Rosemar Marcos
Aos nos reportarmos às palavras de Nicola Abbagnano sobre a Metafísica como “Ciência primeira, por ter como objeto o objeto de todas as outras ciências, e como princípio um princípio que condiciona a validade de todos os outros” (ABBAGNANO, 2007, p.660), não seremos surpreendidos com a consideração de sua fundamental importância para o desenvolvimento do pensamento, precisamente na história do ocidente. A perspectiva metafísica perpassa toda a história do pensamento filosófico desde a dialética grega até os dias atuais - ora exaltada, ora criticada. No entanto, recebe em cada período sentidos diversos: metafísica como superação da cosmologia, como possibilidade de teorização do transcendente, como teologia, como ontologia, e entre outros.
Diante disso, nossa pesquisa busca fazer uma abordagem filosófica do pensamento de um dos grandes expoentes da filosofia contemporânea, Emmanuel Levinas (1906- 1995), e a partir de sua obra Totalidade e Infinito, abordaremos sobre a possibilidade metafísica no seu pensamento. É possível falar em metafísica aos moldes, até então consagrados, da Filosofia Ocidental? E se possível, qual enfoque Levinas apresenta? Como Levinas vê a relação da metafísica com o seu desenvolvimento na história do pensamento ocidental?
E para tal, propomos uma breve análise da história da metafísica destacando seus principais momentos e suas consequências no desenvolver do pensamento filosófico. E por fim, apresentaremos a contribuição que Emmanuel Levinas oferece ao pensamento metafísico ocidental.
1. A proposta metafísica na tradição filosófica
Pensar a metafísica desde a filosofia grega às concepções contemporâneas é uma tarefa um tanto pretensiosa e demanda extensa pesquisa no campo bibliográfico da tradição filosófica. Porém, não é nossa preocupação aqui fazer uma abordagem minuciosa do histórico da metafísica, mas abordar seus principais momentos, utilizando autores, dentre outros, citados e criticados por Levinas.
A origem etimológica do termo metafísica remonta os anos 50 a. C, aproximadamente.
A palavra metafísica foi empregada pela primeira vez por Andrônico de Rodes, por volta do ano 50 a.C., quando recolheu e classificou as obras de Aristóteles que, durante muitos séculos, haviam ficado dispersas e perdidas. Com essa palavra – ta meta ta physika -, o organizador dos textos aristotélicos indicava um conjunto de escritos que, em sua classificação, localizavam-se após os tratados sobre a física ou sobre a Natureza, pois a palavra grega meta quer dizer: depois de, após, acima de. Ta: aqueles; meta: após, depois; ta physika: aqueles da física. Assim, a expressão ta meta ta physika significa literalmente: aqueles [escritos] que estão [catalogados] após os [escritos] da física (CHAUI, 2000, p.266).
Anteriormente, na filosofia naturalista, a principal preocupação dos pensadores era estabelecer uma origem, uma arché, que seria um princípio originário do qual todas as coisas fossem originadas. Foi com Tales de Mileto (séc. VII – VI a.C.) que tal tentativa se efetivara. “Tales foi o iniciador da filosofia da physis, pois foi o primeiro a afirmar a existência de um principio originário único, causa de todas as coisas que existem, sustentando tal princípio como a água” (REALE, 2003, p. 18). Percebemos aqui, uma iminente preocupação em remontar a uma origem e fundamento das coisas.
Após essa tendência naturalista, um segundo passo é dado no sentido de uma superação da visão cosmológica da realidade. Com seu poema sobre o ser, Parmênides inaugura uma nova orientação para o sentido metafísico: “a ontologia (teoria do ser)” (REALE, 2003, p. 33). Trata-se de uma tematização acerca das características do ser.
Na filosofia socrática e pré- socrática, o grande destaque é para a dimensão do homem e não a preocupação com a realidade natural. “Sócrates (…) procura responder àquestão: ‘O que é a natureza ou realidade última do homem? ’, ou seja: ‘ O que é a essência do homem?” (REALE, 2003, p. 95).
Caminhando um pouco mais, chegamos ao pensamento platônico. Platão é considerado o fundador da metafísica enquanto possibilidade de transcendência. “Esse ponto fundamental consiste na descoberta da existência de uma realidade supra-sensível, ou seja, de uma dimensão suprafísica do ser (de um gênero de ser não-físico), que a filosofia da physisnem mesmo vislumbrara” (REALE, 2003, p. 138).
Em Aristóteles, a questão metafísica é colocada em lugar de destaque em relação às demais ciências. Para o filósofo, a metafísica é a “filosofia primeira” ou “teologia”.
Entretanto, o termo “metafisica” foi sentido como mais significativo pela posteridade, tornando-se o preferido. Com efeito, a “filosofia primeira” é precisamente a ciência que se ocupa das realidades-que-estão-acima-das-realidades- físicas. E, nas pegadas da visão aristotélica, definitiva e constantemente, toda tentativa do pensamento humano no sentido de ultrapassar o mundo empírico para alcançar uma realidade metaempírica passou a ser denominada “metafisica”. (REALE, 2003, p. 195).
No pensamento aristotélico, percebemos um acréscimo da perspectiva ontológica à metafísica, ao propor uma das quatro definições de metafísica como a indagação do ser enquanto ser. “Na obra de Aristóteles (…) conceito mescla-se com o outro, de metafísica como ontologia, que é a ciência do ser enquanto ser” (ABBAGNANO, 2007, p.661).
2. A metafísica enquanto Ontologia
Delineando esse percurso histórico inicial da metafísica, a associação da metafísica à ontologia foi uma consequência inevitável da herança filosófica, de Parmênides e mais precisamente de Aristóteles. Tal associação foi alvo de ferrenhas críticas.
Etimologicamente,
A palavra ontologia é composta de duas outras: onto e logia. Onto deriva-se de dois substantivos gregos, ta onta (os bens e as coisas realmente possuídas por alguém) e ta eonta (as coisas realmente existentes). Essas duas palavras, por sua vez, derivam-se do verbo ser, que, em grego, se diz einai. O particípio presente desse verbo se diz on (sendo, ente) e ontos (sendo, entes). Dessa maneira, as palavras onta e eonta (as coisas) e on (ente) levaram a um substantivo: to on, que significa o Ser. O Ser é o que é realmente e se opõe ao que parece ser, à aparência. Assim, ontologia significa: estudo ou conhecimento do Ser, dos entes ou das coisas tais como são em si mesmas, real e verdadeiramente. (CHAUI, 2000, p. 266).
Na Filosofia Moderna, David Hume apresenta a principal crítica à metafísica clássica. Afirma a impossibilidade de um conhecimento que não seja assegurado pela experiência. Dessa maneira, “o empirismo alija da filosofia, e de qualquer pesquisa legítima, os problemas referentes a coisas que não sejam acessíveis aos instrumentos de que o homem dispõe. Hume entendia o empirismo nesse sentido.” (ABBAGNANO, 2007, p.327).
Após essa crise da metafísica apontada por Hume, Immanuel Kant questiona quais são as condições de possibilidades de conhecimento dessa ciência. Sendo assim, a metafísica se apresenta como impossível uma vez que tais realidades metafísicas escapam da nossa capacidade de conhecimento, pois escapam das categorias de tempo e espaço. As realidades metafísicas “escapam de toda possibilidade humana de conhecimento, pois são seres aos quais não se aplicam as condições universais e necessárias dos juízos, isto é, espaço, tempo, causalidade, qualidade, quantidade, substancialidade, etc. Essa metafísica não é possível” (CHAUI, 2000, p. 297). Dessa maneira, a metafísica só deverá ser concebida a partir das realidades dentro das categorias de tempo e de espaço. “A metafísica estuda, portanto, as condições universais e necessárias da objetividade em geral e não o Ser enquanto Ser” (CHAUI, 2000, p. 297).
Seguindo o período crítico em que se encontra a metafísica, Martin Heidegger apresenta em sua filosofia uma grande crítica à história da Filosofia ocidental que deixara o ser cair em esquecimento. “A questão sobre o sentido do ser não somente ainda não foi resolvida ou mesmo colocada de modo suficiente, como também caiu no esquecimento, apesar de todo interesse pela ‘metafísica’” (HEIDEGGER, 1988, p. 50). Necessitava, pois, de um deixar o ser revelar-se não na transcendência, mas na temporalidade, na imanência, ideia que ele desenvolve em sua obra Ser e Tempo. Sendo assim, a questão metafísica estava fadada a um simplesmente acompanhar o ser sendo. Heidegger propõe um primado do ser que se dá na temporalidade.
3. A primazia da relação ética: possibilidade metafísica em Levinas
No cenário histórico filosófico mundial do século XX, a partir da crise da metafísica, com todas as violências hegemônicas vigentes culminadas nas duas grandes guerras, com o acontecimento em Auschiwitz e no auge de uma filosofia subjetivista, é nos apresentada a proposta de Emmanuel Levinas de se pensar de outro modo a metafísica. Trata-se de uma proposta do primado da relação ética em detrimento do primado do ser tão evidenciado pela ontologia clássica.
A principal crítica que Levinas faz à tradição filosófica ocidental está ligada à supremacia do ser que massacra a categoria do Outro. “A filosofia ocidental foi, na maioria das vezes, uma ontologia: uma redução do Outro ao Mesmo” (LEVINAS, 1980, p. 31). A grande pretensão da filosofia ao longo da história foi de reduzir o Outro numa tentativa de absorvê-lo e possuí-lo. Nesse sentido, Levinas apresenta suas ferrenhas críticas ao pensamento socrático quando Sócrates afirma estar a essência na própria dimensão humana, na sua alma, firmando, assim, a “egologia” da filosofia. Nas palavras de Levinas, “o ideal da verdade socrática assenta, portanto, na suficiência essencial do Mesmo, na sua identificação de ipseidade, no seu egoísmo. A Filosofia é uma egologia” (LEVINAS, 1980, p. 31)
Ademais, ele critica também o pensamento de Martin Heidegger. “A ontologia heideggeriana que subordina a relação com Outrem à relação com o ser em geral (…) mantêm-se na obediência do anônimo e leva fatalmente a um outro poder, à dominação imperialista, à tirania” (LEVINAS, 1980, p. 34).
Tal fenômeno de tentativa de redução do Outro ao Mesmo, Levinas associa a ideia de totalização. Segundo Levinas (1980), a possibilidade de se pensar a metafísica não deve constituir uma totalização, uma fusão entre a categoria do outro e o metafísico. Deve haver, pois, uma distância, uma separação entre tais categorias. É proposta “uma relação, cujos termos não formam uma totalidade” (LEVINAS, 1980, p. 27). Trata-se de um estar “frente a frente” com Outro na sua irredutibilidade pelo Mesmo.
Ao afirmar que “a ontologia como filosofia primeira é uma filosofia do poder [que tem a capacidade de] neutralizar o ente para compreender e captar” (LEVINAS, 1980, p. 33), Levinas propõe uma recolocação da ontologia no pensamento filosófico. Trata-se, pois, de uma precedência da metafísica em relação à ontologia.
Em seu artigo A ontologia é fundamental?, Levinas afirma que “a relação com outrem, portanto, não é ontologia” (LEVINAS, 1997, p. 29). No lugar da ontologia, propõe que “a metafísica precede a ontologia” (LEVINAS, 1980, p. 30). Porém não entendida a metafísica no sentido clássico, mas a partir da relação de alteridade.
A metafísica em Levinas está relacionada à transcendência, pois “o movimento metafísico é transcendente” (LEVINAS, 1980, p. 23). Refere-se à possibilidade de algo que seja transcendente e é diferentemente do Mesmo. E é no absolutamente Outro que Levinas pensa a proposta metafísica. “O desejo metafísico tende para uma coisa inteiramente diversa, para o absolutamente outro” (LEVINAS, 1980, p. 21). Tal desejo metafísico está atrelado à ideia de Infinito. Para ele, “a ideia do infinito é o espírito antes de se expor à distinção do que se descobre por si mesmo e do que recebe da opinião” (LEVINAS, 1980, p. 13). Trata-se de uma ideia superior que extrapola a compreensão e o pensamento, o que Levinas chama de Ideatum (ideia superior).
Tal relação com o infinito assenta na ideia de um desejo metafísico, pelo transcendente sem que haja satisfação de tal desejo (Levinas, 1980, p. 22). É o primado da relação com o absolutamente Outro que se exprime no rosto. “O modo como o outro se apresenta, ultrapassando a ideia do outro em mim, chamamo-la, de facto, rosto” (LEVINAS, 1980, p. 37). A ênfase que Levinas dá em seu pensamento é à metafísica colocada nas relações éticas. “[A metafísica] está voltada para o outro” (LEVINAS, 1980, p. 21). Trata-se de um “movimento de saída de Mim para o Outro, frente a frente” (LEVINAS, 1980, p. 27). E assim, “A metafísica tem seu lugar nas relações éticas” (LEVINAS, 1980, p. 65).
Considerações finais
Ao abordarmos o pensamento de Emmanuel Levinas, a questão metafísica é nos apresentada no sentido de uma primazia das relações éticas. Rejeita a pretensiosa intenção da ontologia clássica em afirmar o primado do ser e abandona toda e qualquer tentativa de totalização e redução do Outro.
Levando em consideração o conceito clássico de metafísica apresentado por Nicola Abbagnano, no pensamento de Emmanuel Levinas não se é possível falar em metafísica. O conceito de metafísica da filosofia ocidental possui um discurso totalizante que tende a reduzir a categoria do Outro. Na filosofia de Levinas essa tendência totalizadora é rejeitada quando propõe uma nova maneira de visão da metafísica: a da alteridade. Trata-se do primado da relação ética.
Destarte, na filosofia de Emmanuel Levinas, a metafísica é uma impossibilidade enquanto ontologia que exalta a categoria do ser esquecendo-se da categoria do Outro. Em contra partida, é uma possibilidade enquanto relação ética e primazia do Outro: a metafísica da alteridade. Propõe um desejo pelo transcendente que se exprime no absolutamente Outro. Em Levinas, “morrer pelo invisível: eis a metafísica!” (LEVINAS, 1980, p. 23).
Referências
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
EMPIRISMO. In: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5. ed. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1998.
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: edições 70, 1980.
______. Entre nós: Ensaios sobre a alteridade. Tradução de Pergentino Stefano Pivatto et al. Petrópolis: Vozes, 1997.
METAFÍSICA. In: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5. ed. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia: Filosofia pagã antiga. Tradução de Ivo Storniolo. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007,v.1.