Eudvanio Dias Soares*
Resumo: Michel de Montaigne, no ensaio I, 20 De como filosofar é aprender a morrer, faz uma análise da morte e do morrer, procurando respaldar-se nos argumentos de escolas helenísticas de forma livre e pretensiosa, uma marca do seu modo de escrever. O presente artigo visa mostrar uma análise acerca de como Montaigne faz livre uso do pensamento das escolas estoica e epicurista na formulação de suas ideias, sem preocupar-se com a teoria completa da escola, mas utilizando aquilo que lhe é interessante e útil na formulação de seu pensamento. Vale ressaltar que este trabalho não propõe esgotar as influências do pensamento montaigniano sobre a morte, mas frisar o que estas duas escolas em questão forneceram-lhe como fundamento para o mesmo pensamento sobre a morte.
Palavras-chave: Montaigne. Epicurismo. Estoicismo. Morte. Morrer.
Considerações iniciais
Michel de Montaigne é um filósofo francês do século XVI conhecido especialmente pela produção da obra Ensaios. Dentre os temas abordados em seus ensaios encontra-se a morte, para o qual dedicou exclusivamente alguns de seus textos.
No presente artigo será tomado o ensaio I, 20 De como filosofar é aprender a morrer para uma análise acerca de como Montaigne faz livre uso do pensamento das escolas estoica e epicurista na formulação de suas ideias. Torna-se relevante tal análise para perceber como o autor faz uso dos conceitos antigos da filosofia sob uma nova ótica e perspectiva, tal que eles o sustentam no seu pensamento, que visa dar soluções a uma problemática de seu tempo.
Além do ensaio I, 20 de Montaigne, para o desenvolvimento deste trabalho, serão tomados comentadores de sua obra, assim como obras de historiadores da filosofia que trazem o arcabouço necessário para falar-se das escolas helenísticas. Vale ressaltar que não é objetivo deste artigo pontuar todos os pontos de convergência e divergência entre Montaigne e as escolas em questão.
1 Diálogo com o estoicismo
Reto Luzius Fetz (2003, p. 215) afirma que Montaigne viveu um momento de ideal estoico para sua vida, mas logo percebeu ser este irrealizável. Talvez por isso no ensaio De como filosofar é aprender a morrer ele não tome o estoicismo como cerne de seu pensamento a respeito da morte. Todavia, alguns de seus pensamentos coincidem com os da escola helenística em questão, assim como outros irão divergir.
Enquanto o estoicismo prega que “a felicidade não consiste no prazer ou no interesse individual, mas na exigência do bem, ditada pela razão e que transcende o indivíduo,” (HADOT, 2014, p.188) Montaigne segue a linha oposta e afirma que: “Diga o que disserem, na própria prática da virtude o fim visado é a volúpia.” (MONTAIGNE, 1972, p. 48) Se de um lado os estoicos vão pautar a vida na fuga dos prazeres e busca do bem através do uso razão, de outro lado Montaigne defenderá que o uso da razão e da virtude busca na verdade o prazer.
Há, entretanto um ponto crucial de convergência entre o pensamento estoico e o ensaio de Montaigne. Ambos afirmam que a vida deve ser guiada conforme os desígnios da natureza. Há nos estoicos uma indiferença em relação a tudo, com exceção da intenção moral, uma indiferença que leva o sujeito a viver de acordo com o curso da natureza ou do destino, e, por isso, não temer a morte é fundamental, já que ela é natural a todo vivente. (HADOT, 2014, p. 196)
A naturalização da morte que Montaigne propõe não é simplesmente ignorar o fato de a morte existir, mas sim de compreender que como não se pode dela escapar é melhor que não se preocupe com ela, uma indiferença em relação a ela, sem ignorar que ela existe e chegará a qualquer momento.
“Nada pode escapar às leis da natureza, mas apesar do determinismo do destino os seres humanos são livres e responsáveis. Se a vontade obedecer à razão ela viverá em harmonia com a natureza.” (KENNY, 2008, p. 130) Esta vontade visa sempre o bem comum e nunca o particular, nunca o próprio desejo. A vontade aliada à razão sempre conduzirá o ser humano por um caminho que o afaste da perversão moral.
Montaigne afirma: “Tiremos dela [da morte] o que tem de estranho; pratiquemo-la, habituemo-nos a ela, não pensemos noutra coisa; tenhamo-la a todo instante presente em nosso pensamento e sob todas as suas formas.” (MONTAIGNE, 1972, p. 49) É um processo de naturalização da morte, com a justificativa de que ela faz parte da natureza humana. E “Todos os dias levam à morte, só o último a alcança. Eis os sábios conselhos que vos dá a natureza, nossa mãe.” (MONTAIGNE, 1972, p. 49) É deste ideal de viver conforme o desígnio final da natureza que se pode presumir que ele se afasta do ideal moralista de vida estoica, mas quanto ao que rege e determina o fim da vida, estoicos e Montaigne convergem ao mesmo ponto.
Reto Luzius Fetz (2003, p. 225) afirma que embora Montaigne professe a fé católica respeitosamente, não é no solo cristão que ele se baseia para justificar o não temor da morte, ou ainda o porquê da morte não ser um mal. “Com isso, a instância à qual Montaigne dirige em primeiro lugar a sua confiança torna-se uma outra, experimentada diretamente: o lugar do Deus transcendente é tomado pela natureza imanente.” (FETZ, 2003, p. 225)
2 Diálogo com o epicurismo
Assim como não se pode afirmar que Montaigne é um estoico, da mesma forma não o pode fazer quanto à doutrina epicurista. “Ele faz um uso muito livre dos autores helenísticos, tanto por aproximá-los como por incorporar os conselhos morais de seus textos, descolando-os de sua ancoragem metafísica.” (ORIONE, 2012, p. 88) Um livre uso que pode ser justificado pelo seu objetivo final de sustentar o seu pensamento, e não a doutrina de onde eles provém.
Entretanto podem-se elencar três características comuns entre epicuristas e Montaigne: a primeira é a busca pelo prazer racional; a segunda é a aceitação da morte como parte da natureza; e por fim, a relação alma e corpo. O prazer é a meta da vida e de toda atitude. “E se assim não fosse, as repeliríamos de imediato, pois quem daria ouvido a alguém que apontasse na pena e no sofrimento os objetivos da existência?” (MONTAIGNE, 1972, p. 48) A existência para os epicuristas é justificada pela busca de prazer para se sanar qualquer dor e sofrimento. A vida não se justifica na pena e no sofrimento, muito pelo contrário, se justifica na sua fuga.
[…] O que importa, antes de tudo, é libertar a “carne” de seu sofrimento, o que lhe permite atingir o prazer. […] na realidade, o indivíduo é movido apenas pela procura de seu prazer e de seu interesse. No entanto o papel da filosofia consistirá em saber procurar o prazer de maneira racional, isto é, em procurar o único prazer verdadeiro, o puro prazer de existir. (HADOT, 2014, p. 171)
Seria, pois, este prazer, não simplesmente o prazer banal proveniente do gozo sexual ou da gula insaciável, seria aquele que permitisse ao sujeito saciá-lo na medida certa e não mais sentir dor pela carência de algo, […] “pois não há prazer conhecido cuja procura em si já não constitua uma satisfação.” (MONTAIGNE, 1972, p. 49) O prazer acontece enquanto sua necessidade é saciada. Uma vez saciada não há mais prazer e o que excede a isso torna o homem infeliz.
O prazer, para Montaigne, seria assim como para os epicuristas a razão de uma vida feliz. O ser humano estaria sempre em busca deste prazer, e só estaria pleno no momento em que ele fosse saciado. Não seria uma busca desenfreada do prazer, mas na medida em que a dor e o sofrimento não existissem mais em virtude daquela carência.
O pensamento de viver segundo o desígnio da natureza e a noção de corpo e alma epicurista se complementam. Para eles “a ‘carne’ não está separada da ‘alma’, se é verdade que não há prazer ou sofrimento sem que se tenha consciência e sem que o estado de consciência se reproduza, por sua vez, na ‘carne’”. (HADOT, 2014, p. 170-171) e este é um desígnio natural do ser humano, faz parte de sua totalidade ser assim, o prazer é então reflexo de sua natureza. A totalidade corpo e alma querem e desejam o prazer.
Como tudo o mais, a alma consiste em átomos, diferentes dos outros átomos, diferentes dos outros átomos somente por serem menores e mais sutis; estes átomos se dispersam no momento da morte e a alma deixa de perceber as coisas. (EPICURO[1] apud KENNY, 2008, p. 126)
A aceitação desta ideia da física epicurista por Montaigne fica subentendida, é nas entrelinhas de sua fala que se percebe sua aproximação deste conceito. “E não é somente a voz da razão que a isso nos conduz, pois por que temeríamos perder uma coisa que, uma vez perdida, já não podemos lamentar?” (MONTAIGNE, 1972, p. 53) Este não poder lamentar a morte quando ela chega deixa subentendido que o pensador não crê numa consciência extracorpórea. Em nenhum momento ele se baseia numa ideia que transcenda ao corpo no pós-morte, pelo contrário, demonstra que a vida só pode ser vivida no corpo, e por isso sentir se torna como uma prioridade.
Epicuro, na Carta a Meneceu irá enfatizar este pensamento de que com a morte tudo se extingue, e nem mesmo a lamentação é possível. “A morte nada é para nós, visto que nos bastamos a nós mesmos; a morte nada é e, quando a morte é, não existimos mais”. (EPICURO[2] apud HADOT, 2014, p. 178)
Sustentado especialmente por este argumento, Montaigne afirma que uma vida completa não é ditada pelos dias em que se viveu, mas sim pela forma como se viveu, ou, numa possível interpretação, dos prazeres de que gozou. “O razoável e o piedoso está em tomar como exemplo a humanidade de Jesus: ora, sua existência terrena findou-se aos trinta e três anos.” (MONTAIGNE, 1972, p. 50) E, ainda assim, não se pode afirmar que Ele levou uma vida medíocre.
Considerações finais
O livre uso que Montaigne faz dos pensamentos das escolas helenísticas mostra a sua facilidade em percorrer quaisquer caminhos na defesa de suas ideias, mesmo que estes caminhos sejam em diversos aspectos divergentes. Ora, epicuristas e estoicos se divergem nitidamente no que concerne ao modo de viver a vida. Enquanto para estes a moral e o banimento dos prazeres é o fator preponderante, para aqueles é justamente no prazer que se encontra a razão de viver.
Fica evidente que Montaigne não quer ser classificado como pertencente a esta ou àquela escola, mas simplesmente quer depurar aquilo que elas possuem e que de certa forma o apraz. Aproximando estoicos de epicuristas ele mostra que em filosofia, mesmo em campos distintos pode haver convergências, e derivar daí a sustentação de um pensamento novo e justificado, sem que se tenha que defender toda a doutrina de onde origina a referida sustentação.
A morte não se torna descomplicada em Montaigne. Talvez nem seja este seu objetivo. Mas o descortinar da morte que ele propõe passa pela sua aceitação por parte de cada um, que realizará em sua vida esta naturalização proposta. O uso do pronome “eu” em seu texto, assim como a ênfase que ele dá em estar preparado para a morte, parece mostrar que ele quer mais convencer a si mesmo desta ideia do que a qualquer outra pessoa.
Referências
FETZ, Reto Luzius. Michel de Montaigne – Filosofia como busca por auto identidade. In: BLUM, Paul Richard (Org.). Filósofos da Renascença. Tradução Nélio Schneider. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 212-227.
HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? Tradução Dion Davi Macedo. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2014.
KENNY, Anthony. Uma nova história da filosofia ocidental. Filosofia Antiga. Vol. I. Tradução Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Loyola, 2008.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios I. Tradução Sérgio Milliet. 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1972. (Os Pensadores)
ORIONE, Eduino José de Macedo. A meditação da morte em Montaigne. 2012. 151 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade de São Paulo: São Paulo, 2012. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-14092012-114446/pt-br.php> Acesso em: 14/02/2017.
* Bacharelando em Filosofia pela Faculdade Arquidiocesana de Mariana.
[1] Carta a Heródoto, DL 10, 63-7
[2] Carta a Meneceu, §§ 124-125 [Carta a Meneceu, in Diógenes Laércio, op. cit., pp. 311-314.]; Balaudé, p. 192; Diano, p. 362.