Rosemberg Nascimento*
Este artigo tem como objetivo primordial fazer uma exposição de maneira sucinta das aulas de Michel Foucault, do dia três de março de 1982. A trajetória que perpassa o pensamento foucaultiano é marcada pela hermenêutica do sujeito. Assim sendo, delinearemos o percurso de explanação tanto da primeira quanto da segunda hora de aula.
Michel Foucault (1926-1984) no limiar da primeira hora do dia três de março delineia uma análise dos efeitos que se remetem ao princípio, à conversão do si ordenado pelo conhecimento. Por outro lado, esse converter-se de si, corresponde à prática de si. Na perspectiva dos gregos em geral, chamavam de áskesis. Em sua primeira explanação de seu curso, Foucault mostra minuciosamente no final da mesma o termo grego áskesis. Os gregos na época helenística e romana estão muito longe de compreender o termo que denominamos de ascese. “Nossa noção de ascese é, aliás, mais ou menos modelada e impregnada pela concepção cristã”. (FOUCAULT, 2004, p.399).
Ademais, a ascese dos filósofos pagãos ou a ascese da prática de si na época helenística e romana, ambas distinguem-se da ascese do ponto de vista cristão em alguns aspectos. Na ascese filosófica, ou na ascese da prática de si, o objetivo não seria a renúncia propriamente de si do sujeito. Pelo contrário, “na ascese filosófica não se trata de regrar a ordem dos sacrifícios, das renúncias que se deve fazer de uma ou outra parte, de um ou outro aspecto do nosso ser. (…) trata-se de dotar-se de algo que não se tem, de algo que não se possui por natureza”. (FOUCAULT, 2004, p.400). A ascese tem como finalidade constituir o sujeito que se constituía a si mesmo.
Conforme afirma Foucault, “a ascese filosófica, a ascese da prática de si não tem por príncipio a submissão do indivíduo à lei. Tem por princípio ligar o indivíduo à verdade”. (FOUCAULT, 2004, p. 400). Assim, estes são os aspectos primordiais da ascese filosófica. A ascese seria o que impele, isto é, o que permite adquirir os discursos verdadeiros, dos quais se tem necessidade em todas as circunstâncias e acontecimentos a fim de o sujeito estabelecer uma relação adequada e ao mesmo tempo plena consigo mesma. Vale salientar também que “a ascese (…) é o que permite fazer de si mesmo o sujeito que diz a verdade e que, por esta enunciação da verdade, encontra-se transfigurado, e transfigurado precisamente pelo fato de dizer a verdade”. (FOUCAULT, 2004, p.400).
Deste modo, sendo a ascese o que permite e, concomitamente, sustenta a veracidade do discurso, ela faz com que o sujeito tenha segurança para sustentar o discurso em seus argumentos. Com isso, a ascese faz com que o sujeito se torne o enunciado do próprio discurso. Na ascese cristã, percebe-se um movimento de renúncia a si efêmero, como movimento essencial que contribui a objetivação de si em um discurso verdadeiro. O sustentáculo dessa ascese como subjetivação do discurso verdadeiro serão as técnicas e também as práticas das quais emergem a escuta, a leitura, a escrita e o diálogo. Contudo, Foucault elucida como podemos compreender o procedimento feito acerca da ascese por meio do diálogo de sujeitos.
O primeiro procedimento na ascese e na subjetivação do discurso verdadeiro, uma vez que o escutar, em uma cultura que sabemos bem ter sido fundamentalmente oral, é o que permitirá recolher o lógos, recolher o que se diz de verdadeiro. (FOUCAULT, 2004, p.402).
A escuta é o que possibilitará o sujeito convencer-se de que a verdade se encontra no lógos. Foucault afirma que a verdade ouvida e escutada deve causar certa estranheza no sujeito. No entanto, os gregos reconheciam a partir da escuta a natureza ambígua existente na audição do sujeito. “Na audição, mais do que em qualquer outro sentido, a alma encontra-se passiva em relação ao mundo exterior e exposta a todos os acontecimentos que dele lhe advêm e que podem surpreendê-la”. (FOUCAULT, 2004, p.402). Plutarco já dizia que não se pode ouvir o que se passa ao seu redor. O ouvir é mais pathetikós, passivo de todos os sentidos.
Na segunda hora de aula, Foucault delineia os princípios fundamentais de uma doutrina do sujeito que fala. O objeto ou a finalidade de uma leitura filosófica não está em obter conhecimento da obra de um determinado autor, nem mesmo tem por função aprofundar sua doutrina. Por meio da leitura é que Foucault encontra o sentido do objetivo principal tratando-se de meditação. Neste sentido, ele faz uma exposição acerca da temática que inquieta o sujeito, a morte “no sentido em que os latinos e os gregos entendiam, não significa pensar que se vai morrer. Nem mesmo significa convencer-se de que se vai efetivamente morrer”. (FOUCAULT, 2004, p. 429). Além dessa meditação, Foucault atribui a palavra e, simultaneamente, a reconhece como espécie de signos, se assim podemos dizer dos jogos de linguagem que se dão a partir do diálogo de sujeitos. Foucault diz que Santo Agostinho passou por um regime no qual a relação do sujeito na busca da verdade não seria apenas condicionada a causa principal. O bispo de Hipona quer mostrar que seria impossível que o sujeito diga a verdade sobre si mesmo. Por mais que ele tente dizer, não conseguirá.
A obrigação que tem o sujeito de dizer-verdadeiro sobre si mesmo, ou ainda, o princípio fundamental de que é preciso o dizer-verdadeiro sobre si mesmo a fim de se estabelecer com a verdade em geral uma relação tal que nela se possa encontrar a própria salvação, (…) é algo que de modo algum existiu na antiguidade grega, helenística ou romana. (FOUCAULT, 2004, p.437).
O sujeito, que é guiado à verdade pelo discurso do mestre, não tem que dizer a verdade sobre si mesmo. Pelo fato de o sujeito não ter que dizer algo sobre a verdade, consequentemente nem precisa falar dela. Concluindo essa exposição Foucaultiana, surge um problema em meio ao que se passa nesse discurso. Seria possível existir no jogo da ascese, da subjetivação progressiva do discurso verdadeiro a contribuição, de tal modo que o discurso do mestre se desenvolvesse. Observa-se que a parrhesía é o fato de se dizer tudo. Usamos até algumas expressões relevantes como declara Foucault:
Franqueza, abertura de coração, abertura de palavra, abertura de linguagem, liberdade de palavra. Os latinos geralmente traduzem parrhesía por libertas. É a abertura que faz com que se diga, com que se diga o que se tem a dizer, com que se diga, o que se tem vontade de dizer, com que se diga o que se pensa dever dizer por que é necessário, porque é útil, porque verdadeiro. (FOUCAULT, 2004, p.440).
Por conseguinte, o paradoxo libertas ou parrhesía é uma qualidade moral do sujeito que fala, como afirma Foucault. Falar implica dizer o verdadeiro não impondo a maneira de uma espécie sem generalizar o sujeito que toma a palavra, que diz a verdade e acredita na mesma. O sentido moral de parrehesía para Foucault está intimamente ligado ao âmbito filosófico, na arte de si mesmo e na prática de si, significando uma técnica precisa e pertinente ao papel da linguagem e da palavra na ascese espiritual dos filósofos. Não pode haver de maneira alguma o lógos filosófico sem esta espécie de corpo de linguagem que possui qualidades próprias, sua plástica própria e efeitos patéticos que lhes são necessários. Dessa forma, parrhesía e libertas são as regras fundamentais que utilizamos para formular o discurso da verdade.
(*) Granduando na FAM
Referência
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Tradução Márcio Alves da Fonseca; Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 399-439.
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Eu gostei do texto e muito. Na verdade, estou em busca de leituras que me aprofundem mais à respeito do assunto sobre ascese, e como seria possível vivê-la na prática.
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Muito obrigada pelo texto !