Carlos Heitor Fideles¹
Resumo: O presente artigo busca apresentar qual o sentido da filosofia para Theodor W. Adorno, a partir de seu texto “Actualidad de la filosofia”. Para tanto, se torna necessário percorrer um caminho que passa pela compreensão da filosofia contemporânea para o autor e como ele acredita que ela deve se comportar, passando pela concepção adorniana de atualidade, para enfim compreendermos qual é o real sentido da filosofia para o autor. Compreender esse sentido da filosofia no referido texto, permite perceber alguns elementos pontuais da filosofia adorniana, pois nesse texto se encontram alguns aspectos que marcarão toda a produção teórica do autor.
Palavras-chave: Adorno. Filosofia. Sentido. Atualidade. Interpretação
Considerações iniciais
Theodor W. Adorno é um dos maiores pensadores da chamada Escola de Frankfurt. Situado na tradição alemã, Adorno é herdeiro de um rico debate filosófico, encontrando-se entre o círculo de debates da chamada Teoria Crítica. Dentre a produção do filósofo alemão, se encontra o texto “Actualidad de la filosofia”, que originalmente foi sua palestra inaugural como professor na Universidade de Frankfurt. Embora seja um dos textos iniciais de Adorno, nele, de certo modo, “já estão presentes, àquela época, elementos que comporão o pensamento maduro do filósofo.” (DUARTE, 1997, p. 66)
Em “Actualidad de la filosofia” Adorno busca fazer como que um balanço da filosofia contemporânea e, a partir daí, elucidar se a filosofia é ou não atual. A atualidade da filosofia passa pela necessidade de ela ainda poder realizar algo. A existência de alguma coisa que possa ser realizada pela filosofia aponta para sua atualidade, mostrando que ela ainda não está ultrapassada.
1. A ilusão que a filosofia deve abandonar
Adorno inicia seu texto mostrando que a filosofia contemporânea deve se livrar de uma antiga pretensão, com a qual outrora se principiava os projetos filosóficos. Ele sentencia como deve se comportar aquele que, nos tempos contemporâneos, inicia-se no caminho da filosofia. Para ele
Quem hoje em dia escolhe o trabalho filosófico como profissão, deve, de início, abandonar a ilusão de que partiam antigamente os projetos filosóficos: que é possível, pela capacidade do pensamento, se apoderar da totalidade do real. Nenhuma razão legitimadora poderia se encontrar novamente em uma realidade, cuja ordem e conformação sufoca qualquer pretensão da razão; apenas polemicamente uma realidade se apresenta como total a quem procura conhecê-la, e apenas em vestígios e ruínas mantém a esperança de que um dia venha a se tornar uma realidade correta e justa. (ADORNO, 1991, p. 71)
Essa é uma passagem extremamente importante no interior do referido texto, uma vez que nela Adorno indica tanto como a filosofia tem se apresentado, ou seja, incapaz de alcançar uma totalidade, uma vez que a totalidade do real não está de certo modo disponível a razão, e mostra também qual atitude deve ter aquele que escolhe o trabalho filosófico como profissão diante desse panorama, ou seja, deve abandonar a ilusão de que, pela capacidade do pensamento, se possa captar a totalidade do real. Essa passagem é importante inclusive para se pensar como se comporta contemporaneamente a possibilidade da crítica, lembrando que Adorno situa-se na discussão chamada Teoria Crítica. Diante desse quadro percebe-se que “A impossibilidade de exercer a crítica como antes é fruto de um desenvolvimento da objetividade, que leva a um descompasso entre os problemas filosóficos e a possibilidade de serem respondidos.” (DURÃO, 2005, p.27)
A partir da postulação de que captar a totalidade do real através do pensamento trata-se apenas de uma ilusão, Adorno passa a fazer um balanço da filosofia contemporânea e como ela enfrentou essa realidade. A crise do idealismo, segundo Adorno, atesta a crise ou decadência da pretensão de captar a totalidade do real, através da força do pensamento. Adorno diz que “a ratio autônoma – tese de todo sistema idealista – deveria ser capaz de desenvolver, a partir de si mesma, o conceito de realidade e de toda realidade. Esta tese se autodissolveu.” (ADORNO, 1991, p. 72)
Em sua análise da filosofia contemporânea, Adorno percebe que, em busca de conseguir captar a totalidade do real pela força do pensamento, as diversas escolas filosóficas estiveram distantes ora da realidade, ora da sistematização exigida pela filosofia. Adorno cita como exemplos desse fazer filosófico o neokantismo da Escola de Marburg, que na busca por apreender a realidade através de categorias lógicas, manteve-se fiel à sistematização, todavia, para isso teve de abdicar-se do direito sobre essa realidade. Em contrapartida, a filosofia de vida de Simmel, que se mostrou uma filosofia psicológica e orientada irracionalmente, conservou-se em contato com o real, mas perdeu todo direito sobre a experiência.
Adorno faz também uma análise do projeto fenomenológico, com o qual Husserl, mesmo após a decadência do idealismo, deseja manter, com a ratio autônoma, uma ordem do ser que não seja facultativo. Assim, o sistema de Husserl ainda permanece dependente da razão como instância legitimadora da relação entre razão e realidade. Porém, para Adorno, quanto a fenomenologia ainda pode-se dizer que “o saldo […] é positivo, uma vez que Husserl purificou o idealismo de seu “a mais” especulativo.” (DUARTE, 1997, p. 67) Merece lugar especial a abordagem que Adorno faz da ontologia fundamental de Heidegger. Tal abordagem merece uma atenção peculiar, pois Adorno se situa como um crítico da abordagem heideggeriana, não só no texto “Actualidad de la filosofia”, mas ao longo de seu percurso intelectual. A crítica adorniana a ontologia fundamental, procede do fato de que, também ela, se perdeu numa questão subjetiva, assim como a fenomenologia. Para Adorno, “Em lugar da pergunta sobre as idéias objetivas e sobre o ser objetivo, em Heidegger, pelo menos nos escritos publicados, surge o subjetivo; a exigência da ontologia material se reduz à esfera da subjetividade” (ADORNO, 1991, p. 73) Para Adorno, não se pode pensar que a ideia de ser seja capaz de abarcar a realidade como um todo, visto que “nem a plenitude do real, como totalidade, se deixa subordinar à idéia do ser” (ADORNO, 1991, p. 71)
Ainda no escopo do balanço crítico da filosofia contemporânea realizado por Adorno, deve-se dizer do Círculo de Viena e sua tentativa de afastar-se da filosofia, desdobrando-a em ciências particulares. Todavia, Adorno reconhece que alguns dos problemas fundamentais da Escola de Viena mostram o quanto ela ainda permanece próxima da filosofia. As ciências particulares pretendidas pelo Círculo de Viena, que se apoiam na possibilidade da empiria, alimentam uma pretensão de superioridade diante da filosofia. Porém, ainda diante dessa pretensa superioridade pretendida por essas ciências, Adorno acredita que
a filosofia [não] deva desistir outra vez do contato com as ciências particulares ou afrouxar essa ligação que, por fim, voltou a conquistar e que se coloca entre os resultados mais afortunados da mais recente história da filosofia. Ao contrário. A filosofia só poderá conseguir plenitude material e concreção dos problemas a partir do estado contemporâneo das ciências particulares. Por sua vez a filosofia não poderia elevar-se acima das ciências particulares para tomar delas os resultados como algo pronto e meditar sobre eles a uma distância mais segura. Os problemas filosóficos se encontram continuamente, e, em certo sentido, indissoluvelmente encerrados nas questões mais definidas das ciências particulares. (ADORNO, 1991, p. 75)
Assim, ele percebe que a fim de alcançar a concretude material dos problemas que se apresentam frente a ela, a filosofia não pode abdicar do contato com essas ciências particulares. O debate filosófico contemporâneo não pode abandonar o diálogo com as ciências particulares. Nesse processo do diálogo entre a filosofia e as ciências particulares, Adorno acredita que é importante definir a especificidade de cada uma. Enquanto as ciências particulares aceita seus resultados como insolúveis, a filosofia vê em seus resultados um algo a ser decifrado, ou seja, “a idéia da ciência é investigação, a da filosofia interpretação.” (ADORNO, 1991, p.75)
2. Uma filosofia interpretativa
A partir da análise da história da filosofia contemporânea feita por Adorno, se pode compreender de modo mais claro o que ele postula com o termo “atualidade da filosofia”. Como dito, a atualidade da filosofia tem relação com o fato de haver ainda uma tarefa que ela possa realizar. Um problema semelhante é colocado por Adorno na introdução de sua Dialética Negativa, quando ele afirma que “a filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização.” (ADORNO, 2009, p. 11) Desse modo, o manter-se viva da Dialética Negativa se liga muito ao ser atual da “Actualidad de la filosofia”, pois ambos os casos dependem do fato de a filosofia não ter se tornado desprezível, mas ainda possuir uma tarefa que possa realizar.
Assim, percebe-se que, em Adorno, tratar da atualidade da filosofia depende da possibilidade de se responder ao problema de
Se, depois do fracasso dos últimos grandes esforços, existe ainda alguma adequação entre as questões filosóficas e a possibilidade de respostas: se realmente o resultado da história do problema mais recente não é a impossibilidade, por princípio, de resposta para as questões filosóficas cardeais. (ADORNO, 1991, p. 75)
A partir dessa formulação, pode-se postular o que venha a ser a filosofia para o autor. Para ele a filosofia deve ser interpretativa, pois sua especificidade é a interpretação. Ele acredita que interpretar não é simplesmente buscar um sentido oculto, que já está pronto e dado por trás da questão. A verdadeira intepretação filosófica não pode aceitar um sentido que já esteja pronto. Na concepção adorniana, interpretar verdadeiramente é construir constelações ou realizar ordenação. Assim, a filosofia deve se valer dos diferentes elementos que dispõe, colocando-os em diferentes posições na busca por construir uma figura ordenada. Desse modo, é tarefa da filosofia “interpretar uma realidade carente de intenções, mediante a capacidade de construção de figuras, de imagens a partir dos elementos isolados da realidade” (ADORNO, 1991, p. 76). Ou seja, a filosofia deve conseguir interpretar a realidade em que se situa. Para realizar sua tarefa interpretativa, a filosofia deve ser capaz de compreender as categorias pelas quais a filosofia operou anteriormente, não se detendo nelas, visto que isso seria anacrônico, mas ao mesmo tempo, a filosofia não pode se distanciar dessas categorias, uma vez que, se assim procedesse, ela se auto abandonaria, ou seja, deixaria seus elementos básicos que a compõe como filosofia. Compreender as categorias com as quais a filosofia operou ao longo da história oferece elementos para a filosofia interpretativa buscar construir constelação. Assim, a filosofia mantêm-se nessa tensão, entre não se afastar das categorias com as quais ela operou, mas também não se ocupando com os problemas que a filosofia buscou inutilmente resolver na busca por apreender a totalidade do real. Aqueles que abandonam essa tensão, acabam por auto abandonarem a filosofia.
Considerações finais
Ao termo desse trabalho nota-se a importância e relevância do pensamento adorniano para o cenário filosófico. Ao tratar da atualidade da filosofia, Adorno busca muito mais do que dizer que a filosofia tenha ou não espaço nos tempos contemporâneos. O interesse é muito maior em mostrar o que significa filosofar após o fracasso dos projetos filosóficos que não obtiveram sucesso na busca por apreender a totalidade do real. Diante disso, a necessidade de uma filosofia interpretativa, capaz de entender a realidade em que se situa, que não ignore as ciências particulares, mas com elas mantenha um diálogo, sendo capaz de propor questões que possam ser respondidas pela filosofia, promovendo a adequação entre a questão proposta e a possibilidade de resposta.
Referências Bibliográficas
Adorno, Theodor W. Actualidad de la filosofia. Tradução José Luis Arantegui Tamayo. Barcelona: Paidós, 1991.
______. Dialética Negativa. Tradução Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
DURÃO, Fabio Akcelrud. Mutações na prática da crítica. In: Philósophos. Goiás, v.10, n,1, p. 23-43, jan./jun. 2005.
DUARTE, Rodrigo. Adornos: nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997.
NOTAS
¹ Graduando em Filosofia na FAM