Harley Carlos de Carvalho Lima
O homem é corda estendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar; perigoso olhar para trás… (Nietzsche).
Introdução
Dentro da filosofia de Friedrich Nietzsche, é pertinente observarmos sua visão acerca do homem. Em sua obra Assim falou Zaratustra, o profeta fictício criado por Nietzsche faz uma abordagem, de certa forma, antropológica. Ele “[…] prefigura seus modos de ver o homem no canto intitulado Das três metamorfoses de seu Zaratustra”. (NEPOMUCENO, 2011, p. 25). Em nosso artigo abordaremos esta prefiguração nietzschiana a respeito de uma possibilidade de se ter uma concepção de homem.
Zaratustra, o profeta alter ego de Nietzsche, coloca o homem em três metamorfoses: o camelo, o leão e a criança. A comparação com o camelo se refere ao intuito que o profeta tem de retratar o “último homem”, este “[…] é o idiota multitudinário incapaz de um pensamento próprio, reduzido à obediência rotineira e à ‘moral de rebanho’, é o mais desprezível que existe”. (NEPOMUCENO, 2011, p. 26). A comparação com o camelo faz alusão ao homem que está presente, adepto na moral tradicional, o homem que carrega o peso da tradição, da moral do cristianismo sobre as costas, peso que o cristianismo com sua moral impôs sobre o homem assim como a corcova do camelo. Esta figuração enquadra na moral do “tu deves”, que metaforicamente é representado pelo grande dragão. “Tu deves”, assim se chama o grande dragão (…). O “Tu deves” está postado no seu caminho, como animal escamoso de áureo fulgor; e em cada uma das suas escamas brilha em douradas letras: “Tu deves!”. (NIETZSCHE, 2002, p.36).
Já o leão, o profeta assemelha-o com o homem superior, o homem que é forte e que sabe viver as aventuras e ameaças da existência. O homem da coragem, ousadia pessoal. O homem-leão que Zaratustra menciona em sua transmutação é o homem regido pela ética do “eu quero”, pela moral dos fortes, pela sua impetuidade em romper com vínculos. Aqui está a figura do homem iluminista, moderno, que cultiva a ideia de progresso. Dentro da filosofia de Nietzsche este homem moderno comparado com o leão, é o causador da morte de Deus. Como disse Zaratustra, Deus está morto e fomos nós que o matamos e o enterramos nas catedrais. O ideal de liberdade, o querer sair da moral de rebanho fez com que a morte de Deus acontecesse. Existe então uma decadência da metafísica, já não faz sentido que o homem moderno recorra a valores transcendentais, ele tem que encontrar em sua singularidade as respostas da sua existência, para a conquista do seu viver autêntico. O espírito de leão marcado pelo determinismo do “eu quero” consegue sair da moral do “tu deves”. E consegue encarar o seu presente projetando-se ao futuro que construirá com suas próprias mãos.
Por fim o profeta Zaratustra apresenta o Além-do-Homem[1] (Übermensch), que dentro da metamorfose nietzschiana, é comparado com a criança.
Com este termo Nietzsche designa sua mensagem a respeito do homem novo que deve vir, que quebrará as cadeias e criará um sentido novo da terra. O homem deve inventar o homem novo, exatamente o super-homem, o homem que vai além do homem, um homem voltado as costas para as quimeras do “céu”- voltará para a sanidade da terra, um homem cujos valores são saúde, a vontade forte, o amor, a embriaguez dionisíaca e um novo orgulho. (REALE; ANTISERI, 2005, p. 14).
O profeta quer trazer à mente humana uma nova ótica acerca do homem, uma nova possibilidade de se pensar o homem. E em seus escritos quer ensinar e mostrar que o homem deve ser superado, quer ensinar o homem a tornar-se o Übermensch. “Eu quero ensinar aos homens o sentido da sua existência, que é o Super-homem, o relâmpago que brota da sombria nuvem homem”. (NIETZSCHE 2002, p. 31). É o advento de uma nova figura na concepção de homem, desamarrada de todas as propostas ou ideologias morais que o “homem” carrega desde os tempos primórdios. Para Zaratustra é necessário que haja essa terceira metamorfose do espírito, para que se supere o espírito de liberdade reativa e força que o leão tem.
A palavra “além-do-homem”, como designação do tipo mais altamente bem logrado, em oposição ao homem “moderno”, ao homem “bom”, aos cristãos e outros niilistas- uma palavra que da muito o que pensar-, foi, quase por toda parte, com total inocência, entendida no sentido daqueles valores cujo oposto foi apresentado na figura de Zaratustra: quer dizer, como tipo “idealista” de uma espécie superior de homem, meio “santo”, meio “gênio” (NIETZSCHE, 1983, p. 375)
O Além-do-homem não é nada mais do que aquela transmutação do espírito que dá sentido ao devir humano, que valoriza o sentido da existência humana. Aquele da possibilidade do novo homem, homem que ama a vida, que realmente valoriza o seu ser, a sua “saúde”.
Para Nietzsche, o homem deve superar o “homem” que existe dentro de si, e ser um homem Além-do-homem, ser o sentido da terra, ser um ser de personalidade extraordinária e de atitude forte. O profeta nietzschiano deseja o nascimento do homem que tenha a capacidade de criar e recriar, o nascimento de um novo ser, que tenha sua morada no alto da montanha distante da moralidade cristã e convencional, um homem de espírito livre.
Com a morte de Deus provocado pelo homem-leão da modernidade, o foco se volta totalmente para o homem. É certo que com essa morte o homem está livre para decidir-se sobre si mesmo. “Só agora torna o Grande Meio-Dia; agora torna-se senhor o homem superior (…) só agora vai dar à luz a montanha do futuro humano. Deus morreu: agora nós queremos que viva o [Übermensch]”. (NIETZSCHE, 2002, p. 216).
Nietzsche quer que o Além-do-homem seja aquele ser que esteja longe, desprendido da teologia, da moral religiosa. Tendo em vista que a liberdade está garantida, Deus morreu e nada mais nos prende, nada nos faz sermos iguais. Já podemos ouvir a população que com seu desejo de igualdade clama e luta contra a ascensão do Além-do-homem “assim diz a população. – Não há homens superiores; todos somos iguais perante Deus um homem não é mais do que outro; todos somos iguais”! (NIETZSCHE, 2002, p. 216-217). Com a morte de Deus, os valores cristãos, severamente criticados por Nietzsche, acabam e somos livres para recusa-los e substitui-los pelos nossos próprios valores.
Nota-se que criando este personagem, o filósofo projeta um homem que simplesmente supere o arquétipo de homem que conhecemos. Quer criar um homem que consiga superar o pessimismo cristão e o progresso iluminista. O filósofo quer que o homem saia da mediocridade e tenha a ousadia de ser um homem além, não mais fadado pelo fato de ser o mesmo, de ser somente mais um em meio à população.
É bom ressaltar que Nietzsche, criando o Übermensch, não está comparando-o ou igualando-o com o homem-superior. Ele quer que o Além-do-homem “seja o futuro do homem que se tornou plenamente o que ele é”. (LEFRANC, 2008 p. 256). O Além-do-homem de Nietzsche é aquele que tem garra e vontade de poder para levar suas atitudes, seus pensamentos até o fim, que busca a transvaloração de todos valores.
Este homem transvalorado, amante dos fatos e da vida é aquele que enxerga as coisas dentro da ótica do “eterno retorno”, teoria que Nietzsche retoma da Grécia onde o mundo se aceita e vive uma eterna repetição. Poderíamos pensar nesta teoria de maneira que:
Pensar o eterno retorno é pensar que a afirmação do presente repercute infinitamente em eco no passado como no futuro, que é impossível querer o instante presente sem querer de modo idêntico uma infinidade de instantes passados e uma infinidade de instantes futuros. (LEFRANC, 2008,p.309).
Nisto o Além-do-homem é o único “capaz de pensar o eterno retorno de todas as coisas com um júbilo e uma alegria não acessível a nenhum ser simplesmente humano, demasiado humano”. (LEFRANC, 2008, p. 310).
Dentro da teoria do eterno retorno, Nietzsche coloca a doutrina do amor fati, que para o mesmo é a aceitação da eterna repetição e da vida. “O amor fati é aceitação do eterno retorno, ao mesmo tempo, anúncio do [Übermensch]”. (REALE, 2005, p. 5). Anúncio do homem que é capaz de romper com as antigas algemas da moral, do cristianismo, que é capaz de criar um novo significado da terra, e novos valores para sua existência, um homem que tem como virtudes o bem-estar, a vontade de poder, o afeto e a embriaguez dionisíaca.
Portanto, podemos dizer que o Além-do-homem que Nietzsche anuncia não é um homem potencializado ao infinito, ao imaginário, não é um homem elevado à milésima potência. Nietzsche propõe uma superação do homem, deste homem que conhecemos até aqui. O mesmo em sua filosofia não quis criar um pensamento antropológico, nem mesmo criar ou substituir uma transcendência divina por uma humana. A criação do Além-do-homem é para Nietzsche uma tentativa, uma necessidade de mostrar que o espírito carece de uma metamorfose, carece de uma saída do aprisionamento da moral, da teologia. Uma necessidade de o homem atravessar a perigosa travessia, o perigoso caminhar na corda estendida na possibilidade de sua existência.
Referências
LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. Petrópolis: Vozes, 2005.
NEPOMUCENO, Bruno Aparecido. Eis o homem: Uma tentativa de sistematização antropológica da filosofia de Friedrich Nietzsche. Artigo não publicado (inédito).
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2002.
______. Ecce Homo. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os pensadores)
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: De Nietzsche à escola de Frankfurt. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 6.
[1] O termo super-homem segundo alguns comentadores não é o melhor para traduzir o Übermensch de Nietzsche e sim Além-do-homem, por isso no nosso artigo preferimos este à aquele.
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“A criação do Além-do-homem é para Nietzsche uma tentativa, uma necessidade de mostrar que o espírito carece de uma metamorfose, carece de uma saída do aprisionamento da moral, da teologia. Uma necessidade de o homem atravessar a perigosa travessia, o perigoso caminhar na corda estendida na possibilidade de sua existência.”
Belíssima conclusão! Não poderia ser diferente, pois Nietzsche ao metamorfosear-se se projetando neste além do homem ele quebra o casulo moralista do ser na busca de uma existência potencialmente mais plena! Existire= passar a ser= um caminhar eterno da criação! O ato de existir já nos coloca neste caminho… a moral, a ética, podem ser setas no caminho, mas não o caminho!
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Caro harley, lendo seu artigo me surgiu alguns questionamentos:
Este super-homem de Nietzsche se refere a um homem diferente, especial, superior aos demais, semlehante a um heói das histórias em quadrinhos ou se refere à uma nova humanidade?
Nietzsche filosofa basicamente a cerca dos valores, qual é o anseio presente no pensamento do filósofo em relação aos valores?
parabéns pelo artigo! Muito bem redigido!
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ESSE “ALÉM-DO-HOMEM” CRIADO POR NIETZSCHE, NADA MAIS É DO QUE A SUPERAÇÃO DESSE HOMEM PRESO AOS GRILHÕES DA MORAL CRISTÃ, AQUELE QUE ESTÁ ALÉM DO BEM E DO MAL!!
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Na verdade, o “Além-homem”, na minha simples reflexão que ja fiz ao ler Nietzsche, é uma tentativa de repensar e reorganizar o que restou do ser humano ante o maior de todos os acontecimentos recentes, isto é, a ascenção do niilismo. Como pensar a vida ante o vazio existencial sem deixar com que todos as suas consequencias nao executem os possiveis horizontes de sentidos humanos. Assim penso.O que acham?