Rafael Guimarães de Oliveira
Tendo como objetivo principal da obra Ser e Tempo a busca por outro sentido do ser que fuja de todas as perspectivas apontadas até então pela história da metafísica, Heidegger (1889-1979), filosofo alemão e expoente do existencialismo, propõe uma análise da existência do ente, donde ele possa extrair o adequado sentido do ser. Esse movimento parte da critica heideggeriana à tradição da metafísica, na qual ele aponta um esquecimento do ser, diante da pergunta sobre o que ele é, e, a partir desse esquecimento, a composição de discursos vazios, que não revelam o verdadeiro sentido do mesmo.
Para resolver o problema apontado, Heidegger, na obra em estudo, se empenha numa análise existencial do ente para se chegar ao real significado do ser. Se a tradição da metafísica perguntou o que é o ser?, ele perguntará o que é o ente? para compor um discurso sobre o ser. É a partir da análise da existência do Dasein[1], em três traços fundamentais, que o filosofo da floresta negra tenta concretizar o objetivo de seu escrito. Esses traços alicerçadores da existência do Dasein são: ser-no-mundo, ser-com-os-outros e ser-para-a-morte. Em nosso artigo discorreremos mais demoradamente sobre o terceiro traço, dando os contornos mais significativos desse existencial, e delimitando o sentido de morrer para a filosofia heideggeriana. Mas antes, passaremos por uma compreensão sucinta do que se refere o ser-no-mundo e ser-com-o-outro.
Em relação ao ser-no-mundo dizemos que significa que não existe sujeito fora do mundo. O Dasein se lança ao mundo. O sentido desse existencial se dá quando o Dasein estabelece relações com as coisas, e assume o cuidado delas, isto é, confere um sentido a sua existência quando entra em contato com as coisas no espaço. Em relação ao ser-com-os-outros dizemos que não existe sujeito isolado dos outros. O sentido desse existencial está nas relações afetivas que o Dasein estabelece com o outro, e assim assume o cuidado dele.
O Dasein, quando lançado para o mundo e em comunhão com os outros, vai conferindo sentido à sua existência a partir das escolhas feitas por ele, na lida com aquelas duas instâncias. Ele pode escolher qual trabalho irá dedicar-se, escolher com qual estudo irá comprometer-se e assim por diante. Nas escolhas que Dasein faz, diante de inúmeras possibilidades, ele está sendo, isto é, existindo. Dentre essa variedade de possibilidades, existe uma na qual o Dasein não pode optar. Trata-se da morte. O homem pode fazer qualquer escolha, exceto escolher não morrer. A vida humana autêntica é aquela voltada para a possibilidade da morte – justamente aquela que ele não pode escolher – e não voltada para as possibilidades mundanas. Aqui estão lançadas as bases para a compreensão do ser-para-a-morte, para onde nos dirigiremos a seguir, passando pelo caminho indicado por Dubois: “[ser-para-a-morte] como ser possível, ser lançado, ser decadente” (DUBOIS, 2004, p. 50).
Enquanto possibilidade, a morte é a mais própria do Dasein. Ela não tem relação alguma com o outro, muito menos com as coisas. A morte acontece com cada homem, e assim, individualmente, o homem experimenta-a; e um não pode interferir de modo algum na morte do outro. O ato de morrer coloca o Dasein num distanciamento radical do outro, o que é indicador, positivamente, de que nesse momento o homem tem condições de se compreender autenticamente, a partir de sua própria existência. Ademais, a morte, como possibilidade, marca a inexistência de outras possibilidades. Ela é o fim do Dasein, que existia a partir das escolhas que fazia diante das suas possibilidades. Nessa perspectiva afirma Dubois: “A morte é iminente. (…) Ela é a possibilidade da impossibilidade do próprio ser-no-mundo” (DUBOIS, 2004, p. 50).
O ser-para-a-morte, enquanto ser-lançado é expressão de que o Dasein é projetado para um fim. Ele tem a oportunidade de perceber que está sendo encaminhado para o fim. Cônscio dessa possibilidade, a mais própria como já vimos, o homem convive com um o sentimento: o da angustia. É esse sentimento que coloca o homem diante do não sentido da sua vida, da impossibilidade das possibilidades, em suma: da sua morte. E é a forma com a qual o homem vive autenticamente sua vida: visando que a qualquer momento pode morrer.
O ser decadente significa que no existencial ser-para-a-morte o Dasein existe finitamente. É o fato de que um dia ele, possivelmente, não será ser-no-mundo. É a visão de limite que o homem contempla. A percepção do limite existencial permite o Dasein testemunhar a totalidade do seu ser: a partir da morte, não sendo possível ser mais nada, o ser do homem se completou; tudo o que ele poderia ser, ele foi, e nada a mais que isto. E por último, assumindo a sua limitação, o Dasein sente-se impelido a buscar o sentido de sua existência por si mesmo. Para sintetizar esse processo tomemos a explicação de Doubois: “A finitude é a finitização, existir como finito, e a apropriação de si é essa finitização, que mergulha no possível não ser mais, compreendendo seu ser a partir daí, como limitado, vindo à existência desde seu limite” (DOUBOIS, 2004, p. 51).
O caminho que até aqui perfazemos compreende o que significa o ser-para-a-morte, no conjunto analítico da existência do Dasein, para o objetivo de Heidegger na obra Ser e Tempo. O nosso intento agora é delimitar qual é o sentido da análise da morte diante de outras visões desse acontecimento. Na verdade, acompanharemos o filosofo na distinção entre morrer e finar, mas veremos que, na analítica existencial, há sempre um primado da compreensão de morrer. Para isso, tomaremos o parágrafo 49 da obra em estudo. Percebemos, até aqui, o evento morte como possibilidade, projeto e limitação.
Nesse excerto de Ser e Tempo, Heidegger contrapõe as compreensões de morte e finar. A princípio, as duas compreensões parecem estar no mesmo nível. Mas, não: a compreensão de findar está relacionada ao processo bio-fisiológico humano, e morrer à existência humana. O biológico é uma parte da existência. A compreensão de finar é posterior a de morte. No caso que se diz finar, estamos falamos de uma realidade que pode ser escrutinada:
Nesse campo [bio-fisiológico], pode-se alcançar, mediante uma constatação ôntica, dados e estatísticas acerca da duração da vida das plantas, dos animais e dos homens. Podemos reconhecer nexos de duração da vida, multiplicação e crescimento. Podemos pesquisar as ‘espécies’ de morte, as causas, ‘instalações e meios’ de seu surgimento (HEIDEGGER, 2006, p. 321).
Já no caso que se diz morrer, falamos de algo essencial na existência do Dasein, que é individual e inacessível, que o faz viver de modo mais autêntico, voltado para si mesmo. A compreensão de morrer é essencialmente anterior à compreensão de finar. Nesse sentido temos as seguintes palavras de Heidegger: “Morrer (…) exprime o modo de ser em que a presença [Dasein] é para sua morte. (…) a presença [Dasein] nunca fina. A presença [Dasein] só deixa de viver na medida em que morre.” (HEIDEGGER, 2006, p. 322). Esse movimento todo nos ajuda a perceber qual é o lugar que a compreensão de morrer ocupa na filosofia heideggeriana, diante das possibilidades de se pensar a morte.
Portanto, é na analise existencial do ser-para-a-morte, na consciência de que um dia deixará de existir, que o Dasein encontra a sua forma autêntica de vida. A fatalidade da morte é uma voz que prediz o encontro do homem com o nada, no sentido que não é possível ser mais nada, que o grande propósito de ser-no-mundo se encerrou. Esse predizer da morte deve conduzir o homem a uma volta para si mesmo, fazê-lo tomar as rédeas de sua vida. Nós gostaríamos de chegar nesse ponto da reflexão, pois nele percebemos o quanto se faz necessário dar sentido a nossa existência, a partir de nós mesmos, e insistir nesse sentido; e, fazendo as escolhas que nos é possível, nos preparar para o momento que nós não escolhemos, mas que, mais cedo ou mais tarde, nos convidará a encerrar o nosso projeto humano.
Partimos, para chegar a esse ponto, da critica de Heidegger à metafisica tradicional, que não disse nada em relação ao ser. O filosofo da floresta negra, então, se empenhou nesse projeto chamado Ser e tempo, aonde falaria do ser analisando a existência dos entes. Uma última consideração: embora tenha firmado a sua critica e proposto um novo caminho para dizer o ser, Heidegger também não deu conta de dizê-lo, pelo menos nesse projeto, o qual foi nosso objeto de estudo. Mesmo não dando conta de sua proposta, Heidegger nos deixou uma bela e consistente reflexão existencial, que nos convida a rever como estamos agindo e escolhendo diante da inusitada certeza do dia em que morreremos.
Referências
DOUBOIS, Christian. Heidegger: introdução a uma leitura. Trad. Bernardo de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia de Sá. Petrópolis: Vozes, 2006.
[1] Dasein significa ser-aí, e em última análise é o próprio homem.
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Bom artigo. Penso que deveria ter explorado mais o sentido ontológico dado ao fenômeno da morte.
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Excelente artigo! Claro, leve e muito profundo. Parabéns!