Irineu Altair da Silva
1 Introdução
Os filósofos clássicos sempre criticaram os sofistas pela forma como estes usavam a retórica: em benefício próprio e consideram-se detentores da verdade. No livro Górgias, Platão critica o posicionamento dos sofistas afirmando que a retórica, como eles a utilizavam, não poderia ser considerada uma ciência, tão pouco se utilizar da justiça. Daí podem surgir alguns questionamentos: o que é a justiça para os filósofos clássicos? Qual a relevância da justiça na argumentação de Platão? O que é a retórica? Qual o papel da filosofia para os sofistas? Para se entender melhor e responder a estas perguntas, faz-se necessária uma análise do conceito de justiça para Platão e para os sofistas para assim se entender se há pertinência em seus relatos.
Esta pesquisa analisa a formulação das argumentações na retórica, não apenas quanto à sua pertinência, mas também quanto às suas fundamentações na razão e nos princípios éticos e justos, deixando de lado apenas as nossas próprias convicções. Tem por objetivo analisar o conceito que Platão tem de justiça, o qual se contrapõe à persuasão na retórica sofista. A persuasão não pode ser fundamentada somente em crenças, mas deve ser formulada baseando-se na justiça e visando sempre o bem comum.
2 Conceituação e contextualização de justiça entre os filósofos clássicos
2.1 Dos pré-socráticos a Platão
Platão, no livro Górgias, configura, entre outras, a problemática da justiça para criticar a posição dos sofistas no uso da retórica, os quais a entendiam como a arte de persuadir as pessoas. “Entendo que a persuasão em causa é a que se realiza nos tribunais e em outras assembleias e que seu objecto é o justo e o injusto”. (PLATÃO, 1973, p.42).
Mas para falarmos sobre a justiça é necessário primeiro uma contextualização e uma conceituação da palavra. Segundo Nicola Abbagnano, a justiça pode ser entendida no geral como “a ordem das relações humanas o da conduta de quem se ajusta a essa ordem.” (ABBAGNANO, 2007, p.604). Os primeiros filósofos naturalistas tinham uma concepção de justiça advinda da natureza. Segundo Lopes Junior:
A natureza seria a aplicação de uma medida de justiça, de repartição, de castigo pelo juiz, o tempo. A ideia que se constitui foi as de que as coisas da natureza se encontram submetidas a uma ordem de justiça imanente, […] uma justificação da natureza do mundo. O mundo para esses filósofos do século V se revela como kosmos – que em sua acepção significa ordem, harmonia e beleza – para dizer que havia uma natureza justa das coisas. (LOPES JUNIOR, 2006, p. 80).
Esta forma de ordenamento cósmica do mundo mantinha uma relação com a organização social do Estado jurídico que se dava em pólis. Como a pólis era constituída de uma base predominantemente aristocrática, o conceito de justiça era também elaborado segundo os interesses dos nobres.
O conceito de justiça passou por várias etapas intermediárias até chegar à ideia de igualdade e democracia. Assim, “o homem justo, no sentido concreto que ganhou no pensamento grego, seria aquele que obedece à lei e guia suas ações de acordo com a orientação dela.” (LOPES JUNIOR, 2006, p. 81-82). E ainda: “a justiça enquanto excelência moral diz respeito àquele que traduz em seu comportamento o ordenamento da cidade. O justo é aquilo que a lei determina.” (LOPES JUNIOR, 2006, p. 81-82).
2.2 A justiça em Platão
Esta nova forma de conceituação de justiça, baseada na igualdade e que gera a democracia foi adotada mais tarde por Platão, que, assim como os jônicos, acreditava em algo que estaria no início de tudo como uma forma pura do justo e do ideal. Já os sofistas rejeitavam esta ideia afirmando que “a natureza humana está exposta a acidentes e ambiguidades típicas do discurso da vida em sociedade.” (LOPES JUNIOR, 2006, p. 83).
3 Justiça platônica x retórica sofista
3.1 Perspectiva platônica
Em sua obra, Platão sempre utilizou a forma de diálogo para expor suas ideias. Ao escrever Górgias, ele se expressa em um diálogo entre os personagens Sócrates, Górgias e seus discípulos para falar sobre a retórica. Para Platão, a forma como os sofistas usavam a retórica em seus discursos não se baseava na justiça, mas sim em crenças.
[…] qual é destes dois tipos de persuasão aquele que é produzido pela retórica e nas outras assembleias, relativamente ao justo e ao injusto? Será aquele donde nasce a crença sem a ciência ou o que produz a ciência? – É evidente, Sócrates que é aquele donde nasce a crença. – Deste modo, o orador, nos tribunais e nas outras assembleias, não instrui sobreo justo e o injusto, limita-se a fazer que os outros creiam. (PLATÃO, 1973, p. 44-45).
Para combater a ideia dos sofistas de que a retórica, como eles a usavam, era o melhor jeito de o homem propor respostas sobre questionamentos do modo de agir e se comportar, MacIntyre afirma:
A retórica de Górgias é um tipo de manipulação não-racional, seu uso torna os cidadãos piores. O retórico tem de apelar para a sua audiência; tem de conseguir sua aprovação para o que quer. Assim os lisonjeará e jogará com suas esperanças e temores, de modo a fortalecer sua irracionalidade. (MACINTYRE, 1991, p. 82).
Silva aponta-nos que a sofística objetiva inicialmente tornar públicos os ensinamentos formando homens sábios, poderosos, virtuosos e felizes. E ainda: “os sofistas fundaram o primado da aparência, erigindo, no lugar da problematizadora filosofia, a facilitadora retórica. As terríveis consequências deste procedimento podem ser percebidas no exercício da política por meio das técnicas de dominação operadas pelos discursos.” (SILVA, 2004, p.321).
Os sofistas anunciavam um saber entendido no âmbito da filosofia, mas que não poderia ser considerado filosófico. O que poderia ser considerado filosófico era o embate acerca do ensino da arte política. A retórica anuncia a figura do orador que luta para subjugar a massa de seus ouvintes, o que faz com que a Ágora se torne não um lugar de discussão, mas um lugar de autoridade (SILVA, 2004, p.323).
Para MacIntyre (1991, p.82), Platão considera que na visão de alguns sofistas a justiça nada mais é do que os fortes fazem dela e a retórica é um tipo de manipulação não-racional e seu uso torna os cidadãos piores.
3.2 Perspectiva dos sofistas
Os sofistas se contrapõem à ordem cósmica – sustentada por Platão e outros filósofos clássicos da qual a justiça é uma expressão – afirmando que a natureza humana está exposta a acidentes e ambiguidades, e apresentam a ideia da justiça como convenção.
O próprio Cálicles, no diálogo com Sócrates no Górgias, para tentar refutar a afirmação de que é preferível sofrer injustiça que cometê-la, afirma:
A própria natureza, em minha opinião, demonstra que é justo que o melhor esteja acima do pior e o mais forte acima do mais fraco. Em muitos domínios, não só entre os animais como entre as cidades e as raças dos homens, é evidente que é assim, que, na ordem da justiça, o mais poderoso deve dominar sobre o mais fraco e gozar as vantagens de sua superioridade. (PLATÃO, 1973, p. 111).
Tanto do ponto de vista platônico como do sofista, a justiça tem sua concepção na natureza. Mas do ponto de vista platônico a natureza de cada coisa deve ser especificada de acordo com o bem na direção do qual ela se move, de forma que sua natureza adequada requer referência àquele bem; já do ponto de vista dos sofistas, a natureza à qual se refere é como as coisas são independentemente e antes de toda avaliação. (MACINTYRE, 1991, p. 89).
4 Conclusão
A discussão entre a forma de dialogar sugerida por Platão, baseada na justiça que abrange a todos (o interesse comum a todos) e que se alcança no uso da filosofia e a posição dos sofistas, os quais asseguram que a persuasão exercida na retórica é a forma mais correta de se alcançar os objetivos propostos, gera uma aporia que não traz um resultado definitivo, mas deixa muitas pistas para grandes reflexões: a forma como a retórica tem sido exercida, tanto na época da filosofia clássica como nos tempos atuais, tem sido embasada em conceitos de justiça ou são elaboradas com o único objetivo de fazer com que os outros creiam nos argumentos propostos?
Os discursos que seduzem produzem uma espécie de deleite dizendo aquilo que se quer dizer de forma agradável. Por isso não se pode condenar os sofistas pelo uso da retórica. O que se acentua é que ela deve ser baseada em princípios de justiça.
Referências
GOLDSCHMIDT, Victor. Górgias, Primeiro Alcibíades. In:______. Diálogos de Platão: estrutura e método dialético. Tradução Dion Davi Macedo. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2002, p. 287-304.
JUSTIÇA. In: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 604.
LOPES JUNIOR, Dalmir. O conceito de justiça da Grécia cosmológica à antropológica: Uma análise da concepção de justiça em Platão e Aristóteles e a crítica sofística de Trasímaco, Protágoras e Cálicles. Revista de direito do UNIFOA, Volta Redonda, v. 1, p. 79-99, 2006. Disponível em: <http://www.unifoa. edu.br/revistadodireito/106.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2012.
MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? Tradução Marcelo Pimenta Marques. São Paulo: Loyola, 1991.
PLATÃO. Górgias. In:______. Górgias, O banquete, Fedro. Tradução Manoel O. Pulquerio, Maria Teresa S. Azevedo e José R. Ferreira. Lisboa / São Paulo: Verbo, 1973. p.17-192
SILVA, Markus Figueira da. Sedução e persuasão: os “deliciosos” perigos da sofística. Cad. Cedes. Campinas, v.24, n.64, p.321-328, set./dez. 2004. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/ccede/v24n64/22833.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2012.
#
Parabens ao colega Irineu, pelo empenho e dedicação neste 1º artigo (de muitos outros que virão)