Euclides Evangelista Marçal [1]
Frequentemente a ideia de virtude, tomada como meio de aperfeiçoamento da sociedade e do ser humano, perde-se em meio ao emaranhado ideológico veiculado pelos meios globais de comunicação de nosso século. Este artigo propõe uma breve refontização de determinadas características referentes ao comportamento humano e sua relação com a areté, a virtude entendida com base, especificamente, no contexto da cultura homérica da Grécia Antiga (séc. XII-VIII a.C.). Aqui, faz-se necessário propor uma análise interpretativa para uma resumida diferenciação entre a virtude no sentido moderno e aquela situada nos poemas Ilíada e Odisseia, conjunto de cantos atribuídos a Homero, poeta de cuja existência não há sequer certeza, e que retratam, respectivamente, a Guerra de Troia e o regresso do guerreiro Ulisses à sua terra natal, Ítaca. Serão visualizados alguns dos principais personagens considerados protótipos das diversas perspectivas pelas quais a areté pode ser analisada, que, por isso, acabaram se tornando modelos para o aperfeiçoamento e o ensino da mesma entre as gerações, a chamada paideia.
1 O Conceito de Areté
Areté era uma palavra utilizada no idioma grego que, entre outras coisas, trazia à tona certos traços da personalidade do homem. Sua correspondente mais usada na língua portuguesa, virtude, normalmente é definida como: “1. Disposição firme e habitual para a prática do bem. 2. Boa qualidade moral; força moral. 3. Ato virtuoso. 4. Qualidade própria para a produção de certos efeitos; eficácia” (VIRTUDE, 1996). Os ideais de virtude relacionados ao homem do campo em Hesíodo, ao homem político com os Sofistas e ao hábito orientado para o bem com Aristóteles teriam, todos, como precursores as sagas de Homero. Para compreendermos a ideia de areté, diferenciando-a das afirmações convencionais sobre virtude, é preciso nos situarmos no contexto da Grécia Antiga, por volta do século VIII a.C. Nessa época, segundo a tradição, teria vivido Homero, poeta grego a quem são atribuídas as epopéias Ilíada e Odisseia, tramas guerreiras repletas de ação, fruto da tradição oral compilada e remontada ao longo dos séculos. Em ambas se destaca a figura de um herói, sempre protagonista de grandes feitos corajosos e situado como intermédio entre os homens e os deuses, uma vez que, na maioria das vezes, é fruto do encontro amoroso entre as duas dimensões.
Tomando como base os poemas e o contexto cultural, a areté se manifesta num caráter geral que não aponta, necessariamente, para as ações e posturas humanas que promovem o bem. Nem sempre é possível, como na definição citada, atribuir o adjetivo “moral” às ações realizadas por alguém com areté, porque ora elas se situam em outros âmbitos, ora contrariam o que hoje seria considerado moralmente aceitável. No herói homérico, a virtude assim compreendida aparece de maneira totalmente abrangente em seu modo de vida, na atitude diante das situações e no cuidado a ser tido consigo mesmo. Seja para ajudar, assim como superar ou até destruir o adversário, o importante é ser o melhor dos melhores naquilo que se faz. A definição de areté é muito propriamente unificada com o conceito de excelência, relacionada tanto ao que se refere ao homem como à utilidade de certos animais e até mesmo objetos domésticos. Por exemplo: a areté de uma faca é tanto maior quanto melhor ela cumprir sua função de cortar e a areté de um animal de carga está relacionada à sua robustez.
2 A Areté nos poemas homéricos
Para o guerreiro, ser apenas agathós, isto é, bom, portador do bem, não é o bastante. É preciso, incessantemente, alimentar a ânsia por romper os próprios limites e deixar para trás o semelhante, visto sempre como concorrente, cuja virtude mostra o que deve ser superado sob a pena do valor da própria vida. Ou seja, a meta visada é ser aristós, (superlativo de agathós), aquele que é detentor de areté, e, por isso é o melhor, não no sentido moral, como já foi exposto, mas em sua habilidade própria, especialmente a coragem de guerreiro, o êxito militar, o vigor do corpo, enfim, a mais elevada perfeição como harmonia do ser. Na Ilíada, transparece tal rivalidade nesta fala de Glauco a Diomedes, que evoca não um caráter patriótico, conquanto este possa ser encontrado em outros trechos de Homero, mas a medição da virtude pessoal por meio da prática guerreira:
Hipóloco é meu pai, que, no expedir-me / De Ílio em socorro, superior coragem / Me encomendou; que nunca desmentisse / De meus nobres avós, não só de Efira, / Da Lícia em peso altíssimos guerreiros. / Deste preclaro sangue eu me glorio.” (HOMERO, Ilíada, VI, 181-186)
Mas, diante do exposto, não devemos pensar que o simples fato de se alcançar o ideal de uma perfeição que atinja e resulte em aprimoramentos constantes do corpo e da alma (kalokagathia) seja satisfatório por si só. Caso não haja reconhecimento das virtudes por parte da sociedade, o guerreiro considerará inútil seu esforço e seus frutos. Aqui entra a noção da timé, a honra em função da qual o homem gasta sua vida e, se preciso for, oferece sua morte. Sob tal prisma, vê-se logo que a areté, muito mais que de qualquer outra espécie, é uma moral de classe, onde a vergonha, no sentido da humilhação, é a fatal desolação que faz de um morto digno alguém maior que um vivo sem dignidade (GALITO, 2012, p. 3-4).
No Livro I da Ilíada, há o exemplo de Aquiles, que tem ferida a sua timé no momento em que Agamenon, rei de Micenas, até então seu aliado, lhe rouba a concubina Briseida. Por tal ousadia, Agamenon fere também sua própria areté, não tanto pela imoralidade do ato, mas porque se coloca na possibilidade de ser alvo de censura. Aquiles, então, parte rumo a Troia movido não por motivos alheios ao senso da verdade e da justiça, muito menos por patriotismo ou juramento, mas em busca da timé e da kléos (glória), atributos que atingem a legitimação e ápice no momento de sua morte.
Platão, no Hípias Menor (365a), apresenta um diálogo entre Sócrates e o sofista Hípias a respeito de quem seria mais virtuoso: o herói Aquiles, da Ilíada, filho da deusa Tétis e do mortal rei Peleu, ou Odisseu, rei de Ítaca, principal personagem da Odisseia. O que sucede é que Hípias propõe que a areté de Aquiles é superior, já que se trata de uma excelência relacionada diretamente à coragem heróica e ao vigor do corpo, e quando o herói se utiliza de mentiras, o faz por ignorância. A refutação ao argumento é a de que os vícios de Ulisses são tornados qualidades, já que sua astúcia, seus subterfúgios e sua fama de enganador são colocados em prática com o único intuito de defender sua óikos (casa). “Se a Ilíada retrata a excelência do corpo e a coragem, a Odisseia apresenta a excelência da mente como igualmente necessária à sobrevivência e à vitória” (CURADO, 2010, p. 54).
Ainda na Odisseia, diante da sagacidade e persistência de Ulisses, outra figura ganha destaque por seu tipo especial de excelência: trata-se de sua esposa, Penélope, que, ao longo do poema, tem seu nome inúmeras vezes acompanhado dos adjetivos “prudente” e “sensata”. Com efeito, a areté feminina, ao contrário da masculina, não estava relacionada à perspicácia da mente, ao vigor do corpo, à coragem ou às demais faces da excelência guerreira. Os atributos físicos da mulher constituíam sua areté própria (JAEGER, 1995, p. 46), mas, longe de resumirem sua virtude, eram um fator situado ao lado da oikonomia (capacidade de administrar a casa), refinamento dos modos, obediência e fidelidade. Penélope, mesmo vinte anos após a partida do marido para Troia, e também pressionada pela legião de cento e oito pretendentes que disputavam sua mão (HOMERO, Odisseia, I, 86), ainda insistia em esperar seu retorno, cuidando do filho Telêmaco. Sendo mortal, não podia ser comparada aos deuses (HOMERO, Odisseia, V, 154-155), mas sua beleza física da juventude retornaria em determinado momento por uma especial intervenção dos mesmos. Quando Príamo leva para Troia a princesa espartana Helena, a terrível invasão consequente não é o bastante para sacar-lhe o respeito diante da sociedade troiana: “Mesmo a pura beleza de Helena, que tantas desgraças atraíra já sobre Troia, basta para que os anciãos da cidade se desarmem ante a sua simples presença e atribuam aos deuses todas as culpas.” (JAEGER, 1995, p. 46)
3 A Paideia grega a partir de Homero
Introduzindo agora o conceito de paideia no contexto homérico, é preciso considerar os ideais aristocráticos não apenas como aqueles que visam colocar o aristós como responsável pelo poder no Estado (kratos), mas como meio de perpetuação dos valores da excelência guerreira. “Apesar das transformações sofridas pela Grécia Antiga ao longo de sua história, a trindade poeta, homem de estado e sábio permaneceu como eixo central desta cultura” (CURADO, 2010, p. 49). O termo paideia, aplicado à definição do processo formativo do intelecto, do corpo e da virtude, indica tanto a própria ação educativa quanto seu resultado (GALITO, 2012, p. 1-2).
Como já foi dito, a ideia de areté, mesmo referente a um mortal, trazia à tona um atributo sobrenatural confiado pelos deuses, sobre o qual eles mesmos detinham plenos poderes. Prova disso é o que Jaeger (1995, p. 26) afirma a respeito, por exemplo, de um escravo que, por algum motivo, traga misturado ao seu sangue o de uma família nobre: “Zeus tira-lhe metade da areté e ele deixa de ser quem era antes.” Talvez fosse essa ligação da excelência com a ação do sobre-humano que fez o centauro Quíron ser contemplado pela tradição oral ao longo dos tempos como o educador de Aquiles. A Ilíada, porém, mostra que Peleu teria confiado tal função a Fênix, que era seu vassalo e príncipe dos Dólopes. O próprio Fênix afirma: “[…] Contigo, estranho jovem / À guerra e discussões que heróis afamam, / Longevo o bom Peleu para Agamemnon / De Fítia me expediu, que na loqüela / Te amestrasse […].” (HOMERO, Ilíada, IX, 362-366). Há a certeza de que a areté homérica pode ser ensinada, pois, embora garantida pela linhagem familiar e pela intervenção divina, está inteiramente condicionada ao bom uso que se faz dela (CURADO, 2010, p. 55).
O ideal paidêutico se encontrava nos poemas homéricos, cujos arcaicos e lendários heróis eram o modelo realmente perfeito a ser imitado pelas novas gerações. A poesia composta e cantada pelos aedos nas cortes e banquetes reais levou à consagrada afirmação de que os poetas foram os primeiros educadores dos gregos. A tradição das sagas heróicas era eficaz para a educação dos mais jovens, muito mais do que os preceitos proverbiais orais, uma vez que na época ainda não se podia contar com o auxílio de uma ética devidamente sistematizada. Hoje, uma história surge apenas como um acontecimento singular que só pode servir de modelo naquilo que, porventura, estiver de acordo com a vontade do ouvinte ou se aplicar às necessidades do momento. O mito na Grécia daquele período não precisava estar necessariamente ligado a essa espécie de moral de analogia, mas, pelo contrário, na maioria das ocasiões adquiria um significado normativo. Sua natureza não estava vinculada à educação por meio da comparação de realidades, mas da aplicação direta e irrevogável da excelência.
Considerações Finais
Pode ser observada com clareza a diferença entre a concepção antiga de virtude e aquilo a que essa palavra nos remete em nossos dias devido, principalmente, à influência que os filósofos posteriores a Homero exerceram sobre tal definição. A areté, muito longe de estar acessível a todos os homens, constituía, primordialmente, uma moral de elite, por estar ligada à nobreza familiar e à sua quantidade de riquezas materiais. Somente os aristocratas tinham acesso às epopeias, o que limitava, consideravelmente, o poder da paideia. As próprias obras atribuídas a Homero foram alvos de inúmeras críticas pelo fato de não se deterem especificamente aos relatos históricos, mesclando elementos mitológicos e bélicos com personagens cuja areté estava quase infinitamente acima das capacidades humanas pelo fato de os mesmos se tratarem, muitas vezes, de semi-deuses. Persiste, no entanto, a necessidade de visualização daquela época como raiz primária daquela virtude que, mais tarde, seria redefinida e ganharia nova visão, principalmente, pela ética aristotélica.
Nota:
1. Graduando em Filosofia na Faculdade Arquidiocesana de Mariana
Referências
CURADO, Eliana Borges Fleury. O movimento sofista e o ensino da areté. 2010. 121 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2010. Disponível em: <http://ppge.fe.ufg.br/uploads/6/original_Tese_Eliana_Borges_Fleury_Curado.pdf?1337352757>. Acesso em: 04 maio 2013.
GALITO, Maria Sousa. Areté. Centro de Investigação – Ciências Políticas e Relações Internacionais, Lisboa, n. 2, p. 1-13, 2012. Disponível em:
<http://www.ci-cpri.com/wp-content/uploads/2012/01/Arete1.pdf> Acesso em: 04 maio 2013.
HOMERO. Ilíada. Tradução Manoel Odorico Mendes. [Lisboa]: Typographia Guttemberg, 1950.
______. Odisseia. Tradução Manoel Odorico Mendes. 3. ed. São Paulo: Atena, 1970.
JAEGER, Werner W. Paideia: a formação do homem grego. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
PLATÃO. Hípias Menor. 2. ed. Lisboa: Ed. 70, 1999.
VIRTUDE. In: ROCHA, Ruth. Minidicionário Ruth Rocha. São Paulo: Scipione, 1996.
#
Excelente