Rosemar Marcos
O problema do mal tem um lugar de destaque no campo filosófico. Desde os tempos mais remotos da história da Filosofia e até os dias de hoje, o homem se depara com a problemática do mal, faz questionamentos e busca possíveis saídas para tal. Nota-se, contudo, não só o mal, mas vários males que persistem em assolar a humanidade. Terá o mal uma origem? Uma causa? Teria ele uma correspondência com a natureza humana? São questionamentos que insistem em permanecer.
Um importante filósofo do período do Iluminismo[1], Jean Jacques Rousseau se propôs a trabalhar questões referentes aos males da humanidade, mais precisamente a desigualdade, em uma de suas obras. Em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Rousseau aborda a temática da desigualdade social, bem como sua origem, apresentando-a como um dos males do ser humano. Sobre a importância desse tema, afirma Rousseau: “considero, ainda, o assunto deste discurso como uma das questões mais interessantes que a filosofia possa propor” (ROUSSEAU, 1978, p. 228). O presente artigo visa apresentar o pensamento do autor sobre a origem da desigualdade entre os homens e também propor uma reflexão sobre a relação com os males na perspectiva de Rousseau. O nosso trabalho terá como fundamento o discurso supracitado do filósofo.
O ser humano possui dentro de si muitas inquietações acerca das muitas realidades que o cercam. A desigualdade social, como um dos males presentes na sociedade, compõe o rol de tais inquietações. Muitos buscam saber qual é a origem de tais males no desenvolvimento da sociedade e suas afetações em cada indivíduo.
Sendo assim, abordaremos a origem da desigualdade entre os homens na perspectiva de Rousseau levando em consideração dois aspectos do pensamento do filósofo. Primeiramente, abordaremos a perspectiva da desigualdade entre os homens, que é identificada como um dos males no pensamento do autor e em seguida apresentaremos o seu pensamento sobre a origem da desigualdade social entre os homens.
1 A desigualdade como um dos males da humanidade no pensamento de Rousseau
No ano de 1793, período em que a Europa vivia grandes transformações impulsionadas pelo Iluminismo, Jean Jacques Rousseau se propôs a responder à questão que a Academia de Dijon perguntava: qual poderia ser a origem da desigualdade entre os homens e se ela seria permitida pela lei natural. Em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, buscou delinear, de certa forma, os resultados do progresso ocorrido na natureza.
Segundo Rousseau (1978), os males do ser humano são a falsidade, a ambição devoradora, o ardor de elevar sua fortuna, a concorrência, a rivalidade, a dureza, a inveja secreta, o desejo pelos lucros e a desigualdade. Ele aponta todos esses males como consequência direta da propriedade privada. Contudo, ele trabalha com mais ênfase a temática da desigualdade e a apresenta como um mal da humanidade pelo fato de ela incomodar os homens.
A visão de Rousseau sobre o homem em seu estado natural é muito otimista. Ele apresenta a figura do bom selvagem que simboliza o homem em seu estado primevo e que ainda não tivera contato com o progresso. Tal estado de natureza intrínseco ao homem bom era uma realidade que muita aprazia a Rousseau, que chega a afirmar que “nada é mais meigo do que o homem em seu estado primitivo” (ROUSSEAU, 1978, p. 264). O filósofo critica com os efeitos do movimento das luzes, o Iluminismo.
Ao falar da desigualdade o filósofo faz a distinção de duas desigualdades: a física ou natural e a desigualdade moral ou política. A desigualdade natural está relacionada aos aspectos naturais como “a diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma” (ROUSSEAU, 1978, p. 235). A desigualdade no sentido moral ou político depende de uma convenção feita pelo os homens e consiste nas diferenças entre ricos e pobres. Para o nosso autor, os mais poderosos gozam de certo privilégio, o que ocasiona a desigualdade social entre os homens.
Sendo assim, a desigualdade social e os outros males presentes nos seres humanos poderiam ter sido evitados se eles tivessem optado pela vida em seu estado selvagem no momento em que se viram diante do progresso e da civilização.
2 A origem da desigualdade social entre os homens
A desigualdade, segundo Rousseau, se estabelece a partir de três princípios: “o estabelecimento da lei e do direito de propriedade foi seu primeiro termo, a instituição da magistratura o segundo, e que o terceiro e último foi a mudança do poder legítimo em poder arbitrário” (ROUSSEAU, 1978, p. 277). Desses três termos podemos presumir a existência da desigualdade na sociedade.
Para Rousseau, a desigualdade é apresentada como um dos males que assolam a sociedade e tem sua base no processo de civilização ao qual o homem selvagem fora submetido.
Efetivamente, não é concebível que essas primeiras mudanças, por quaisquer meios que se tenham realizado, tenham alterado, ao mesmo tempo, e da mesma maneira, todos os indivíduos da espécie; mas, tendo uns se aperfeiçoado ou deteriorado e adquirido diversas qualidades, boas ou más, que não eram inerentes à sua natureza, permaneceram os outros mais tempo em seu estado original; e tal foi, entre os homens, a primeira fonte da desigualdade, mais fácil de demonstrar assim, em geral, do que assinalar com precisão as suas verdadeiras causas (ROUSSEAU, 1978, p. 228).
Destarte, no pensamento de Rousseau observamos que esses males ou o mal, que aqui identificamos com a desigualdade, não são intrínsecos à natureza humana, mas que surgiram em um determinado momento. Como afirma Costa,
A busca pela “origem” do mal não se confunde, a rigor, com a busca pelo “fundamento” do mal. Para quem imagina que nem sempre houve o mal- como é o caso de Rousseau-, o problema consiste em saber da novidade pela qual o mal veio ao mundo e nesse caso o problema é o de saber da sua origem; mas, para quem imagina que o mal sempre existiu, não faz sentido perguntar sobre sua origem, mas apenas pelo seu fundamento como a pressupor uma primeira e sempre havida forma do mal. Ao escolher a primeira opção, Rousseau assume sua consequência principal: a necessária pressuposição da existência de uma bondade originária na forma de uma ordem que antecede a novidade pela qual o mal surge. Assim, Rousseau opta que bondade deve ser procurada num passado do passado, ou seja, num passado a-histórico (COSTA, 2005, p. 21).
Considerações finais
No tocante à procura pela origem da desigualdade existente entre os homens, a questão principal que permanece no pensamento de Rousseau é a bondade natural que há no homem em contraposição à transformação dessa bondade em mal pela civilização atrelada ao progresso e à propriedade privada.
Diante do então avançado progresso da sociedade, bem como o comércio, os conceitos de justiça, de moral e de desenvolvimento oferecido pelas luzes da razão, Rousseau afirma que
a sociedade nascente foi praça do mais horrível estado de guerra: o gênero humano, aviltado e desolado, não podendo mais voltar atrás, nem renunciar às infelizes aquisições já obtidas, e não trabalhando senão para a sua vergonha pelo abuso das faculdades que o honram, se colocou também na véspera de sua ruína.(ROUSSEAU, 1978, p. 268)
A desigualdade entre os homens, proveniente da propriedade privada, do progresso e das riquezas, provoca fastio em alguns e miséria em tantos, causa contentamento em poucos e sofrimento em muitos. Sendo assim, “uns morrem de suas necessidades e outros de seus excessos” (ROUSSEAU, 1978, p. 282).
Essa desigualdade insiste em permanecer nos dias atuais, tanto em seu sentido natural quanto no seu sentido moral. Há atualmente uma valorização das diferenças em seu aspecto natural, como as diferenças idade, sexo e etnia, entre outros. Porém vemos também as diferenças no sentido moral e político, como pessoas vivendo em estado de miséria, sem condições de uma educação de qualidade e situação de moradia precária, enquanto outros usufruem de boa condição de vida, alimentação de qualidade e acesso a uma boa educação. São essas as desigualdades às quais o homem sempre foi submetido.
Embora não seja a proposta de Rousseau uma volta ao estado de vida selvagem, pelo menos fisicamente, ele propõe uma reflexão para seus ouvintes da Academia de Dijon e que pode ser transportada para os dias atuais: “não é possível que os homens não tenham, afinal, refletido sobre tão miserável situação e as calamidades que os afligiam?” (ROUSSEAU, 1978, p. 268).
Referências
COSTA, Israel Alexandria. Rousseau e a origem do mal. 2005. 144 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia)- Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores).
[1] No final do século XVII e início do século XVIII, o mundo passou por profundas transformações devido às influências de um movimento surgido na Europa. O Iluminismo propunha que a razão deveria dominar a visão teocêntrica que perdurava desde a Idade Média. Defendia que somente por meio da razão que era possível compreender os fenômenos naturais e humanos. Foi chamado de Iluminismo com a justificativa de que as trevas (Idade Media) seriam iluminadas pela razão (luz). Nesse movimento, havia pensadores que defendiam tais ideais e criticavam as crenças religiosas bem como as instituições que tinham forte influência sobre o pensamento da sociedade nessa época. Questões que até então a fé dava respostas, a razão busca respondê-las. Esse movimento iniciou-se na Inglaterra, mas teve seu auge na França onde ficou conhecido como século das luzes onde viveu grande parte de seus pensadores, Rousseau, Voltaire, Montesquieu e Diderot.