Fabiano Milione Honório
Neste artigo pretende-se uma abordagem acerca do Estado no pensamento de Hobbes e, fazendo uma relação com o Reino de Deus, propõe-se chegar a uma definição de como viver no Estado de forma estável. O Estado para esse filósofo é formado basicamente por um governante, que ele chama de soberano, e seus súditos. É papel do soberano representar seus súditos e seus interesses, e é papel dos súditos obedecer ao soberano. Esta relação entre soberano e súdito se dá por contratos, assim como toda a formação do Estado e da sociedade. O homem diminui seu estado de natureza que é ele próprio sem normas sociais externas e, com relação mútua de consenso com os outros, coloca uma pessoa no poder. “A essência do Estado (…) é uma pessoa, de cujos atos (…) de uma grande multidão, com pactos mútuos, se tornou autor, a fim de que possa usar a força e os meios de todos eles (…) por sua paz e para defesa comum.” (REALE; ANTISERI, 2005, p 90).
Hobbes aceita e defende Deus e a religião no Estado, dizendo que o Estado ideal deve ser cristão, sendo completo. Não que ele seja uma pessoa fideísta, mas utiliza Deus e a religião como argumento de autoridade para colocar em prática as leis da cidade baseando-se nas leis divinas como um instrumento de difusão de suas ideias.
Aceitando Deus ele atribui algumas características ao Ser divino como sua existência, ser causa do mundo e ser também infinito não podendo atribuir a ele características que o diminuam como sentimentos humanos, localização. Para se falar de Deus, deve-se usar adjetivos negativos como infinito, superlativos como o maior, ou indefinidos como bom, justo (MITSUSHIMA, 2012, p. 6).
Ele aceita a religião no Estado, mas critica alguns aspectos do catolicismo. Ele vai contra algumas interpretações bíblicas, contra a canonização de santos, procissões e festas em homenagem a eles. Também não aceita símbolos como água benta, sal e imagens, pois nada disto consta na Bíblia. Muito disto se deve de sua formação anglicana. Para ele o que cabe ao poder da Igreja é apenas ensinar e converter os ainda não crentes ao cristianismo, assim como os antigos apóstolos de Cristo faziam. Seu papel é de levar aos povos a Palavra de Deus de forma livre e não imposta. Não cabe à ela governar e se intrometer em outros aspectos no Estado.
Não existe para Hobbes uma autoexclusão entre a cidade com suas leis e a religião também com suas leis, porque ambos os poderes devem estar nas mãos do soberano. O povo deve obedecer a seu governante em todas as suas ordens; sendo ele fiel cristão, jamais ordenará algo ao povo que fosse contra as Sagradas Escrituras e a Igreja. No caso de se ter um soberano infiel, é melhor obedecer à lei de Deus e enfrentar o que vier como consequência, se a fé for forte o suficiente, como por exemplo para suportar um martírio. Na cidade cristã, no que se refere ao poder temporal quanto espiritual estar nas mãos do soberano, é porque em ambas há a presença do divino no civil e devem ser regidas por alguém que saiba tratar ambas.
Numa cidade cristã, os mandamentos de Deus a respeito dos negócios temporais (…) são as leis e a sentença da cidade, exaradas por aqueles que ela autorizou a fazer leis e a julgar das controvérsias. Já no que diz respeito aos negócios espirituais (…), os mandamentos de Deus estão nas leis e sentenças da cidade, isto é, da Igreja (…), editadas por pastores que tenham sido ordenados conforme a lei [e] autorizados pela cidade. Segue-se então com toda evidência, que numa república cristã se deve obediência ao soberano em todas as coisas, espirituais e temporais. (HOBBES, 2002, p. 344).
A proposta de ser estudar a concepção do Reino de Deus, o que é necessário para nele entrar e sua relação com o estado, se deve principalmente a uma passagem no início do capítulo XLIII da obra O Leviatã, em que diz o seguinte: Mas esta dificuldade de obedecer ao mesmo tempo a Deus e ao soberano civil sobre a terra não tem gravidade para aqueles que sabem distinguir entre o que é necessário e o que não é necessário para sua entrada no Reino de Deus.(HOBBES, 1983, p. 341) Assim, sabendo de que precisa o homem para entrar no Reino de Deus se chega ao necessário para o bem viver no Estado. Como dito acima, as duas leis, a humana e a divina, devem estar sob a posse do soberano. Mas em que realmente consistem ambas as leis?
Assim sendo começa-se a abordagem pela lei civil, ou humana, que é manifesta no Estado. Para Hobbes, as leis civis são aquelas que todos os cidadãos devem respeitar e obedecer dentro de um Estado. Cabe a cada um dos homens habitantes do Estado o conhecimento dessas leis para não correr o risco de ir de embate a elas. O legislador, ou seja, quem faz ou revoga as leis, deve ser o soberano e ele não deve estar sujeito à essas leis. Outro ponto a ser observado é a rigidez com que elas devem ser tratadas, não é um conselho, mas uma ordem (HOBBES, 1983, p. 161). No início do capítulo XXVI, o filósofo dá uma definição bem clara do que deva ser a lei civil:
Considerado isto, defino a lei civil da seguinte maneira: A lei civil é, para todo súdito, constituída por aquelas regras que o Estado lhe impõe, oralmente ou por escrito, ou por outro sinal suficiente de sua vontade, para usar como critério de distinção entre o bem e o mal; isto é, do que é contrário ou não é contrário à regra. (HOBBES, 1983, p. 161).
Ao contrário da lei civil, que é formulada por homens, a lei divina é formulada pelo próprio Deus. Ela foi manifestada aos homens no decorrer da história do povo de Israel tendo seu cume em Jesus. O povo liberto da escravidão do Egito não estava vivendo de acordo com a vontade de Deus, assim ele chamou um homem, Moisés, e a ele incumbiu a missão de transmiti-la ao povo os conhecidos Dez Mandamentos. No decorrer da história, Deus também enviou alguns preceitos através de seus profetas, mas foi com Jesus que a lei divina se manifestou em sua plenitude com a lei do amor. Como ele diz: “A parte das Escrituras que se tornou lei em primeiro lugar foram os dez mandamentos, escritos nas duas tábuas de pedra e entregues pelo próprio Deus a Moisés, e dadas a conhecer por Moisés ao povo.” (HOBBES, 1983, p. 305).
O conceito de lei de Deus também é uma forma do governante se manter no poder e governar com mais autoridade. Ela manda que todo o homem obedeça às leis civis e também obedeça ao soberano governante. Com isso não há uma contradição e uma oposição entre as duas leis.
E esta lei de Deus que ordena a obediência à lei civil ordena por consequência a obediência a todos os preceitos da Bíblia, a qual (…) é a única lei naqueles lugares onde o soberano civil assim o estabeleceu, e nos outros lugares é apenas conselho, que cada um, por sua conta e risco, pode sem injustiça recusar obedecer.” (HOBBES, 1983, p. 342).
Para Hobbes, a salvação estava contida em duas atitudes, que são a fé em Cristo e a obediência às leis. Esta última está ligada ao fato de que o Reino de Deus está aberto àqueles que mesmo tendo transgredido alguma vez a lei divina, mas arrependido, crê na salvação. A obediência às leis é um esforço sério para cumprir a sua vontade e acaba por ter vários nomes como a caridade no amor aos outros, obedecendo a Cristo na sua doação, a retidão que é dar aos outros o devido e até mesmo o arrependimento que é o afastamento do pecado; ambos são a vontade de obedecer à Deus.
Portanto, todo aquele que desejar sinceramente cumprir as ordens de Deus, ou que se arrepender verdadeiramente de suas transgressões, ou que amar a Deus com todo o seu coração, e ao próximo como a si mesmo, tem toda a obediência necessária à sua entrada no reino de Deus, pois se Deus exigisse uma inocência perfeita não haveria carne que se salvasse. (HOBBES, 1983, p. 342).
O outro ponto necessário à salvação é a fé, e esse pensador diz que para se crer deve-se primeiro que conhecer em quem crer e conhecer o que ele diz. Deus transmitiu sua mensagem de forma direta ao seu povo no Antigo Testamento, depois no Novo ele enviou Jesus que veio aos homens como um deles e passou o encargo de anunciá-lo aos apóstolos e depois a pastores. Assim, o pastor supremo deve ser o soberano para que possa transmitir a fé em seu Estado como diz: “E portanto, vendo que o exame das doutrinas pertence ao pastor supremo, a pessoa em quem todos aqueles que não têm nenhuma revelação especial devem acreditar é (em todos os Estados) o pastor supremo, isto é, o soberano civil.” (HOBBES, 1983, p. 343) A fé é um dom divino e a causa de nossa fé é o encontro e crença com a Palavra de Deus. Essa ensina que para a salvação é necessário apenas crer que Jesus é o Cristo. Com isso se crê naquele prometido por Deus para remir o pecado da humanidade introduzido por Adão, abrindo novamente as portas do Reino Eterno.
Em suma, aquele que defender esta fundação, Jesus é o Cristo, defende expressamente tudo aquilo que vê corretamente deduzido dela, e implicitamente tudo aquilo que é conseqüente com isso, embora não tenhamos habilidade suficiente para discernir a conseqüência. E, portanto continua a ser verdade que a crença neste único artigo constitui fé suficiente para obter a remissão dos pecados aos penitentes, e consequentemente para trazê-los para o reino do céu. (HOBBES, 1983, p. 348).
Tendo-se mostrado o que é necessário para entrar no Reino de Deus é fácil conciliar a obediência ao soberano e à lei divina porque, com as palavras do próprio Hobbes,
Se for cristão, permite a crença neste artigo que Jesus é o Cristo, e em todos os artigos que estão nele contidos, ou que são por evidente conseqüência dele deduzidos, o que é toda a fé necessária à salvação. E porque é um soberano, exige obediência a todas suas leis, isto é, a todas as leis civis, nas quais estão também contidas todas as leis de natureza, isto é, todas as leis de Deus, pois além das leis de natureza e das leis da Igreja, que fazem parte da lei civil não há nenhumas outras leis divinas. Quem obedecer portanto a seu soberano cristão não fica por isso impedido nem de acreditar nem de obedecer a Deus. (HOBBES, 1983, p. 349).
Com esta exposição, pode-se concluir que para Hobbes um bom caminho para o andamento do Estado seja o de procurar conhecer o Reino de Deus e praticá-lo. Tendo fé em Jesus Cristo e obedecendo às leis, se chega a um acordo em obedecer também as leis civis e o soberano. Hobbes não demonstra ser um filósofo ateu; mesmo que Deus e a religião sejam para ele instrumentos de domínio no estado, ele demonstra claramente um conhecimento e uma aceitação das questões relacionadas ao divino.
Referências
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)
______. Do cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002
MITSUSHIMA, Luci. Hobbes e a religião. 2012. Disponível em: <http://gruposdeestudounifai.files.wordpress.com/2012/02/hobbes-e-a-religic3a3o1.pdf> Acesso em: 10 maio 2012.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: de Spinoza a Kant. São Paulo: Paulus, 2005. v. 4.
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Muito bom o artigo, estou pesquisando sobre o poder eclesiástico em Hobbes, e muito me ajudou.
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Excelente texto! Muito bem explicado, foi muito difícil encontrar um material bom falando dessa parte da obra de Hobbes! Muito bom!
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Estou preparando uma aula de uma disciplina Comunicação e Política na qual discorremos sobre o papel da Igreja no estado concebido por Thomas Hobbes e esse artigo esta me ajudando Parabéns ao autor.