso entre os filósofos e as religiões quanto à origem e destino da existência humana. Portanto, ainda hoje o ser humano se questiona tanto sobre a sua genealogia quanto o seu fim, e o viés que o atormenta é este: Porque tenho medo da morte? A morte é o fim de tudo ou existirá algo por detrás dela?
Segundo o filósofo francês Michel de Montaigne[1], o qual nos valerá nesta alusão, a problemática encontra-se não na morte, mas no fato de morrer (passagem de um estado para outro). Quando se questiona alguém sobre a morte, o primeiro sentimento que lhe impele é o medo, a tensão em morrer e estar morto; logo, retardá-la ou ocultá-la parece ser a melhor saída. Na cultura contemporânea vislumbramos no homem a aversão pela morte no sentido de que o futuro pode lhe condenar e a temeridade em viver o presente pode resultar-lhe numa infelicidade ou perca de tempo. Assim, o grande vilão ao qual estamos fadados é este: viver bem e alcançarmos a felicidade sem pensar na consequência da morte ou pensarmos nela e sermos iludidos de ter vivido uma vida infeliz?
A morte do ponto de vista biológico é o fim da existência, ou seja, cessar das atividades físico-biológicas de um determinado ser. Deste modo percebe-se a morte como fator inevitável e intrínseco à subjetividade de cada ente. No momento em que nascemos estamos predestinados para não existirmos mais. Numa outra perspectiva, antropológico-cristã, concebe-se a morte como fim da vida, mas não da existência. A morte é o fim da vida humana, mas início de uma existência ininterrupta[2]. A partir disso, Montaigne percorre um itinerário existencial arraigado pelo ceticismo, epicurismo e de uma fé moderada.
Aparentemente pensar sobre o morrer parece ser algo absurdo, estranho, mas ao mesmo tempo trágico e desafiador. Refletir sobre a existência e o seu fim nada mais é do que pensar sobre a própria liberdade humana. Assim, as duas vias que são apresentadas como transportes para uma realidade extracorpórea, submetendo-se a experiência ou semelhança do morrer, são o estudo e a contemplação: a Filosofia. Logo, ensinar-nos a não temer a morte é nos ensinar a morrer “bem”, ou seja, preparar-se para suportar o fim inadiável sem se apegar às coisas deste mundo como afirma Montaigne:
Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento. (MONTAIGNE, 1980, p.47).
A princípio colocamos a seguinte pergunta: Porque o homem tem medo da morte? Na perspectiva montaniana, a raiz de tal medo está na passagem da vida para a morte. Entretanto alguns elementos fomentam esta resistência contra a própria morte, dentre eles destaca-se: o destino pós-morte, preocupação com os prazeres da vida, processo histórico (tempo, espaço e modo da morte), alcance ou não da felicidade. Para o filósofo, aprender a morrer é fator intrínseco para uma boa morte, no qual é caracterizado por um salto em que damos do viver ao perecer, sem desprezo da vida como ele mesmo nos diz: “Concluo que quanto mais me desprender da vida e me aproximar da morte, tanto mais facilmente me conformarei com a passagem de uma para outra.” (MONTAIGNE, 1980, p. 48).
Embora não seja fácil tomar esta decisão e mesmo que ela apareça ser inconveniente e incoerente para muitos, a morte sempre atormentará o homem tirando-o de seu sono. Como probabilidade de saída encontrada para o sentimento de medo que ela nos incute, segundo Vaz (2008, p. 7), a obra Os Ensaios propõe duas estratégias opostas entre si para tal embate: “na primeira delas, há uma valorização do método de constante simulação mental da própria morte e, na segunda, Montaigne descredita a simulação da morte e propõe uma confiança na predisposição natural a não temer a morte e o morrer”.
Na primeira estratégia de dissipação do temor causado pela morte, nota-se a preocupação de se imaginar, simular a própria morte sob suas circunstâncias e causas, ou seja, um método que proporcionará um domínio sobre si mesmo diante do sofrimento preparando o indivíduo internamente para o encontro com a morte, como nos diz Vaz (2008, p. 33): “A prescrição da simulação da morte é uma espécie de tatuagem mental que em letras garrafais exorta ‘Lembra-te de que hás de morrer’, grafada e gravada em nosso castelo interior”. Quanto à segunda estratégia que descredita a simulação da morte e pressupõe uma predisposição natural em não temer a morte, tenta estabelecer um ponto mediano entre a negação ou privação da morte e a simulação contínua do morrer, acentuando a morte ao acaso: “… a afirmação da predisposição à morte nos conduz à metáfora da viagem sem rumo, tortuosa, guiada pelas belezas da paisagem, como caminhos da floresta.” (VAZ, 2008, p. 51).
Acrescentamos a este pensamento, que todo ser naturalmente apresenta medo, angústia, desespero por sua ruína e, sobretudo, pelo tempo de aproveitamento da vida enquanto a morte não o atemoriza. Logo, a principal preocupação das pessoas no processo anterior a morte diz respeito à felicidade: Será que eu sou feliz nesta vida? Montaigne nos alerta sobre isso dizendo: “Em relação à morte, viver pouco ou muito é a mesma coisa, pois nada é longo ou curto quando deixa de existir.” (MONTAIGNE, 1980, p.49). Destarte, a felicidade ou o seu contrário não se abarca na durabilidade de nossa vida, mas sim no que usufruímos e fazemos dela: o bem ou mal. Quanto a este assunto, somente depois da morte poderemos julgar se de fato fomos felizes ou infelizes em vida.
Em suma, filosofar é aprender a morrer na medida em que se vive a virtude, sendo esta a via entre a existência e o perecer, o fim último da história. Embora a virtude apresente como grande benefício o desprezo pela morte, ela não extingue a possibilidade de pensar sobre esta. Portanto, a vida virtuosa é o ponto de intersecção entre uma existência temerária, amedrontada, no entanto quieta e à espera de seu término inadiável. Encontrar-se com a própria morte é desvelar as máscaras e caricaturas que introjetamos em nossa mente a respeito do morrer, como diz Montaigne: “Arranquemos as máscaras às coisas como às pessoas e por baixo veremos muito simplesmente a morte.” (MONTAIGNE, 1980, p.51).
Referências
MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. 500 p. (Os Pensadores)
VAZ, Lúcio. Da simulação da morte: versão e aversão em Montaigne. 2008. 113 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007. Disponível em: <http://opus.grude.ufmg.br/opus/opusanexos.nsf/4d078acf4b397b3f83256e86004d9d55/58f5bc2481bee60d0325765c0057cb88/$FILE/Dissertação.%20Lúcio%20Vaz.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2012.
[1] Nasceu em 1533 no Castelo de Montaige e morreu em 1592. Cético e conservador, escreveu Os Ensaios, obra esta publicada em 1580 (livro I e II) e 1588 (livro III).
[2] Quanto à discussão sobre o problema da imortalidade da alma, vale ressaltar que fora assunto de debate para o autor, todavia não abordaremos. Cf. MONTAIGNE, Michel. Apologia de Raymond Sebond. Ensaios. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 204-279.
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Muito bom!!!