João Luiz da Silva*
O surgimento da escrita na Grécia significou um grande conjunto de conflitos e superações, em que diversas tradições redefiniram-se face às novas condições da vida histórica, do mundo da cidade e da escrita. Por que a necessidade da passagem da fala oral para a escrita? Qual a contribuição da escrita para a Grécia? O que a escrita trouxe de novo à sociedade grega? A esse respeito, o historiador e antropólogo Jean-Pierre Vernant escreveu duas obras: As Origens do Pensamento Grego e Mito e Sociedade na Grécia Antiga. O historiador Eric A. Havelock escreveu uma obra, A Revolução da Escrita na Grécia e suas conseqüências culturais, a partir das quais buscamos apresentar o surgimento das leis escritas na Grécia. Tendo como base as obras já citadas, o presente artigo tem o objetivo de analisar o processo do surgimento das leis escritas na Grécia, assim como identificar as contribuições da escrita na sociedade grega e as consequências deste surgimento.
Surgiam na Mesopotâmia, há aproximadamente quatro milênios, os primeiros “códigos” de leis da humanidade, visualmente as Leis de Eshnunna e o Código de Hammurábi. Seu conteúdo normativo, apesar de traduzir o esforço de tornar autêntica a autoridade real numa tarefa de regulamentar as relações na sociedade, buscando promover o que na cultura de então era considerado “justo”, revela-nos um conjunto de leis e de instituições jurídicas diferentes daquelas que se desenvolverão doze séculos depois na pólis grega.
A cultura da sociedade grega já existia, mas de forma que a fala oral predominava, não existindo debates públicos em que todos os cidadãos pudessem falar e argumentar. Tudo girava em torno daqueles que se diziam “melhores”. Nessa perspectiva, é preciso primeiramente saber como era a cultura da Grécia.
Ela começou sua carreira como uma cultura não-letrada, e permaneceu nessa condição por um vasto período depois da invenção do alfabeto, pois civilizações podem não ser não-letradas e contudo possuir suas próprias formas de arranjo institucional, de arte e de linguagem criativamente elaborada. (HAVELOCK, 1996, p.188).
A cultura clássica começou sem muitas estruturas em relação à alfabetização, visto que a grande maioria da população era composta por não-letrados. Desde o início, tal cultura possuía seu próprio jeito de ser, especialmente no que se refere à arte e à linguagem, que, como veremos, passarão por importantes mudanças. Da fala oral, que não proporcionava conhecimento fixo e sistematizado, elas evoluirão para a fala escrita, geradora de idéias e que repassa o conhecimento sólido entre gerações.
De um lado colocaram o prazer inerente à palavra falada: incluído na mensagem oral, esse prazer nasce e morre com o discurso que suscitou; de outro, do lado da escrita, colocaram o útil, visado por um texto que se pode conservar sob os olhos e que retém em si um ensinamento cujo valor é durável. (VERNANT, 1999, p.174).
A mudança da linguagem compreende uma série de processos técnicos, econômicos, políticos, religiosos e simbólicos que atualizaram os parâmetros de convívio comunitário, projetaram novas classes sociais e novos recursos educacionais, deram sustentação ao Estado e, posteriormente, permitiram reformá-lo.
Era a palavra que formava, no quadro da cidade, o instrumento da vida política; é a escrita que vai fornecer, no plano propriamente intelectual, no meio de uma cultura comum e permitir uma completa divulgação de conhecimentos previamente reservados ou interditos. Tomada dos fenícios e modificada por uma transcrição mais precisa dos sons gregos, a escrita poderá satisfazer essa função de publicidade porque ela própria se tornou, quase com o mesmo direito da língua falada, o bem comum de todos os cidadãos. (VERNANT, 2002, p.56).
É perceptivo que Vernant apresenta toda a transformação que se deu na sociedade grega. Era um sistema de fala que agora toma outro rumo. Eis que surge uma nova linguagem social que, com seu potencial de tipo formular, obedece a regras mais flexíveis que a composição oral. De modo geral, a escrita em prosa marca um novo patamar. Na verdade, a redação em prosa não constitui somente, em relação à tradição oral e às criações poéticas, um outro modo de expressão, e sim uma nova forma de pensar.
(…) o discurso muda de estatuto (…) não é mais o privilégio exclusivo de quem possui o dom da palavra; pertence igualmente a todos os membros da comunidade. Escrever um texto é depositar sua mensagem, es meson, no centro da comunidade, isto é, colocá-lo abertamente à disposição do conjunto do grupo. Enquanto escrito, o logos é levado à praça pública (…). (VERNANT, 1999, p.175).
A partir do séc. VII a.C., o chamado Pré-Direito começou a ceder espaço, lentamente, ao Direito. Em meados desse século, numa cidade da ilha de Creta, pela primeira vez fixou-se por escrito uma decisão da comunidade políade. Aos poucos, a lei começará a ser registrada e passará ao domínio comum: escrita sobre uma pedra exposta ao olhar em lugar público, está sob a vista de todos os cidadãos, mesmo que nem todos a possam efetivamente ler.
Desta forma, todos os cidadãos têm o direito de colocar em comum aquilo que é seu pensamento. O poder – a arché – passa então a circular entre a comunidade que possuía plenos direitos de cidadania, que correspondia, pelo menos até finais do séc. VII (no caso ateniense), à elite terratenente e militar.
Compreende-se (…) o alcance de uma reivindicação que surge desde o nascimento da cidade: a redação das leis. Ao escrevê-las, não se faz mais que assegurar-lhes permanência e fixidez. Subtraem-se à autoridade privada dos basileis, cuja função era “dizer” o direito; tornam-se bem comum, regra geral, suscetível de ser aplicada a todos da mesma maneira. (VERNANT, 2002, p.57)
Na sociedade homérica (séc. XII a VIII), o direito era autoritário, era uma prerrogativa real. Na cidade aristocrática (séc. VIII a VI), a justiça estava nas mãos da elite, que dela fazia uso para seus benefícios, provocando uma grave crise social. Com o surgimento das leis escritas, a situação começou a mudar, pois, assim, mais dificilmente elas seriam alteradas. Agora, as leis não eram mais privadas (de acordo com os basileis), mas eram aplicadas a todas as pessoas da mesma maneira.
A partir do séc. VIII, na Grécia Antiga, aconteceu um processo absolutamente original do ponto de vista político. Nesse período, o poder é repartido entre membros da elite militar e terratenente, descendentes da nobreza homérica, que desmembram o poder em três funções: militar, exercida pelo polemarco; administrativa, pelo arconte; e religiosa, pelo arconte basileis, ou seja, a figura do rei destituída de seus poderes políticos.
Segundo Vernant (2002, p. 65), “Apesar de tudo o que os opõe no concreto da vida social, os cidadãos se concebem, no plano político, como unidades permutáveis no interior de um sistema cuja lei é o equilíbrio, cuja norma é a igualdade”. Diferente do que era antes, as leis escritas viabilizaram um equilíbrio na sociedade. Dessa forma, a igualdade ficou mais evidente.
Assim, se faz necessário observar que o surgimento das leis escritas na Grécia proporcionou a participação popular, a democratização e condições para o pensamento filosófico. Segundo Vernant (2002, p. 57-58), “[…] sua ambição não será fazer conhecer a outros uma descoberta ou uma opinião pessoais; o que vão querer, depositando sua mensagem é fazer o bem comum da cidade, uma norma suscetível, como a lei, de impor-se a todos”.
(*) Graduando em filosofia na Faculdade Arquidiocesana de Mariana
Referências
HAVELOCK, Eric A. A Revolução da Escrita na Grécia e suas conseqüências culturais. Tradução Ordep José Serra. São Paulo: Universidade Estadual Paulista; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
VERNANT. Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. Tradução Ísis Borges B. da Fonseca. 12. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2002.
______. Mito e sociedade na Grécia Antiga. Tradução Myriam Campello. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
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Mui bem “elucidada” sua pesquisa, me ajudou e muito, como ponto de partida para um dos meus trabalhos dissertativos na faculdade,
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Eu aprecio o esforço colocado neste site e vai visitar aqui mais vezes.
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Ola. Obrigado.Excelente artigo.
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Quais são as leis gregas?