Lucas Santos Aredes
A tragédia se define por meio de um conflito, sendo aquele da ordem da relação entre physis (natureza) e nomos (lei). Em outros termos, isso significa um conflito, por exemplo, entre leis humanas e divinas, entre o indivíduo e sua constante fuga em cumprir um destino determinado [1]. O presente artigo aponta para um aprofundamento de análise sobre o conflito grego e a utilização da tragédia como ferramenta crítica na apresentação do mesmo à sociedade, sendo esta apresentada de forma oral, possibilitando várias interpretações.
1 A organização social grega e o surgimento da polis
1.1 A influência da lei divina na sociedade
A presença dos deuses na vida dos gregos está diretamente ligada a todas as etapas de vida, seja desde o nascimento, o crescimento, o trabalho e principalmente o destino. Incluindo também a vida depois da morte. Essa relação se fez presente historicamente para que pudessem ter uma referência à qual iriam remeter as súplicas e oferendas, manifestando-se, assim, como seguidores de determinados rituais. A vida dos deuses também influenciava a vida dos humanos, pois: “a divindade é sagrada e justa, e sua ordem, eterna e inviolável” (JAEGER, 1995, p. 304).
As leis divinas são aquelas que não eram escritas, sendo assim, naturais e transmitidas oralmente nas famílias. A figura do patriarca na família era a do detentor da lei. Quando falava ou ordenava, sua palavra tornava-se lei a partir daquele momento. Como os deuses também eram seres que determinavam o destino próprio da natureza e da condição humana, suas ações se tornavam como que leis.
Na segunda fase [de formação dos conceitos de deuses], há a descoberta do sentimento da individualidade do divino, dos elementos pessoais do sagrado. O surgimento dessa nova etapa se dá à medida que a ação exercida pelo homem sobre o mundo se torna mais complexa, fazendo surgir à divisão do trabalho. Assim, toda atividade humana particular ganha o seu deus funcional, que vigia cada etapa do trabalho dos homens. A regulação da atividade encontra sua medida na própria periodicidade dos ciclos naturais (as estações do ano, o plantio, a colheita etc.). E cada ato, por mais especializado que seja, adquire um significado religioso: o homem recorre a divindades que devem protegê-lo a cada momento (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 57).
O desenvolvimento da sociedade grega foi sendo influenciada pela constante presença divina e nas tradições passadas de geração em geração. Mais tarde avançariam os gregos na capacidade de reflexão e discussão diante do surgimento da palavra que abordaremos no tópico a seguir.
1.2 O surgimento da palavra e da polis
O surgimento da polis se dá com o surgimento da palavra, que passa agora a ser pública, de controle público, pertencendo a todos os cidadãos e não mais à realeza. Com essa forma de organização da sociedade grega, contrária ao poder do monarca, tudo passa a ser discutido na ágora, com a participação dos cidadãos. Segundo Vernant (2002, p. 53-54),
o que implica o sistema da polis é primeiramente uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os instrumentos de poder. Torna-se o instrumento político por excelência […]. A palavra não é mais o termo ritual, a fórmula justa, mas o debate contraditório, a discussão, a argumentação.
A palavra, antes da escrita, estava ligada a um suporte vivo que a pronunciava, repetindo e fixando o evento por meio da memória pessoal. (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 64). Com o seu surgimento e, consequentemente, o da lei escrita, as leis tornam-se fixas de um modo que possam ser debatidas.
Enquanto os rituais religiosos são cheios de fórmulas mágicas, termos fixos e inquestionados, os escritos deixam de ser reservados apenas aos que detêm o poder e passam a ser divulgados em praça pública, sujeitos à discussão e à crítica. […] A escrita gera uma nova idade mental porque exige de quem escreve uma postura diferente daquela de quem apenas fala. Como a escrita fixa a palavra, e conseqüentemente o mundo, para além de quem a proferiu, necessita de mais rigor e clareza, o que estimula o espírito crítico (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 64).
Com a possibilidade das leis serem discutidas entre os cidadãos abrem-se oportunidades de serem utilizados outros meios de apresentar os importantes pontos que devem ser discutidos para o bom andamento da sociedade.
2 A tragédia grega
Um mecanismo utilizado pela sociedade grega para denunciar e apresentar os conflitos é a tragédia. Segundo Jaeger, (1995, p. 309) “a tragédia grega é mais a expressão do sofrimento do que uma ação”, sendo que não se preocupa com a organização da vida, mas com as particularidades. Busca por meio de superação definir modelos e esquematizar os problemas morais e políticos. Tem por objetivo apresentar os conflitos existentes na sociedade grega para que a assembléia possa interpretá-los e resolvê-los e esteja atenta a pensar sobre os problemas que existem. Tinha grande influência do deus grego Dionísio e das apresentações que eram oferecidas a ele.
Aristóteles mais tarde também conceitua a tragédia sendo como
[uma] imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o “terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções (ARISTÓTELES, Poética, n. 27, p. 205).
A utilização da tragédia não era para a diversão do público e nem para muitas apresentações, tratava-se de apresentar à sociedade indiretamente os conflitos, não os resolvendo, sendo que estes eram apresentados por homens mascarados. Os tragediógrafos, assim chamados aqueles que escreviam os enredos da tragédia, não possuíam a intenção de arrancar do público os aplausos e nem as emoções, mas levá-los a reflexão daquilo que ao fundo, na tragédia se desenvolvia o conflito provocando o assim chamado efeito catarse. Os diálogos centrais da tragédia grega estavam nos personagens principais, hoje assim chamados de protagonista e antagonista, que representavam para a platéia os conflitos.
2.1 O conflito de Antígona
Analisando do ponto de vista filosófico, o conflito trágico em destaque parte de um questionamento da protagonista ante as atitudes tomadas e determinadas pelo rei. O conflito escrito por Sófocles era marcado por uma sociedade que experimentava a mudança da concepção de physis para uma concepção de nomos, uma lei transmitida pelas gerações e representada por uma figura patriarcal para uma palavra escrita como interpretação da lei pelos humanos.
[O rei Creonte declara:] É impossível conhecer as opiniões e princípios do homem que não tenha enfrentado, ainda, o exercício do governo e da legislação. Para mim, qualquer que, encarregado do total governo de uma cidade, não ausculte o parecer, os conselhos, dos melhores; e, com medo do que possa suceder, se manifesta calado; esse tal, o classifico eu – e não só agora, mas desde sempre! – um péssimo indivíduo. […] Quanto a Polinices, o exilado, que pelo fogo tentou destruir, de alto a baixo, a sua pátria e os deuses da sua raça; que quis derramar o sangue de alguns parentes e escravizar outros; a esse, mandei anunciar pelos arautos, em toda a cidade, que nenhuma das honras lhes sejam prestadas, nem com sepultura nem com lágrimas, e o deixem sobre a terra, presa exposta à voracidade das aves e dos cães; miserável despojo à vista de todos. (SÓFOCLES, [19–], p. 16).
A tragédia Antígona de Sófocles se inicia com o diálogo de duas irmãs que discutiam sobre seu irmão morto em batalha lutando contra o reino de Tebas, cujo funeral não havia sido autorizado pelo rei. Segundo as tradições, “a lei divina […] obriga a respeitar os mortos” (SANTOS, 2012, p. 23). Uma quer sepultar o irmão e a outra resiste.
Desrespeitando a autoridade do rei, Antígona faz todos os ritos para o funeral e sepulta seu irmão para que ele também possa ir para o Hades. Quando o rei descobre que o corpo havia sido enterrado, fica furioso por ter sido desrespeitado e pede aos guardas que possam ir à procura do suposto desrespeitador da sua ordem.
Com uma armadilha os guardas conseguem prender Antígona, que é levada até o rei Creonte para que se explique e seja julgada por desrespeitar a ordem do soberano. Condenada a ser enterrada viva, Antígona se mantém firme na atitude de ser fiel aos deuses, o que aprendeu ao longo de sua vida. O rei é exortado por seu filho e noivo da condenada a refletir sobre seu ato que deveria ser revisto, pois a sabedoria se dá por meio da reflexão e do uso do bom senso. O filho sai à busca da noiva para tentar salvá-la.
O rei ouve o conselho de Tirésias, um homem cego e muito sábio, que realizava profecias para que ele fosse tentar corrigir o erro cometido contra Antígona, que naquele ponto, já havia se suicidado. Chegando ao local onde ela estava, encontra-a morta com seu noivo ao lado. Com a dor da morte da amada, o filho também se suicida na presença do pai. A rainha também se mata ao saber que seu filho havia morrido.
O enredo trágico da obra Antígona de Sófocles termina com essas mortes e o rei sozinho à espera de sua morte! “Que venha, que venha, que surja, dentre os meus dias, o último: o que me levará ao derradeiro destino. Que venha! Que venha!, e já não veja eu um novo dia.” (SÓFOCLES, [19–], p. 50). Com as falas finais de Creonte encerra-se a tragédia não tendo acontecido a resolução do conflito.
2.2 Confronto entre leis humanas e leis divinas
A tragédia Antígona de Sófocles trata da apresentação de um conflito gerado em torno das leis divinas e as leis humanas. Por um lado, Creonte, representante da lei humana e Antígona da lei divina. Os gregos são muito influenciados pelos deuses. No conflito, a lei humana era dita pela realeza, cuja palavra era a própria lei, imposta a própria realeza e aos outros cidadãos. Antígona segue a tradição que havia recebido: a de confiar nos deuses e na sua lei.
Acontece que no conflito a ato de “[…] Sófocles […] ‘transferir o total da esfera da legalidade para a da moralidade, das limitações do ritual para a religiosidade, chegando puramente ao humano; ’”. (POHLENZ [1] apud PEREIRA, 1993, p. 413). Pode-se, portanto concluir que a lei humana deve ser elaborada mediante a relação com a lei divina em função contínua de conciliação entre elas.
O conflito quer representar uma sociedade marcada pela mudança e transposição das leis. A presença mítica e divina marca o culto e a devoção do povo aos deuses, sendo a religiosidade o seu contato direto. A mulher representa os traços desta sociedade marcada ainda pela influência dos deuses e da ideia da natureza ainda não revelada ao homem. A figura monarca marcava a manifestação humana de reger a sociedade com suas leis, não havendo maneiras de interpretações, mas somente, que deveria ser acatada por todos. A polis como nova fonte de organização de uma sociedade possui soberania na criação e discussão das leis. Porém o rei, também como soberano da cidade impunha sua lei. Do conflito entre a lei humana e a divina resultou-se somente o desastre total para os defensores de ambas. (PEREIRA, 1993, p. 415)
O conflito em questão não quer levar aqueles que a prestigiam a dividir-se em quem estar certo ou errado, mas promover uma reflexão possível de que dentro de uma sociedade estará sempre em conflito o que se é ditado pela lei divina e pela lei humana.
Considerações finais
A tragédia grega não tem como característica própria resolver os conflitos, mas sim apresentá-los. O conflito de Antígona construído em torno da discussão do rei e da protagonista, leva à reflexão de uma sociedade marcada por dois pólos culturais: a influência dos deuses e o poder que a palavra possui. Também entre leis divinas que são transmitidas por meio de tradições e leis humanas impostas pela palavra do rei. Assim sendo, a tragédia em análise não apresenta uma resolução para os conflitos, mas somente seu contexto para que possa ser interpretado e discutido.
Notas
Referências
ARANHA, M.L.A; MARTINS, M.H.P. Filosofando: introdução à filosofia, 2. ed. rev. atual. São Paulo: Moderna, 1993.
ARISTÓTELES. Poética. In.______. Ética a Nicômaco; Poética. Tradução Leonel Vallandro, Gerd Bonheim, Eudoro de Souza. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. v. 2. (Os Pensadores)
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução Artur M. Parreira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. A época clássica: Sófocles. In: ______. Estudos da história da cultura clássica. 7. ed. Lisboa: Calouste Gulkberkian, 1993. p. 413-422. 1 vol.
SANTOS, José Gabriel Trindade. Morte e vida na Antígona de Sófocles. Archai, [Brasília],n. 8, p. 21-25, jan./jun. 2012. Disponível em: <http://seer.bce.unb.br/index.php/archai/article/view/7604/5880>. Acesso em: 06 maio 2013.
SÓFOCLES. Antígona, Ájax, Rei Édipo. Tradução António Manuel Couto Viana. Lisboa: Editorial Verbo, [19–].
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Tradução Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro: Difel, 2002.
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Muito bom o seu texto! Bem argumentado e direto, parabéns!