José Mário Santana Barbosa*

Resumo: A análise da Teogonia de Hesíodo é, sem dúvidas, desafiadora. Nesse breve estudo não se objetiva de maneira nenhuma atingir-se o inalcançável sentido completo da epopeia de Hesíodo. O objetivo é, sim, indicar que a obra representa não somente uma descrição da crença politeísta na Grécia “arcaica”, mas também um conjunto de fatos sociais complexos, inseridos em uma realidade social que dista séculos da nossa, tendo portanto, características imensamente distintas, algumas das quais serão aqui analisadas, juntamente com o enredo da obra.

Palavras-chave: Teogonia. Deuses. Grécia. Epopeia. Mito.

 

INTRODUÇÃO

 

Composta por Hesíodo, a Teogonia gera até os dias atuais muito interesse da comunidade acadêmica, especialmente àqueles que muito se interessam por beber diretamente da fonte da busca pelo “saber”, onde a Filosofia começou.

Mais do que uma obra histórica e “folclórica”, contudo, a Teogonia possui aspectos muito importantes que não podem passar despercebidos e que, juntamente com uma breve exposição do enredo da epopeia, serão o objetivo da discussão desse texto. São eles: as características “humanas” atribuídas aos deuses, a influência do poeta (aedo) na sua elaboração, a conotação sagrada da Teogonia, a sua atemporalidade e os seus reais objetivos.

 

1 Exposição do enredo

 

A narração inicia descrevendo as Musas, filhas de Zeus e Memória e habitantes do Monte Hélicon. São nove moças: Glória, Alegria, Festa, Dançarina, Alegra-coro, Amorosa, Hinária, Celeste e Belavoz. Do topo do monte e envoltas por espessa névoa, as Musas cantam os feitos dos deuses, hineando em especial os de Zeus, o mais forte, criador de todos os outros. Foram elas também que ensinaram a Hesíodo seu belo canto, enquanto ele pastoreava ovelhas aos pés do Hélicon.

 

Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto

quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.

Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas

Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:

“Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,

sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos

e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”.

Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas,

por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso

colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto

divino para que eu glorie o futuro e o passado,

impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos

e a elas primeiro e por último sempre cantar. (HESÍODO, 1995, p. 88-89)

 

A partir de então, as Musas começam a narrar a história da criação dos deuses, seguindo uma ordem mais ou menos “genealógica”. Derivados dos deuses primordiais – Caos, Terra, Tártaro e Eros –, e a partir de relações entre si, nascem os demais (que irão gerar outros): Érebo, Noite, Éter, Dia, Céu, Montanhas, Mar, Oceano, Coios, Crios, Hipérion, Jápeto, Teia, Réia Têmis, Memória, Febi, Tétis, Crono, Ciclopes, Trovão, Relâmpago, Arges, Cotos, Briareu e Giges.

Os filhos da união “tempestuosa” entre Terra e Céu eram sempre escondidos pelo pai. A mãe propôs aos filhos vingarem-se do Céu e Cronos, um deles, o fez, decepando o pênis do Céu, quando esse pairou sobre a Terra, querendo unir-se a ela. A partir de então, a obra adquire um caráter bastante descritivo da geração dos deuses (e, por meio deles, dos elementos da natureza). São apresentadas, pois, as descendências da Noite, do Mar e do Céu, bem como, posteriormente, as histórias de outros deuses – como Prometeu, Atlas, Heracles, Atena e Hécate – nas quais percebe-se um profundo caráter de descrição cultural e social do período em que a Teogonia foi escrita.

O conturbado nascimento de Zeus é também narrado na Teogonia. Réia e Cronos tiveram como filhos Héstia, Deméter, Hera, Hades, Treme-terra e Zeus. O pai, contudo, engolia vivos seus filhos logo que nasciam, objetivando nunca ter um “competidor” ao poderio que exercia. Muito desapontada, Réia trama um plano e, quando nasce Zeus, esconde-o e dá uma pedra para Cronos comer em seu lugar. Assim, Zeus cresce e, posteriormente, vence seu pai, libertando também seus irmãos que estavam presos dentro dele.

Em Hesíodo as palavras são forças divinas, Deusas nascidas de Zeus e Memória (as Musas), mas Hesíodo já ouve o apelo do Todo-Uno e é claramente perceptível na Teogonia a tendência de toda a polimorfa realidade e os múltiplos âmbitos do Divino convergirem subordinados à realeza de Zeus Pai dos homens e dos Deuses. (TORRANO, 1995, p. 13)

Ao final, é descrita uma guerra (“Titanomaquia”) entre os deuses do Olimpo (filhos de Cronos) e os deuses do Ótris (os deuses Titãs). Nela, Zeus convence os seus “irmãos” a se unirem para combater os Titãs, que são vencidos em difícil combate e finalmente aprisionados no distante Tártaro, vasto abismo, lugar odiado pelos deuses. Após a luta, Zeus ainda enfrenta e abate Tifeu, deus filho de Terra, que estava se tornando muito poderoso e tomando o lugar do mais forte dos deuses. A Teogonia termina fazendo, mais uma vez, uma “genealogia” de outros deuses filhos de Zeus e da descendência deles.

 

2 Análise da obra

 

A Teogonia tem um caráter bastante peculiar: tentar representar, pela primeira vez em prosa, as tradições orais, que se passavam de geração em geração na Grécia. Assim, essa obra tem o interesse de representar a “formação” dos deuses (theós=deus; gígnesthai=nascer), bem como, a partir disso, deixar clara a formação de seres e fenômenos naturais e socioculturais do mundo antigo. Assim, longe de ser uma obra linear, a Teogonia adquire uma importância fundamental por trazer até nós uma visão de mundo escondida sob a “névoa” do mito da origem dos deuses.

A leitura da Teogonia ultrapassa e extrapola o interesse da mera erudição acadêmica, porque o mundo que este poema arcaico põe à luz, e no qual ele próprio vive, está vivo de um modo permanente e — enquanto formos homens — imortal. Um mundo mágico, mítico, arquetípico e divino, que beira o Espanto e o Horror, que permite a experiência do Sublime e do Terrível, e ao qual o nosso próprio mundo mental e a nossa própria vida estão umbilicalmente ligados. (TORRANO, 1995, p. 14)

De fato, algumas características podem passar despercebidas e até mesmo nos enganar, quando não atentos à leitura da obra. Uma traço indiscutivelmente diferente e estranho ao nosso mundo atual (especialmente à realidade monoteísta) é a presença marcante de traços “limitadores” humanos nos deuses identificados na Teogonia. Ódio, raiva, vingança, alegria, desejos sexuais, medo são apenas alguns exemplos dessa tão antagônica realidade a nós.

A presença do poeta (o aedo) também chama muito a atenção. A Teogonia possui em sua sua estrutura a grande marca da oralidade presente àquela época. Os Mitos não eram perpetuados pela escrita, mas sim, pela figura do aedo, que canta as histórias, sendo um verdadeiro “instrumento da verdade”. Também na epopeia hesiódica esse traço é marcante, como se percebe pela presença das Musas, que são aquelas responsáveis por cantar a Hesíodo a obra que ele escreveu. Aqui, mais uma vez observa-se outro traço marcante: a Teogonia não é tida como uma obra propriamente humana, mas sim, de origem divina, uma vez que foi cantada por deusas, as Musas.

O poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosyne) através das palavras cantadas (Musas). Fecundada por Zeus Pai, que no panteão hesiódico encarna a Justiça e a Soberania supremas, a Memória gera e dá à luz as Palavras Cantadas, que na língua de Hesíodo se dizem Musas. Portanto, o canto (as Musas) é nascido da Memória (num sentido psicológico, inclusive) e do mais alto exercício do Poder (num sentido político, inclusive). (TORRANO, 1995, p. 11)

Outro importante aspecto a ser destacado é a própria atemporalidade que pode passar despercebida em uma descuidada análise da Teogonia. Isso pode ser demonstrado com a “contradição” da presença de Zeus, tanto como ser criado, nascido de Terra e Cronos, como deus criador de todos os outros deuses. Além do mais, a obra não se restringe somente a apresentar a simples origem dos deuses (como seres mitológicos), mas de indicar também, a partir dessa descrição, a origem de fenômenos já identificados à época.

Na Titanomaquia e na doutrina das grandes dinastias dos deuses entra em ação a ideia teológica que Hesíodo tem de arquitetar uma evolução do mundo, cheia de sentido, na qual, além das forças telúricas e atmosféricas, intervenham poderes de caráter moral. (JAEGER, 1995, p. 94)

 

CONCLUSÃO

 

Analisada fria e descuidadamente, a Teogonia pode parecer uma obra linear, folclórica e, de certa maneira, até mesmo previsível. Tal análise faria que incorrêssemos no perigoso erro de pensar ser a Teogonia uma obra tão somente de um valor histórico, que apenas indicaria o modo de se relacionar com o Sagrado dos habitantes da Grécia àquela época.

Uma breve e limitada análise da obra como essa já é suficiente para perceber o grande passo dado por Hesíodo, o de transcrever em prosa – e, assim, perpetuar a cultura vigente –, toda a realidade em que ele estava inserido, ainda que isso tenha causado uma grande “limitação” à originalidade do Mito, característica intrínseca à tradição oral. A narração da criação dos deuses e dos seres e fenômenos naturais e sociais marcou uma época, possibilitando que, a partir dela, e na mesma região em que ela foi identificada, surgisse anos mais tarde, uma ciência toda voltada para a busca do “saber” e da verdade, a Filosofia.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. v. 1. Petrópolis: Vozes, 1986.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 1995.

JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Arthur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

 

* Bacharelando em Filosofia pela FAM.

 

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