Carlos Geovane Nunes Magri *

 

INTRODUÇÃO

 

No que se refere ao ato de conhecer, este pode ser dado a priori e a posteriori. Até Kant, a filosofia encontrava-se em um enorme debate entre Empiristas e Racionalistas, que questionavam qual a fonte do conhecimento: a experiência ou o intelecto, puramente. Kant não duvidou da possibilidade de se chegar a um conhecimento; o esforço epistemológico empreendido por ele pretendeu sanar o antagonismo entre as posições sobre a aquisição do conhecimento. Nem empirismo britânico, tampouco o racionalismo continental: Kant busca mostrar que, apesar do conhecimento fundar-se na experiência, a ela são impostas formas a priori do entendimento contidas na razão humana.

Em sua epistemologia, Kant parte de um método reflexivo, ou seja, ele reflete sobre os conhecimentos racionais que o homem possui. A mudança que Kant propõe – chamada Revolução Copernicana – é de que, ao contrário de a razão do sujeito cognoscente ter de se adequar ao objeto cognoscível, deveriam os objetos ajustarem-se à razão cognoscente: há uma passagem, em teoria do conhecimento, de uma hipótese realista (conhecimento se modela sobre uma realidade dada) para uma idealista (o espírito intervém na elaboração do conhecimento). A intenção aqui almejada é apresentar uma breve introdução ao caminho epistemológico empreendido por Kant ao elaborar seu “idealismo transcendental” e compreender o juízo criado pelo autor: sintético a priori. Para isso, analisar-se-á a introdução da obra “Crítica a Razão Pura”.

 

1 TIPOS DE JUÍZOS

 

Para que se compreenda o idealismo transcendental de Kant, importa precisar a noção dos juízos sintéticos e analíticos. “Um juízo consiste na conexão de dois conceitos, dos quais um (A) cumpre a função de sujeito e o outro (B) cumpre a função de predicado” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 872). Assim, o tipo de juízo é o modo com o qual o conhecimento se relaciona com o objeto, carecendo ou não de uma experiência comprovativa.

No que se refere ao ato de conhecer, este pode ser dado a priori e a posteriori. Sobre o conhecimento a priori, de modo genérico, diz respeito toda proposição universal e necessária, como afirma Kant: “Necessidade e universalidade rigorosa são, portanto, seguras características de um conhecimento a priori e também pertencem inseparavelmente uma à outra” (KANT, 1983, p. 24). O conhecimento a priori independe da experiência, pois como é um tipo de conhecimento universal e necessário, é claro que a partir de uma experiência, se não pela recorrência de generalizações arbitrárias, se incorreriam apenas em juízos particulares e contingentes. Uma afirmação necessária, cujo contrário é impossível, só pode basear-se nas leis da razão; desse modo, é claro ser a razão a única capaz de gerar proposições universais e necessárias (PASCAL, 1990, p. 37).

Os juízos enunciados a partir do conhecimento a priori são denominados de juízos analíticos, pois se limitam a elucidar determinado conceito a partir apenas daquilo que ele próprio enuncia; ou seja, analisa-se apenas o próprio conteúdo de tal conceito sem recorrer a qualquer tipo de experiência. Tais juízos, também denominados afirmativos, “são, portanto, aqueles em que a conexão do predicado com o sujeito for pensada por identidade” (KANT, 1983, p. 27). Em outros termos, num juízo analítico, o que se enuncia a respeito de determinado sujeito está contido no próprio sujeito.

Se por exemplo digo: todos os corpos são extensos, então este é um juízo analítico. De fato, não preciso ir além do conceito que ligo a corpo para encontrar a extensão enquanto conexa com tal conceito, mas apenas desmembrar aquele conceito, quer dizer, tomar-me apenas consciente do múltiplo que sempre penso nele, para encontrar aí esse predicado; é, pois, um juízo analítico. (KANT, 1983, p. 27).

A partir disto, compreende-se que para um juízo analítico, nada é produzido de novo, nada ele acrescenta ao conceito primeiro; é como se apenas desmembrasse-o para melhor compreendê-lo, para esclarecê-lo. Por isso concerne a Kant considerá-los também como juízos de elucidação (KANT, 1983, p. 27): eles não ampliam o próprio conceito. Reside aí em defini-los por universais e necessários: se já estão na própria definição, na conceituação, deve-se afirmar aquilo que será sempre válido.

Quanto ao conhecimento a posteriori, este não permite enunciações universais e necessárias; apenas permite enunciados contingentes e particulares. Isto, pois tal tipo de conhecimento está estritamente relacionado à experiência. A experiência é o que permite constatar que uma realidade particular é dada desta ou daquela maneira, mas não afirma o porquê de determinado objeto de conhecimento ser dado assim e não do contrário, por isso gera apenas proposições contingentes. Do mesmo modo, está ligada a esta ou aquela realidade observada pela experiência, ou seja, limita-se apenas aos casos constatados; por isso é também particular, pois que fosse considerado universal uma proposição que é fruto da experiência de alguns casos, dever-se-ia realizar uma generalização completamente arbitrária (PASCAL, 1990, p. 37).

A partir de um conhecimento a posteriori, enunciam-se os ditos juízos sintéticos; estes, assim denominados, pois realizam, de certo modo, uma síntese entre o sujeito e o predicado. Tal tipo de juízo procede exclusivamente de uma experiência, o que permite ao sujeito cognoscente ampliar seu conhecimento acerca de algo, haja vista não se tratar de uma simples análise do sujeito a partir da qual se extraísse um predicado. Estes tipos de juízos são aqueles em que a conexão entre sujeito e predicado é pensada sem identidade (KANT, 1983, p. 27). Por outras palavras, num juízo sintético, o que se enuncia a respeito de determinado sujeito não está contido no próprio sujeito; o conhecimento provém da experiência que o sujeito realiza – o objeto ganha novas características não contidas no sujeito e outrora não conhecidas.

Quando digo: todos os corpos são pesados, então o predicado é algo bem diverso daquilo que penso no mero conceito de um corpo em geral. O acréscimo de um tal predicado fornece, portanto, um juízo sintético. […] Portanto, é sobre a experiência que se funda a possibilidade da síntese do predicado peso com o conceito corpo, pois embora na verdade um não esteja contido no outro ambos os conceitos se pertencem reciprocamente, se bem que de um modo apenas acidental, como partes de um todo, a saber, da experiência, que é ela mesma uma ligação sintética das intuições. (KANT, 1983, p. 27-28).

Portanto, os juízos sintéticos sempre dizem algo de novo do sujeito, que antes não estavam implícitos neste; por isso concerne a Kant considerá-los também como juízos de ampliação (KANT, 1983, p. 27). Resulta, assim, sê-los sempre juízos particulares e contingentes, pois estarão necessariamente atrelados a experiências particulares. Poder-se-ia considerar como um exemplo de conhecimento elaborado a partir das experiências, ou seja, sintético, o conhecimento científico. Todavia, este elabora proposições universais e contingentes ao mundo da physis. Surge, então, um questionamento: como pode a ciência, baseando-se em experiências, elaborar proposições universais e necessárias? É buscando responder a este questionamento que Kant elabora um terceiro tipo de juízo: o sintético a priori, ou seja, que parta da experiência e que seja capaz de elaborar proposições universais e necessárias.

 

2 O SINTÉTICO A PRIORI

 

O juízo sintético a priori, como atesta sua própria nomenclatura, concilia as características dos juízos sintéticos com a “aprioridade”, ou seja, é possível a elaboração de juízos que ampliem o conhecimento do sujeito e que sejam universais e necessários, mesmo com a recorrência de experiências. Como supracitado, mesmo recorrendo ao uso de experiências, ou seja, a posteriori, o conhecimento científico elabora proposições de caráter universal e necessário, características de um conhecimento a priori.

A reflexão kantiana tentou mostrar que a dicotomia Empirismo e Racionalismo requer uma Solução intermediária, já que “nem conceitos sem uma intuição[1] de certa maneira correspondente a eles nem intuição sem conceitos podem fornecer um conhecimento” (KANT, 1983, p. 57). Consequentemente, “não é possível nenhum conhecimento a priori senão unicamente com respeito a objetos de experiência possível” (KANT, 1983, p. 98).

Tais juízos encontram-se nas proposições matemáticas, geométricas e físicas. Para elucidar, a respeito da matemática, um exemplo: ao se considerar a operação 7+5, de início, há de considerá-la como uma proposição meramente analítica. Porém, segundo Kant (1983, p. 29), isso é uma ilusão que não se segue:

Mas quando se observa que mais de perto, descobre-se que o conceito da soma de 7 e 5 nada mais contém que a união de ambos os algarismos num único, mediante o que não é de maneira alguma pensado qual seja esse único algarismo que reúne ambos. O conceito de doze não é absolutamente pensado pelo fato de eu apenas pensar aquela união de sete mais cinco, e por mais que eu desmembre o meu conceito de uma tal possível soma, não encontrarei aí o conceito de doze.

A partir desta afirmação em Kant, percebe-se que a soma 7 e 5 não é analítica, mas sintética: recorre-se aos dedos das mãos quando se conta – além do uso do ábaco – ou seja, “à intuição, graças a qual nós vemos nascer (sinteticamente) o novo número correspondente à soma” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 873). Kant, assim demonstra a impossibilidade de derivar unicamente da experiência juízos necessários e universais; entretanto, negou o ceticismo de muitos, como o de Hume. Kant não duvidou sobre a possibilidade e a existência efetiva de conhecimentos verdadeiros. A Kant coube apenas mostrar como eram possíveis tais conhecimentos verdadeiros.

 

CONCLUSÃO

 

O que Kant procura com sua teoria do conhecimento é elaborar uma solução ao embate que vigorava entre Empiristas e Racionalistas. O conhecimento não é mais proveniente apenas da experiência ou da razão, mas sim de uma cooperação entre ambas. A partir da análise dos tipos de juízos, Kant procura mostrar que a aquisição do conhecimento se dá a partir de juízos universais e necessários que, porém, provêm da experiência. O conhecimento matemático, geométrico e físico: todos são formulados a partir de juízos sintéticos a priori.

O objeto de conhecimento, segundo Kant, é pensado pelo entendimento e seus conceitos. Conhecer é ligar pelos juízos a priori da razão a multiplicidade sensível. É por isso que se considera Kant um racionalista crítico: não é dogmático, por que recusa à razão humana o poder de conhecer um mundo inteligível, feito de realidades transcendentes, abstidos de quaisquer experiências. Mas também não é cético, pois permite a elaboração de afirmações universais e necessárias a partir da experiência sensível.

Com seu idealismo transcendental, Kant não duvida da existência das coisas fora do sujeito cognoscente; ele entende que as coisas só são conhecidas através das formas que lhes impõe a faculdade de conhecer humana após a intuição pelos sentidos.  A Revolução Copernicana promovida por Kant, que resulta na passagem de uma abordagem realista para uma idealista, não gera um idealismo ontológico, como em tantos outros autores, mas sim um idealismo gnosiológico, ou seja, concernente ao conhecimento das coisas, e não puramente à sua existência.

 

REFERÊNCIAS

 

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Valerio Rocha e Udo Baldur Moosburger. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)

PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. Tradução de Raimundo Vier. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1990.

REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da filosofia: Do Humanismo a Kant. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1990. v. 2.

SILVEIRA, Fernando Lang da. A teoria do conhecimento de Kant: o idealismo transcendental. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis, v. 19, número especial, p. 28-51, jun. 2002.

 

* Graduando em Filosofia na Faculdade Dom Luciano Mendes

[1] Para Kant a única forma de intuição era a intuição sensível. “Intuição designa de uma maneira geral um modo de conhecimento imediato e direto que coloca no mesmo momento o espírito em presença de seu objeto” (DUROZOI; ROUSSEL, apud SILVEIRA, 1993; p. 251).