Por Bruno dos Santos Silva
Resumo: a filosofia racionalista tem em Descartes seu maior representante. Ele foi o primeiro a chamar a atenção para a subjetividade, isto é, para o sujeito pensante. Tendo a dúvida como método chegou à descoberta do cogito. A filosofia de Descartes identifica o pensamento como uma substância e é isso que queremos investigar neste texto: como Descartes entende a res cogitans e quais as consequências desta compreensão.
Introdução
René Descartes, filósofo francês do século XVII, teve formação jesuítica. Certamente aprofundou-se nos conhecimentos da escolástica e conheceu a metafísica medieval. Dada altura de sua vida encontrou-se insatisfeito com a educação que tinha recebido e resolveu pensar de modo diferente, partindo de perguntas muito pessoais, meditando em seu interior e voltando-se para si mesmo.
Esta sua insatisfação levou-o à aplicação dos conhecimentos matemáticos na filosofia. Utilizando o método geométrico, Descartes expôs o processo pelo qual pretendia fazer um novo sistema. O resultado de seu trabalho foi a descoberta do eu pensante, ou substância pensante. Esta ideia permaneceu desde então e tem sido muito debatida e estudada. O presente artigo visa uma breve investigação do cogito – como ele chegou a afirmá-lo, o que ele significa – e o que é a substância pensante. Para isso, vamos voltar nossa atenção para fragmentos do próprio Descartes e utilizar alguns comentadores.
1. Da dúvida ao cogito
O cogito é ponto central da filosofia cartesiana. Aqui, apresentaremos o caminho que Descartes percorreu até a afirmação do eu pensante e qual o sentido do pensamento entendido como uma substância. Descartes com “uma grande esperança na medicina, mostrou-se incapaz de explicar a totalidade do homem” (MARQUES, 1993, p. 63) apenas pelos estudos científicos. Ele procurou um argumento filosófico de onde pudesse partir.
A descoberta do “cogito, ergo sum”, ou “je pense donc je suis” é o que fundamenta todo o sistema racionalista cartesiano e inaugura o subjetivismo moderno. Esta descoberta afirma Pascal (1990, p. 41), “não é, pois, só a descoberta de uma existência, mas também a de uma natureza”.
Para Descartes o melhor caminho para se chegar ao conhecimento da verdade é a dúvida que é também o ponto de partida para se chegar ao cogito. “Portanto, minha existência é uma condição necessária para minha capacidade de duvidar e, consequentemente, a existência da dúvida implica a existência do sujeito ou “eu” que duvida”. (SKIRRY (1) apud LIMA, 2013, p. 24). Podemos dizer, então, que Descartes duvida porque quer encontrar uma verdade evidente, um conhecimento completo e absoluto por si mesmo e não mais se contentar com concepções transmitidas pela tradição.
Desse modo ele inicia o processo para a descoberta de uma verdade inicial da qual possa derivar toda sua reflexão filosófica. O primeiro passo é duvidar dos sentidos, que são fonte de engano:
“Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez” (DESCARTES, 1979, p. 85-87).
O segundo momento da dúvida é a incerteza a respeito dos estados de sono e de vigília, pois tudo que experimentamos acordados podemos experimentar também quando dormimos, no sonho. Destarte, nunca saberemos quando estaremos dormindo ou acordados.
“Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigília. […] Mas, pensando cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, vejo tão manifestamente que não há quaisquer indícios concludentes, nem marcas assaz certas por onde se possa distinguir nitidamente a vigília do sono, que me sinto inteiramente pasmado: e meu pasmo é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo”. (DESCARTES, 1979, p. 86).
Como terceiro passo do processo, Descartes pensa a possibilidade de um Deus ser enganador, ou seja, que o Deus, que é todo-poderoso, possa ter lhe enganado a respeito de tudo que trazia como certeza.
Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que há um Deus que tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem me poderá assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nehnum lugar e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso não me pareça existir de maneira diferente daquela que vejo? E, mesmo, como julgo que algumas vezes os outros se enganam até nas coisas que eles acreditam saber com maior certeza, pode ocorrer que Deus tenha que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado, ou em que julgo alguma coisa ainda mais fácil, se é que se pode imaginar algo mais fácil do que isso. Mas pode ser que Deus não tenha querido que eu seja decepcionado desta maneira, pois ele é considerado soberanemente bom. Todavia, se repugnasse à sua bondade fazer-me de tal modo que eu me enganasse sempre, pareceria também ser-lhe contrário permitir que eu me engane algumas vezes e, no entanto, não posso duvidar de que ele mo permita (DESCARTES, 1979, p. 87).
Sendo assim, para resguardar a bondade de Deus (e porque ele vai precisar de Deus no seu sistema como garantia das ideias inatas e como aquele que vai dar certeza do mundo sensível), Descartes apresenta o quarto argumento: ele cria um gênio maligno poderoso que possa ter lhe enganado, já que Deus, sendo bom, não podia fazer isso.
Suportei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender meu juízo. Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma falsidade, e prepararei tão bem meu espírito a todos os ardis desse grande enganador que, por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-me algo. (DESCARTES, 1979, p. 88-89).
Após passar pelas várias fases da dúvida que são os sentidos, sono ou vigília, Deus enganador e o gênio maligno, Descartes inaugura a base de todo seu pensamento filosófico e antropológico, o cogito.
Depois disso, considerei em geral o que é necessário a uma proposição para ser verdadeira e certa; pois, como acabava de encontrar uma que eu sabia ser exatamente assim, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. E, tendo notado que nada há no que eu penso, logo existo, que me assegure de que digo a verdade, exceto que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei poder tomar por regra geral que as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas verdadeiras, havendo apenas alguma dificuldade em notar bem quais são as que concebemos distintamente. (DESCARTES, 1979, p. 47).
2 O cogito e seus desdobramentos
Este “penso, logo existo” não é simplesmente uma constatação. É muito mais. Trata-se do sujeito que toma conhecimento de si mesmo e que, por isso, garante a própria existência. Segundo Lima Vaz (2011, p. 89) na afirmação do cogito “está implicada uma nova relação do ‘espírito’ com o mundo que define uma nova concepção de homem”.
[Além do mais,] Descartes não quer dizer que ele existe necessariamente nem que a frase “eu existo” seja verdadeira, mas sim que essa frase, sob certas condições, é necessariamente verdadeira. Quando perguntado, Descartes expressa mais claramente sua opinião sobre a espécie de coisa deste eu. No Discurso, ele diz que o eu é uma substância cuja inteira essência e natureza só consiste em pensar. (MARQUES, 1993, p. 89).
É preciso compreender que o cogito, na verdade, constitui a substância pensante. Por substância, Descartes entende aquilo que existe por si. É uma compreensão próxima da escolástica, mas que traz algumas diferenças.
Precisamos, aqui, estabelecer os elementos fundamentais da noção de substância em Descartes para melhor entender sua diferenciação entre substância completa e incompleta. Para Descartes, como para a escolástica, a substância é um “ens per se existens”. Isso significa existência fundada em si mesma e não “in aliis”, como acontece nas propriedades. […] A dificuldade para Descartes aceitar o corpo e a alma como substância incompletas reside no fato de se ter de falar de duas substâncias incompletas que se encontram em um sujeito concreto que, por sua vez, já é uma substância. (MARQUES, 1993, p. 92-93).
Então, quando se refere ao homem, a evidência do cogito o faz ser uma res cogitans, ou seja, uma substância pensante. E por isso, podemos afirmar que o homem é substância pensante, ou o homem é pensamento. Esta foi a base para a afirmação da noção de sujeito que todos os filósofos modernos vão tratar. Mas na antropologia de Descartes, como diz Marques (1993, p. 82), a noção de res cogitans deve nos remeter à noção de alma. Alma, para Descartes, é a mesma coisa que substância pensante e o cogito é a evidência da existência dela.
[…] era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. […] esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo […] para pensar é preciso existir […] julguei poder tomar por regra geral que as coisas que concebemos mui clara e mui distintas são todas verdadeiras. (DESCARTES, 1979, p. 47)
É por isso que Pascal (1990, p. 41) insiste em afirmar que “esta existência indubitável que a própria dúvida nos revela só pode ser a de um espírito. Mais precisamente do eu enquanto espírito”. Esta substância pensante é que vai habitar no corpo humano (corpo enquanto máquina), que vai lhe dar vida e fazer-lhe diferente dos animais. Neste momento podemos dizer outra característica da alma que é a sua imortalidade. Pascal (1990, p. 44) diz que “o que torna a alma imortal é o fato de que, de um lado ela é substância pensante, não tendo, pois, nada de corporal, e, do outro, enquanto substância pensante ela pensa sempre”.
Por esta citação, já podemos perceber que a noção de alma é completamente separada da noção de corpo e que do mesmo modo que existe uma substância pensante, existe uma substância extensa. Entretanto, é mais fácil conhecer a alma que o corpo. Neste sentido é que podemos lembrar Lima Vaz quando ele diz que o caminho de Descartes é diferente de Aristóteles.
A originalidade do projeto cartesiano de filosofia aparece já na inversão por ele levada a cabo na ordem tradicional do saber filosófico, que progredia da Física à Metafísica, sendo que na Física o homem encontrava seu lugar como ser da natureza […], ao mesmo tempo em que, pelo noús ou intellectus, passava além das fronteiras da Física e penetrava no terreno da Metafísica, constituindo-se em horizon et confinium entre o corporal e o espiritual, entre o físico e o matafísico. (LIMA VAZ, 2011, p. 86).
Em Descartes, o homem é antes de tudo, pensamento e não ser da natureza. A dimensão metafísica é a explicação da substância essencial. Portanto, o homem é res cogitans. Por isso é mais fácil ter conhecimento do próprio eu pensante que do corpo.
Conclusão
Feitas todas estas considerações, a conclusão a que chegamos é a de que, em Descartes a filosofia se move a partir do cogito – a auto-evidência de si mesmo, autoconsciência. Este cogito é a única coisa certa e da qual não se pode duvidar. Ele é também chamado de res cogitans ou substância pensante, porque constitui a primeira coisa a ser descoberta. Enquanto uma substância, a res cogitans é a alma e está completamente separada do corpo, existindo sem ele. E sendo uma substância não material, é imortal.
Com Descartes, podemos dizer, inaugura-se um novo período do pensamento ocidental. Nele encontramos uma metafísica da subjetividade, ou seja, uma metafísica que não se fundamenta num ser transcendente, mas no próprio sujeito (ego cogito). O pensamento cartesiano teve uma enorme influência nos filósofos que vieram depois dele. Spinoza, Pascal, Kant, Hume, Husserl, Ricoeur… todos eles foram leitores de Descartes e, a favor ou contra, disseram algo a partir das teses que ele desenvolveu.
Notas:
* Estudante de Filosofia da FAM
1. SKIRRY, Justin. Compreender Descartes. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 48.
Referências
DESCARTES, René. Descartes. Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. Os Pensadores.
LIMA, Harley Carlos de Carvalho. Descoberta do Cogito. In:______: O ser humano como essencialmente res cogitans em René Descartes. 2013. 56 f. Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em Filosofia) – Faculdade Arquidiocesana de Mariana,
Mariana, 2013.
MARQUES, Jordino. Fundamentos da concepção cartesiana de homem. In______: Descartes e a sua concepção de homem. São Paulo: Edições Loyola, 1993.
PASCAL, Georges. Descartes. Tradução Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
VAZ, Henrique C. de Lima. A concepção racionalista do homem. In:______: Antropologia Filosófica. 11ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011. p. 85-96.
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O que René Descartes quis dizer com “sou uma coisa que pensa, isto é, que duvida, que afirma, que ignora muitas, que ama, que odeia, que quer, que também imagina e que sente”
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Boa tarde onde está escrito logo abaixo da Conclusão está errado segundo o pensamento filosófico de Descartes – a alma não pode viver separada da potência da matéria.
“Enquanto uma substância, a res cogitans é a alma é espiritual e está completamente ligada ao corpo, não podendo ser tirada da potência da matéria, portanto ela é criada diretamente por Deus”.