Rafael Guimarães de Oliveira
A problemática do pensamento de Bacon (1561-1626) consiste na crítica ao comportamento da ciência de sua época, e de épocas passadas, que não evoluía, que não apresentava operabilidade nenhuma à vida humana e que vivia numa estagnação completa: “(…) os métodos [científicos] de seu tempo não permitem inventar, e a ciência gira em círculos.” (CAMUS et. al, 2011, p. 194). A partir disso, o autor escreve sua obra Novum Organum[1], relevante em sua bibliografia, em que relata essa constatação, que está relacionada diretamente com que ele definiu como ídolos, e sugere uma nova visão do método da indução, como a possibilidade de superar o estancamento da ciência.
Para nosso artigo, tentaremos estabelecer uma panorâmica do pensamento do filósofo acerca da crítica à ciência de seu tempo que ele compôs na obra retroindicada, dando atenção especial aos ídolos do teatro, para um questionamento que é a pretensão deste escrito: qual é a pertinência desse pensamento baconiano no mundo hodierno? Mesmo que não consigamos dar alguma resposta absoluta, queremos provocar o pensamento do leitor, e viabilizar uma possível ferramenta crítica diante do processo de conhecimento na atualidade, a partir do comportamento dos meios de comunicação social.
Para Bacon, a ciência de sua época, e de épocas anteriores, nada produziu ou realizou: “[O filósofo] ressalta constantemente o fato de que (…) os filósofos e sábios não trilharam o caminho de uma ciência operativa, em benefício do homem” (ANDRADE, 1979, p. XV). Essa proposição tem uma consequência que ele trabalha em sua obra: os métodos científicos, e a própria ciência, só tem validade se eles produzirem algo para o homem, se eles forem fecundos. A partir disso, o autor se propõe a analisar com atenção as causas do porque, até então, a ciência não havia se prestado a ser fecunda para o homem.
A ciência, aqui trabalhada, era tida como o conhecimento verdadeiro da natureza, e que a partir disso possibilitaria o homem dominá-la. Sendo assim, a ciência deve ser a composição de um conhecimento que possibilite algo de concreto e positivo para o homem, e que é o próprio ato de dominação da natureza, para o crescimento do mesmo; mas por algum motivo, que é apontado pelo autor, como veremos a seguir, não está desempenhando essa função: “para se conseguir o conhecimento correto da natureza e descobrir os meios de torna-la eficaz, seria necessário ao investigador liberta-se daquilo que Bacon chama de ‘ídolos’ e noções falsas” (ANDRADE, 1979, p. XV).
O termo ídolo é configurado por Bacon como o impedimento da mente humana de desenvolver a ciência, de inventar novos meios de o homem dominar a natureza. Esse movimento de impedimento ele explica assim:
O intelecto humano, quando assente em uma convicção (ou por já bem aceita e acreditada ou por que o agrada), tudo arrasta para seu apoio e acordo. E ainda que em maior número, não observa a força das instâncias contrárias, despreza-as, ou, recorrendo a distinções, põe-nas de parte e rejeita, não sem grande e pernicioso prejuízo. (BACON, 1979, p. 23)
Ele aponta quatro tipos de ídolos, que constituem o óbice para ciência: “São de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a mente humana. Para melhor apresenta-los, lhes assinamos nomes, a saber: Ídolos da Tribo; Ídolos da Caverna; Ídolos do Foro e Ídolos do Teatro.” (BACON, 1979, p. 21). Então essas são as formas de bloqueio da expansão do conhecimento, e que terão que ser superados pela nova leitura de um método que vamos expor mais a diante, e que o autor coloca como a única possibilidade de se superar esses ídolos e garantir o progresso da ciência.
O nosso intuito é focar nos ídolos do teatro. Mas, antes disso, vamos expor, de forma geral, de que se tratam os outros três ídolos, ou impedimentos. Os ídolos da tribo constituem aquela possibilidade, inerente ao homem, de querer conhecer as coisas pela superficialidade das experiências dadas no convívio da espécie humana. Nos ídolos da caverna, fazendo alusão ao mito platônico, está o olhar distorcido do humano para a realidade, considerando apenas a representação dada pela “luz” que cada um carrega em sua “caverna”. Já nos ídolos do foro, encontra-se o problema da linguagem, que se presta a ambiguidade, e assim, compromete a construção de um pensamento válido e frutuoso.
Na origem da convenção dos ídolos do teatro estão algumas correntes “filosóficas”, que representam as regras inválidas de demonstração do conhecimento. Essas correntes, ditas “filosóficas”, são na verdade pura invenção, a exemplo do teatro, como uma sequência de cenas ficcionais, onde a realidade não é tratada.
Há (…) ídolos que imigraram para o espírito dos homens por meio das diversas doutrinas filosóficas e também pelas regras viciosas de demonstração. São os ídolos do teatro: por parecer que as filosofias adotadas ou inventadas são outras tantas fábulas, produzidas e representadas, que figuram mundos fictícios e teatrais. (BACON, 1979, p. 22)
Bacon considera ainda que os ídolos do teatro não nasceram com o intelecto, mas foram alojados nele por meios de demonstrações pervertidas e por contos utópicos. Sendo assim, essa é a forma mais fantasiosa de comprometer o desempenho da ciência, e também o jeito mais fácil, por se tratar de uma forma quase infalível de atrair o intelecto humano.
Como então combater a presença dos ídolos no intelecto e garantir o progresso da ciência e seus benefícios? A solução está nas seguintes palavras de Bacon: “a formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos.” (BACON, 1979, p. 21, grifo nosso). Portanto trata-se da indução, que não é um método inédito, mas que em Bacon ganha a configuração de ser capaz de conhecer verdadeiramente os fenômenos, partindo da análise de realidades concretas, manifestas na experimentação; depois disso, criar paradigmas que permitam transpor a formas particulares para formas gerais. Criar padrões de conhecimentos particulares, que permitam atuações frutuosas no universal da natureza, a fim de dominá-la a partir de técnicas.
Após chegarmos nesse ponto, podemos construir um questionamento acerca da atuação do obstáculo cénico no processo do conhecimento no mundo hoje. É claro que querer transliterar as palavras de Bacon para os dias atuais é inválido, mas utilizar dos moldes de como ele pensou ser os ídolos do teatro nos ajuda no propósito de verificar a pertinência desse pensamento hoje. Trazendo para o discurso a atuação da corrente consumista no mundo contemporâneo, será que o homem não está dando margem para a supremacia dos ídolos da enganação do sonho de que ter é melhor do que ser, em detrimento do processo de conhecimento e contemplação da verdade? Hoje com o domínio das mídias por parte dessa corrente, vemos um show de fantasia e enganação do homem, ao invés de uma tomada de consciência de que seu conhecimento pode e deve ser eficiente na construção de melhorias para a vida humana. Talvez pudéssemos sugerir uma nova configuração para o que Bacon pensou como ídolos do teatro, e denomina-los como ídolos do consumismo. E um fato é cada vez mais evidente: diante disso, o homem tem se tornado impossibilitado de progredir intelectualmente, pois o que é considerado importante mesmo é comprar, gastar e ter o material.
Portanto, Bacon compõe uma crítica com propósito de dar novos rumos à ciência de sua época, e com o escrito em estudo ele consegue fazer com que ela dê os frutos exigidos em seu tempo. O grande trunfo é denunciar os ídolos que não permitem o progresso da ciência. E é nos moldes da conceituação da denuncia dos ídolos do teatro, que lançamos um questionamento: será que ainda hoje sofremos com a estagnação provocada pelos ídolos do teatro? Ao que consta, há elementos que possibilitam esta nossa intuição. Talvez não possamos falar em ídolos do teatro propriamente, mas de uma nova ordem de ídolos, a dos consumistas, respeitando os moldes baconianos dos obstáculos cênicos que aqui apresentamos.
Referências
ANDRADE, José Aluysio Reis de. Bacon: vida e obra. In: BACON, Francis. Novum Organum; Nova Atlântida. Tradução José Aluysio Reis de Andrade. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os pensadores)
BACON, Francis. Novum Organum; Nova Atlântida. Tradução José Aluysio Reis de Andrade. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os pensadores)
CAMUS, Sábastien et al. 100 obras chaves de filosofia. Tradução Lúcia Mathilde. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
[1] Que pode ser traduzido como: novo instrumento.