Hércules Amorim Werneck*
Resumo: O presente artigo pretende tratar questões relativas ao campo da Filosofia da arte e da estética a fim de compreender mais sobre do universo artístico em que se encontrava Tarsila do Amaral, famosa artista plástica brasileira. Sabe-se que entre as suas mais conhecidas obras, está presente a figura enigmática do Abaporu, pintado em 1928, com a intenção de presentear o seu esposo, o modernista Oswald de Andrade. Para atender a pesquisa em questão, o texto será desenvolvido em duas partes, sendo que a primeira se destina à reflexão sobre a estética e a arte, focando o contexto da modernidade e, principalmente, no que diz respeito à pintura, uma vez, que o objeto desse artigo baseia-se em uma obra de arte plástica deste gênero. Na segunda parte, será abordado o movimento Modernista Brasileiro, a influência da técnica cubista em parte das obras de Tarsila do Amaral, especialmente, do que se trata o Abaporu e das razões do Manifesto Antropófago gerado em torno dessa obra.
Palavras-chave. Abaporu. Antropofagia. Arte. Estética. Modernismo brasileiro.
INTRODUÇÃO
Pretende-se com este artigo abordar o valor artístico de uma das mais famosas pinturas da arte brasileira, denominada Abaporu, da artista Tarsila do Amaral. Nascida no interior do Estado de São Paulo, no final do século XIX, e, sendo filha de uma família rica que possuía algumas fazendas, a jovem teve estudos na Europa e pintou o seu primeiro quadro em 1904, quando estudava em Barcelona, na Espanha. Tratava-se de uma tela do Sagrado Coração de Jesus.
Entre suas idas e vindas do continente europeu, ela conheceu a pintora Anita Malfatti com quem teve aulas de desenho e pintura. Malfatti seria responsável, posteriormente, por introduzi-la ao movimento modernista brasileiro que contava com a participação de importantes personagens do cenário artístico brasileiro daquela época, incluindo, Oswald de Andrade, que acabaria relacionando-se com Tarsila.
Naquela altura a artista ainda não havia apresentado as suas obras ao público brasileiro, mas seu trabalho já gozava de prestígio e reconhecimento por parte de artistas europeus, entre eles, o poeta Blaise Cendrars, do qual tornou-se grande amiga, e os mestres cubistas Fernand Léger, Lhote e Gleizes com os quais Tarsila iria estudar e receber uma relevante influência em seus trabalhos. A amizade com Blaise ainda lhe rendeu a possibilidade de conhecer outros grandes artistas europeus modernos entre pintores, músicos, escritores e escultores. Seu ateliê, assim como a sua própria casa em Paris era bem visitada, tanto por estrangeiros quanto compatriotas que residiam por lá como o compositor Villa Lobos e o pintor Di Cavalcanti, sendo este último um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna, no ano de 1922.
Uma viagem ao interior de Minas Gerais influenciaria de uma vez para sempre as obras de Tarsila do Amaral. Ao visitar algumas cidades históricas mineiras, acompanhada de alguns amigos, durante a Semana Santa, no ano de 1924, a artista se deparou com o colorido que lhe agradava desde os tempos de sua infância, mas que seus mestres a reprimiram de utilizar em suas pinturas. A partir daí a artista não só começou a fazer uso de cores vivas (o azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo, verde cantante etc.) como também passaria a abordar ainda mais a temática nacional em suas telas, projetando nelas paisagens do campo e da cidade, da flora e da fauna, além do folclore e da nossa gente.
Esta fase da sua obra recebeu o título de Pau Brasil e Tarsila utilizou as técnicas do cubismo para pintar vários quadros, entre eles: ‘Carnaval em Madureira’, ‘Morro da Favela’, ‘EFCB’, ‘O Mamoeiro’, ‘São Paulo’, ‘O Pescador’, dentre outros. Paralelamente aos trabalhos de Tarsila crescia o movimento modernista brasileiro que almejou substituir os antigos valores por meio do progresso e da formação de uma consciência criadora brasileira, visando atualizar a inteligência artística do país e conquistando o direito à pesquisa estética. Historicamente o Modernismo foi estabelecido com o início da Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, no ano de 1922.
1 A arte e a estética na modernidade
Quais os critérios estéticos para se avaliar uma obra de arte? A noção de estética é acessível a todo ser humano? Pode-se dizer que a arte tem autonomia própria? Certamente, diante de uma obra de arte cada pessoa tende a exprimir a sua opinião de gosto ou não por ela, mas, o belo se discute? Este artigo não procurará responder tais questões, todavia, tais conceitos, de beleza e de estética, serão trabalhados para a reflexão sobre a arte, em particular, sobre a pintura brasileira, nos tempos modernos. Segundo Mukarovsky, (1981, p. 34) o estético:
[…] não é uma característica real das coisas e não se relaciona univocamente com nenhuma característica das coisas; […] A função da estética também não se encontra completamente sob o domínio do indivíduo, embora, de um ponto de vista puramente subjetivo, qualquer coisa possa adquirir (ou pelo contrário deixar de ter) uma função estética independente do modo da sua criação.
Como é sabido, anteriormente ao século XVI, os pintores não eram, exclusivamente, pintores, mas eram artífices, “[…] pois tinham oficinas em que exerciam a decoração interior, e os trabalhos eram-lhes encomendados pela Igreja, por vezes pelo conselho da cidade, outras pelo príncipe” (READ, [19–], p. 70). Deste modo, tais artistas tiravam o seu sustento mediante suas pinturas, sendo que a grande maioria deles, nesse tempo, nem mesmo assinavam em seus trabalhos. Suas obras focavam, principalmente, em reproduzir temas sobre a natureza e a divindade. Assim, era comum que paredes, tetos, vitrais e outros espaços do interior e do exterior das igrejas e repartições públicas (não somente nesses locais), fossem a ‘tela’ ou o cenário que receberiam a tinta e a habilidade desses pintores.
Isso, em um primeiro momento, pode apresentar-se como uma grande injustiça, haja vista, que ao exercer o seu ofício, o pintor coloca toda a sua capacidade e inspiração na produção de sua arte. Ele, literalmente, torna-se capaz de criar e nada mais justo que uma obra criada receba a rubrica do seu criador. Contudo, a visão de mundo desse período, influenciado pelo domínio do pensamento religioso, creditava a Deus e aos seres divinos a razão última da própria arte e não aos artistas, e talvez seja por isso que as pessoas não viam
[…] qualquer diferença cívica entre o poeta e o pintor: cada um deles expressa individualmente uma visão, que pode ter ou não uma grande importância social; num dos casos, porém a sociedade pode impunemente ignorar a criação, e no outro é agora compelida a aceitá-la e a pagar por ela um preço (READ, [19–], p. 61).
A superação da influência e até mesmo da censura imposta pela instituição religiosa cristã por séculos, assim como a mudança do pensamento filosófico que desenvolvia-se paralelamente à Ciência em sua promessa de emancipação do ser humano, colocaram o homem no centro do universo. Isso fez com que a arte também sofresse mudanças significativas. Um exemplo disso foi a tendência do resgate daquela apreciação pelas formas do corpo humano, na Antiguidade, cujas características artísticas foram trabalhadas, mais afinco, nas culturas gregas e romanas, influenciando, assim, todo o ocidente. Contudo, foi a partir do Renascimento, que iniciou-se o tempo moderno da arte, em um momento de efervescência cultural na Europa que se seguiu do surgimento de vários estilos artísticos.
A pluralidade dos estilos existentes após a metade do século XIX traduzem bem o painel artístico europeu. Evidentemente, que esses estilos foram também influenciados pelos conflitos de natureza sócio-política e econômica, que por sua vez, estavam intrinsecamente ligados às ideias filosóficas daquela época. Os pintores modernos procuraram se opor às formas clássicas. Era o caso, por exemplo, dos impressionistas, que buscavam as paisagens e as pessoas humildes para serem temas para suas pinturas. Jimenez (1999, p. 299) dirá que a arte neste período muda, pois ela:
[…] não reflete mais, como no passado, a imagem harmoniosa de um universo sublimado e colocado sob a transcendência de um belo ideal. Ela se secularizou num mundo submetido à crescente racionalização de todas as atividades humanas, endurecido por clivagens ideológicas conflitivas e sacudido por revoluções de caráter social, econômico e político.
Dentre os principais movimentos e correntes artísticas surgidas na modernidade, destacam-se: o Impressionismo, o Fauvismo, o Cubismo, o Expressionismo, o Surrealismo, o Concretismo, o Futurismo e o Pop Art. De fato, “[…] a arte moderna oferece uma confusa variedade de movimentos e de maneirismos, e seria ousada a crítica que pretendesse uma definição que os englobasse a todos (READ, [19–], p. 97).
Como se observa, portanto, essa constante mudança e evolução de estilos, na modernidade, se distinguem, radicalmente, com os padrões observados nos períodos anteriores. E, por isso, é difícil elaborar juízos estéticos sobre a arte nos tempos atuais. De qualquer modo, segundo Jimenez, o teórico Croce disse que
[…] a estética, que é a ciência da arte, não tem, portanto, por função, como se pensa em algumas concepções escolares, definir a arte uma vez por todas e tecer sua trama conceptual de forma a cobrir todo o campo dessa ciência; ela é apenas a reorganização permanente, sempre renovada e cada vez mais rigorosa dos problemas aos quais, segundo as diferentes épocas, dá lugar a reflexão sobre a arte, e ela coincide perfeitamente com a solução das dificuldades e dos erros que estimulam e enriquecem o progresso incessante do pensamento (JIMENEZ, 1999, p. 294-295).
O pensamento moderno sobre a arte em que os pintores e os demais artistas buscavam novas formas de expressão, recebeu importantes colaborações filosóficas de dois grandes teóricos: Kant e Hegel; seja para concordar ou refutar suas teorias, é inevitável o diálogo com esses pensadores no que diz respeito ao campo da arte e da estética.
Uma problemática neste contexto se dá no fato de que ressaltava-se a suposta autonomia que a arte julgava possuir. Pensava-se em uma arte autônoma com suas regras próprias, e isso, certamente, afastaria a hipótese de que o sujeito poderia elaborar um juízo estético de gosto por seu bel-prazer, mas, que deveria observar os critérios estabelecidos pela própria arte que possibilitariam avaliar a sua atividade.
Para Kant não seria possível discutir mediante argumentos lógicos o sentimento do belo, por este não possuir uma base conceitual. Todavia, esse sentimento estético poderia ser compartilhado entre pessoas que possuíssem a mesma certeza acerca da beleza, retirando assim o caráter totalmente subjetivo de um juízo estético. Segundo Braga, para Kant, “[…] a subjetividade do sentimento estético é mediada pela comunicabilidade e reconhecimento desse sentimento por outros membros da mesma comunidade” (BRAGA, 2011).
Em Hegel nota-se o esforço para combater algumas tendências, especialmente, provenientes do Romantismo alemão, que postulava a arte como atividade sem disciplina e imaginativa, e, incapaz de ser abstraída pela razão humana. Segundo Braga, para Hegel […] “pensa a arte como algo que possui a verdade e, por isso mesmo, passível de ser pensada com a Razão. Hegel define a arte como manifestação sensível do Espírito” (BRAGA, 2011). Todavia, tal manifestação do Espírito possui característica específica, uma vez que a arte ao ser representada, conduz o ser humano a uma realidade distinta da sua. A realidade apresentada pela arte, segundo esse filósofo, seria mais verídica que a nossa, pois neste caso, é possível ver a essência que está intrinsicamente ligada à mesma.
Ao postular a autonomia da arte no gênero da pintura contribui-se, portanto, para que tal atividade não seja diluída no cotidiano humano e torna-se algo efêmero. Em outras palavras, a pintura não pode ser reduzida ao simples papel de decoração, como algumas pretensões da pós-modernidade sugerem, pois, mesmo sendo produzida pelo homem, a pintura tem a capacidade de elevá-lo e, certamente, torná-lo mais livre. E também como mesmo Dufrenne explica:
[Se a pintura] se reduz voluntariamente à decoração: é possível que agrade, mas não atinge a Beleza. Pois, nessa caso, ela não leva em conta nenhuma das definições clássicas da Beleza, nem – que me seja escusado pedir o comparecimento dos filósofos – a definição kantiana: o belo é aquilo que solicita em nós o livre acordo da imaginação e do intelecto, visto que ela nada concede ao intelecto e ao seu poder de identificação e de reconhecimento; nem leva em conta a definição hegeliana: o belo é a ideia encarnada no sensível, visto que ela afasta a ideia. E, de fato, os pintores rechaçam com horror a sugestão de que o pictórico possa se reduzir ao decorativo (DUFRENNE, 2012, p. 260).
Encerra-se esta primeira parte do artigo que apresentou de forma breve algumas elaborações sobre o contexto vivido pela arte, em especial, a pintura, na modernidade. O palco das transformações culturais artísticas trazidas pelas vanguardas na modernidade não se limitou à Europa, mas, espalhou para outros cantos do globo, inclusive para o Brasil. Segundo, Jimenez (1999, p. 285), “[…] ser de vanguarda supõe a constante preocupação de promover a novidade a fim de preparar o futuro e de anunciar os tempos melhores”. Deste modo, a seguir, trabalharemos o surgimento do movimento modernista brasileiro, o manifesto antropófago, e, particularmente, a novidade artística apresentada pela pintora Tarsila do Amaral. Como se notará, Tarsila desejou ser a “pintora do seu país” libertando-se da pressão dos padrões clássicos de sua época. Ela inovou na pintura fazendo uso de cores fortes que lhe agradavam desde tenra idade e traçando formas bem peculiares, que resultaram em um inquestionável legado artístico cujo “Abaporu”, certamente, aparece como destaque.
2. O Movimento Modernista Brasileiro e o Abaporu de Tarsila
Faz-se necessário entender o cenário da arte no Brasil e no mundo nos períodos que antecederam o surgimento da obra tarsiliana para melhor compreender alguns elementos importantes que marcaram a sua pintura. Como averigou-se acima, o período moderno foi marcado pelas vanguardas, seguido de alguns manifestos culturais que definiram os estilos artísticos daquela época. Sobre os artistas vanguardistas, Jimenez (1999, p. 295), fez o seguinte comentário:
[…] a maioria dos artistas vanguardistas, pintores, escultores, arquitetos, músicos, escritores e poetas, elaboram sua própria teoria da arte no próprio espaço de tempo de suas realizações: o papel do manifesto ou da palavra de ordem à qual adere uma nova escola consiste exatamente em cristalizar ao redor de um tema preciso as energias artísticas em todos os domínios, e em determinar o interesse filosófico e estético da ação coletiva.
De fato, o contato dos artistas brasileiros com as ideias inovadoras que surgiam na Europa, somado ao desejo de conduzir a produção artística brasileira ao reconhecimento internacional, prepararam o terreno para o começo deste movimento, que teve como referência, a realização da Semana de Arte Moderna no ano de 1922. Nas palavras de Pietro Bardi a realização deste evento se tornou um marco da renovação cultural nacional, já que:
[…] São Paulo e Rio estavam distante dos centros propulsores, e se contentavam de seguir o simples eco das enunciações europeias, aceitando ou tolerando as menos excêntricas e com maiores possibilidades de serem enxertadas na normalidade em vigor. O produzir arte continuava no processo tradicional, adaptando-o às inovações mais pertinentes às técnicas do que ao conteúdo (BARDI, 1978, p. 12).
A ideia de que o Brasil era incapaz de produzir algo artístico nos padrões europeus a partir de seu chão ou de sua realidade, também, era notada no campo filosófico, em que muitos teóricos restringiam os seus trabalhos à mera função de ser comentadores das obras dos grandes pensadores estrangeiros. Tal pensamento foi duramente atacado por alguns modernistas, e, talvez, por isso, a realização da Semana de 22 esboçou a tentativa de mudança radical dessa postura do brasileiro de uma visão inferior de si mesmo. Para Tarsila do Amaral, mesmo não tendo participado diretamente deste importante e histórico evento cultural na vida dos brasileiros, a Semana
[…] foi extremamente polêmica, como todos os seus integrantes sendo sistematicamente atacados pela crítica e pelo público. Mas foi a partir dela que grandes mudanças ocorreram na arte e até na vida dos brasileiros, já que eles criticavam o regime de domínio das oligarquias (apesar de a maioria deles fazer parte delas), que dominavam o Brasil política e economicamente e eram responsáveis pelo grande atraso e retrocesso do país, e propunham uma renovação nos costumes por meio da revolução das artes (TARSILA, 2004, p. 76).
Se a Europa acompanhou o aparecimento de vários manifestos na modernidade, no Brasil, destacou-se o movimento antropofágico liderado por Oswald de Andrade. Para Oswald (2004, p. 129), os seus compatriotas deveriam engolir toda a cultura européia e transformá-la em algo bem brasileira. O principio do canibalismo é o de que, quando alguém come a carne humana, adquire também as virtudes desse outrem. Desde modo, esperava-se após degustar da cultura não-brasileira e retirar dela o que era interessante, produzir algo genuinamente brasileiro, valorizando assim a cultura nacional.
O Manifesto Antropófago iniciado por Oswald, seu irmão Mário de Andrade, Raul Bopp e Antônio de Alcântara, em 1928, teve o quadro do Abaporu de Tarsila como inspiração. Naquele período o Abaporu (TARSILA, 2004, p. 129) já era um símbolo muito forte e tinha uma identidade com o povo brasileiro, além de fazer parte do folclore tupiniquim. No início do manifesto lê-se:
Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi or not tupi is the question . (ANDRADE, Oswald, 1928)
O teor poético contido no manifesto escrito por Oswald, também se mistura, como se observa, com forte teor de natureza política. Cansado dos ares parisienses Oswald quer redescobrir o Brasil e livrá-lo da influência cultural histórica dos europeus. Posteriormente, ele cria a “Revista de Antropofagia” que contou com inúmeros colaboradores, aos quais figuravam importantes pensadores do modernismo brasileiro. Para bem ilustrar esta fase antropofágica da arte brasileira, Pietro Bardi comentou:
Eis agora uma nova planta: a ‘Antropofagia’, o recuo no tempo de um Brasil dos Brasileiros, sem Cabral, conquistadores, imigrantes, sem café, indústria, riquezas, a Terra dos Índios, onças, serpentes. Oswald, agora enjoado da experiência parisiense, prega “o culto à estética instintiva da terra nova. É a redução a cacarecos dos ídolos importados, para ascensão dos totens raciais. É a própria terra da América filtrando, expressando através dos temperamentos vassalos dos seus artistas (BARDI, 1978, p. 42).
O Abaporu pintado por Tarsila foi oferecido como presente de aniversário ao seu marido Oswald de Andrade. A inspiração do quadro pintado a óleo sobre a tela de 85×73 cm poderia ter brotado do inconsciente de Tarsila, o que poderia evocar aqui uma característica de arte surrealista . Os artistas surrealistas julgavam ser possível projetar na tela algo vindo direto do subconsciente humano. No caso particular da pintora, tratava-se de uma recordação da sua infância em que algumas mulheres contavam histórias de monstros que comiam crianças à noite pela rua. O objetivo era o de assustar as crianças que queriam permanecer brincando ao invés de ir para cama dormir. Tarsila confirma isso ao dizer:
“[…] era minha imaginação criada pelo medo das histórias. E tudo isso ficou guardado dentro de mim. Quando comecei a pintar, pintava meus próprios sonhos. Acordava e já pegava os pincéis, as tintas. As reminiscências da infância saltavam, como um pesadelo, o quadro onírico, a antropofagia” (TARSILA, 2004, p. 129).
Segundo a sobrinha-neta da pintora brasileira, que foi batizada com o mesmo nome de Tarsila, “[…] a figura do Abaporu exibe esses elementos descritos por Tarsila: um pé imenso, uma mão enorme e uma cabeça minúscula” (AMARAL, 2004, p. 128). A princípio o Abaporu passa essa imagem de algo monstruoso e assustador. Todavia, em uma recente teoria apresentada no livro Abaporu: uma obra de amor escrito pela mesma parenta de Tarsila, a tela trata-se na verdade de um autorretrato de Tarsila já que o objetivo dessa obra era presentear o seu marido e grande amor.
O nome de origem indígena quer dizer “homem que come carne humana” foi uma criação da própria Tarsila e inspirou o marido Oswald de Andrade a criar o Movimento Antropofágico, como já mencionado, tornou-se um marco no Modernismo brasileiro, pois visou mudar a postura dos brasileiro diante da produção artístico-cultural estrangeira e ao mesmo tempo, enaltecer a identidade tupiniquim no cenário artístico mundial. Sobre o batismo dessa obra a pintora disse:
[…] eu quis dar um nome selvagem ao quadro, porque eu tinha um dicionário do Montoia, um padre jesuíta. Para dizer homem, por exemplo, na língua dos índios, era Abá. Eu queria dizer homem antropófago. Folheei o dicionário todo e não encontrei. Só nas últimas páginas tinha uma porção de nomes, e vi Puru e quando eu li dizia: ‘Homem que come carne humana’. Então achei. Ah, como vai ficar bem, Aba-Puru! E ficou com esse nome. Segui apenas uma inspiração, sem nunca prever os resultados. Aquela figura monstruosa, de pé enormes, plantados no chão brasileiro ao lado de um cacto, sugeriu a Oswald de Andrade a ideia da terra, do homem nativo, selvagem, antropófago (TARSILA, 2004, p. 128).
Atualmente, a mais valiosa obra de Tarsila do Amaral se encontra sobre a posse do colecionador Argentino Eduardo Constantini no Malba – Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires – da Argentina. Constantini pagou a quantia de 1,35 milhão de dólares pelo Abaporu em 1994. O leilão da obra levantou uma grande polêmica, na época, pois às vésperas do evento espalhou-se a notícia de um suposto tombamento do quadro por parte do governo brasileiro. Este fato acabou por diminuir o interesse de alguns colecionadores do país em tentar arrematar esta obra, que é, sem sombras de dúvida, um dos grandes expoentes das artes plásticas brasileira de todos os tempos.
Herbert Read fala que o artista “reivindica a construção de novas realidades […] ao ponto de afirmar que a sua construção não é de modo nenhum determinada nem sequer por conceitos vagos, […] mas um ato de criação quase no sentido divino da palavra” (READ, [19–], p. 19). Certamente, tal afirmação encaixa perfeitamente em Tarsila, pois, mesmo tendo sido influenciada pelos mestres cubistas, a pintora inovou ao fazer uso das cores fortes e caipiras, além, de formas próprias para pintar suas telas, desde modo, ela inventou para os brasileiros o conceito de “brasilidade”. Como a própria pintora após uma viagem feita às cidades históricas mineiras comentou:
Encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras. Segui o ramerrão de gosto apurado. […] mas depois vinguei-me da opressão, passando-as para as minhas telas: azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo, verde cantante, tudo em gradações mais ou menos fortes, conforme a mistura de branco. Pintura limpa, sobretudo, sem medo de cânones convencionais. Liberdade e sinceridade, uma certa estilização que a adaptava à época moderna. Contornos nítidos, dando a impressão perfeita da distância que separa um objeto de outro (TARSILA, 2004, p. 90).
O Abaporu foi pintado neste contexto de transformação de estilo de Tarsila e já esteve em muitos museus pelo mundo o que lhe deu um caráter internacional, todavia, o proprietário da obra, em entrevista recente, disse que esta tela poderia retornar ao Brasil, mas com a seguinte condição: que o governo federal “[…] tentasse convocar um grupo de empresários brasileiros para fundar um novo Malba, um segundo museu no Brasil, com o “Abaporu” em seu acervo permanente.” (WEIS, Ana, 2014). Esta proposta, que primeiramente foi dirigida à então presidente, Dilma Roussef, não obteve resposta, mas segundo o empresário a proposta ainda estaria de pé. O Abaporu esteve em exposição, no Brasil, pela última vez, durante a realização dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A relevância do Abaporu para a arte brasileira é algo inquestionável e Tarsila do Amaral que desejou tornar-se a pintora dos brasileiros conseguiu através dessa e de tantas outras obras externar toda a sua brasilidade. A artista, como aqueles bons alunos que pretendem superar os seus mestres, rompeu-se com o estilo cubista, inovou e pintou suas obras com as cores que verdadeiramente lhe eram agradáveis.
Nos quadros de Tarsila, o Brasil e os brasileiros ganharam vida e cores. Diga-se que o Abaporu é a evolução mais amadurecida da obra tarsiliana, pois, foi pintado durante um período de efervescência cultural em que os artistas, mediante o movimento modernista, especialmente, após o manifesto antropofágico, buscavam assegurar ao Brasil o seu espaço na arte produzida na época, não como cópia europeia, mas, se manifestando de forma original.
Sendo uma artista moderna, Tarsila, sobretudo, foi uma crítica da arte e isso a levou descobrir novos caminhos para sua pintura. Pelo uso da imaginação, da recordação dos tempos da vida caipira no interior de São Paulo, das experiências das inúmeras viagens pelo país e pelo mundo e a partir do seu modo de pintar e de seu temperamento, a renomada pintora brasileira criou uma arte bastante peculiar. Com Tarsila a produção artística brasileira foi melhor reconhecida pela crítica internacional, e isso, colaborou de forma significativa para que artistas nacionais sentissem-se motivados a produzir a partir do seu próprio chão, rompendo, assim, com as formas clássicas e com as concepções estéticas até então vigentes.
Indubitavelmente, Tarsila mostrou ao mundo que o Brasil era capaz de construir seu próprio estilo de se expressar pela arte. Mesmo tendo estudado com os mestres do cubismo e recebido outras influências européias, a paulista desenvolveu sua brasilidade na pintura, apresentando obras até então jamais vistas.
REFERÊNCIAS
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ANDRADE, Oswald. O Manifesto Antropófago e Manifesto da poesia Pau Brasil. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: < antropófago http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf >. Acesso em 9 de novembro de 2016.
BARDI, Pietro Maria org. O Modernismo no Brasil. Diagramação Dan Fialdini. Brasil: Edição Banco Francês e Italiano para a América do Sul S/A – SUDAMERIS, 1978. (Coleção Arte e Cultura).
BRAGA, Eduardo. Arte e autonomia a contribuição decisiva da modernidade. Disponível em: <http://www.edubraga.pro.br/estetica-aesthetics/arte-e-autonomia-a-contribuicao-decisiva-da-modernidade/>. Acesso 30 de outubro de 2016.
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FOLHA, Banco de Dados. Morre Benedetto Croce aos 86 anos de idade. Empresa Folha da Manhã Ltda – Acervo online. Disponível em:<http://almanaque.folha.uol.com.br/mundo_20nov1952.htm>. Acesso em 9 de novembro de 2016.
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MUKAROVSKY, Jan. Escritos sobre Estética e Semiótica da Arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1981
NOTAS
*Graduando em filosofia na FAM
1 Benedetto Croce, famoso filósofo e historiador italiano, nasceu em Pescasseroli (Aquila), em 1866. Formado pela Universidade de Roma, desde cedo se impôs como crítico de arte e literatura. Sua teoria sobre a estética parte do ponto de vista de que a beleza é um ideal para o qual se encaminham todas as atividades humanas. Para Croce, tudo o que é arte e prazer artístico é a expressão de uma intuição comum ao que é humano. Disponível em: <http://almanaque.folha.uol.com.br/mundo_20nov1952.htm>. Acesso em 9 de novembro de 2016.
2 O Manifesto Antropófago. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: < antropófago http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf >. Acesso em 9 de novembro de 2016.
3 “Os surrealistas definiram os seus objetivos como puro automatismo psíquico […] para exprimir […] o verdadeiro processo do pensamento […] liberto do exercício da razão e de qualquer finalidade estética ou moral. A teoria surrealista esta fortemente impregnada de conceitos psicanalíticos e a sua retórica forçada nem sempre pode ser levada a sério. A noção de que era possível transportar um sonho diretamente do subconsciente para a tela, sem a intervenção consciente do artista, não resultou na prática. […] No entanto, o surrealismo estimulou várias técnicas novas de provocar e explorar efeitos do acaso”. JANSON HW. História geral da arte. Leal MB, organizador. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes; 2001. p. 972.
4 Livro escrito por Tarsila do Amaral (sobrinha-neta de Tarsila) lançado pela Editora A & A em setembro de 2015. Disponível em: <http://tarsiladoamaral.com.br/> Acesso em 6 de novembro de 2016.
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Tarsila do Amaral nao participou diretamente da Semana de Arte de 1922 por estar viajando mas contribuiu definitivamente para a arte brasileira. Uma das muitas explicacoes possiveis pode ser a de que o Abaporu traz um sentimento mitico em sua forma, cor e estrutura.