Carlos Geovane Nunes Magri *
Resumo: O presente artigo pretende servir de introdução à via de resolução do problema do mal existente na filosofia de Santo Agostinho. Santo Agostinho passou pela seita Maniqueísta motivado pelas propostas que esta realizava e pelo teor de algumas respostas por ela feitas a problemas instigantes, como o problema do mal. Todavia, após um período nesta seita, Agostinho sente que o maniqueísmo já não é capaz de solucionar os problemas que lhe eram apresentados; crê também que, muitas vezes, a seita incorria em erros filosófico-teológicos graves. Assim, Aurélio Agostinho propõe um estatuto ontológico do mal em sua filosofia como refutação ao maniqueísmo e como resposta ao problema do mal.
Palavras chaves: Agostinho. Mal. Maniqueísmo. Pecado. Livre-arbítrio.
INTRODUÇÃO
Se Deus é o criador de todas as coisas e, ao mesmo tempo, é sumamente bom, como pode o mundo estar repleto de mal? Como podem coexistir Deus e o mal no mundo? Deus é então o autor do mal? Se sim, é Ele sumamente bom mesmo? Se tal Deus existe, o que é então o mal? Qual sua natureza? De onde ele surge, então? Toda essa série de questionamentos, a qual se determina como fruto do problema do mal, instigou Aurélio Agostinho a iniciar sua jornada em busca de respostas.
Para que se possa compreender o caminho empreendido por Santo Agostinho na sua busca de respostas ao problema do mal, primeiro deve-se compreender a seita maniqueísta, da qual, por durante nove anos, Aurélio Agostinho fez parte. No maniqueísmo, Agostinho encontra de início uma resposta aos seus questionamentos.
Compreendido o pensamento maniqueísta, torna-se agora possível notar quais os pontos que motivaram Santo Agostinho a abandonar tal seita e iniciar sua caminhada no Cristianismo e na filosofia; ou seja, o que, dentro do pensamento maniqueu, foi insuficiente para sanar as dúvidas de Agostinho e com o que o filósofo cristão não concordou para que buscasse refutações.
Para que seja feita uma rápida e sucinta introdução ao problema do mal na filosofia agostiniana – como é, de fato o propósito deste trabalho – analisar-se-á a concepção de mal e o seu estatuto ontológico presente nas obras “A natureza do bem”, “Confissões” e “O Livre-arbítrio”. Com isso, demonstrar a resposta dada por Agostinho de Hipona às perguntas apresentadas no início deste trabalho, refutando assim o maniqueísmo e apresentando uma resposta sistematizada ao problema do mal.
Não é proposta de tal trabalho se aprofundar nas questões fundantes do pensamento do autor; apenas serão expostas as concepções e os caminhos empreendidos por Aurélio Agostinho em sua jornada a procura de refutar as heresias do maniqueísmo e solucionar o problema do mal.
1 O PROBLEMA DO MAL E O MANIQUEÍSMO
Brevemente, e de modo genérico, pode-se definir o problema do mal como um problema pertinente à filosofia envolvendo a coexistência do mal e Deus. O problema estipula que, sendo Deus sumamente bom, onipotente e onisciente, o mal não poderia existir; um ser bom e com poderes ilimitados não criaria um mundo mau; criaria um mundo perfeito. Ao olhar para o mundo e para os seus habitantes, conclui-se que o Deus descrito anteriormente não existe. Este é o problema do mal. Como se pode compatibilizar a coexistência de um mundo repleto de sofrimento e de mal com a existência de Deus?
Uma das maiores respostas ao problema do mal foi a maniqueísta, que apresenta o bem e o mal como uma questão chave para a compreensão do universo, ao invés apenas de evitar tal problema. A matéria, no maniqueísmo, foi feita como algo cósmico, colocando nela o problema do mal. Assim, Agostinho via nessa luta maniqueísta da alma com o corpo, também o dualismo da luta entre o bem e o mal no universo. Como afirma Agostinho (2014, p. 172):
Não tinha, no entanto, ideia clara e nítida da causa do mal. No entanto, qualquer que ela fosse, o procurá-la não poderia obrigar-me a ter por mutável um Deus imutável, se não quisesse tornar-me eu mesmo aquilo que eu procurava. Por isso, na minha busca tranquila, eu estava certo quanto à falsidade da doutrina daqueles de quem me havia afastado por convicção. Via, realmente, que estudavam o problema da origem do mal, estando eles próprios imersos na malícia, a ponto de preferirem imaginar tua substância sujeita ao mal, a se reconhecerem capazes de cometê-lo.
Muito do que se sabe da doutrina maniqueísta está presente nos escritos de Agostinho, que na forma de um grande apologista refuta e combate tamanhas heresias e a ontologia do mal proposta pelos maniqueus. Sua refutação se embasa numa exclusão externa, visto que participou do grupo e depois passou a lutar contra ele.
A doutrina maniqueísta que Agostinho apresenta em suas obras consiste na existência de duas naturezas: uma boa – Deus – e outra má – matéria ou Satanás – não criada por Deus. Esta dualidade coeterna está presente em toda a criação, incorrendo assim num grande erro por atribuir alguns bens para a natureza má e alguns males para a natureza boa, assim confundindo as coisas criadas. Nas palavras do próprio Agostinho (2005, p. 53):
No que chamam de natureza do sumo mal eles mesmos supõe, concomitantemente, muitos bens, a saber: a vida, o poder, a saúde, a memória, a inteligência, a temperança, a força, a riqueza, o sentimento, a luz, a suavidade, a medida, o número, a paz, o modo, a espécie, a ordem; e, ao contrário do que chamam o sumo bem supõe numerosos males: a morte, a doença, o esquecimento, a loucura, a perturbação, a impotência, a pobreza, a insipiência, a cegueira, a dor, a iniquidade, a desonra, a guerra, a destemperança, a deformidade, a perversidade.
Assim, a doutrina maniqueísta responde ao problema do mal isentando o ser humano de qualquer responsabilidade e atribuindo a existência desse princípio dual e contrário – bem e mal – uma constante luta. São propostas duas naturezas, boa e má, e a causa do constante conflito entre elas se dá pela inveja que uma tem da outra (das trevas para com a luz).
2 O ESTATUTO ONTOLÓGICO DO MAL EM SANTO AGOSTINHO
O problema do mal é, segundo os maniqueístas, uma questão metafísica e, justificando a existência do mal, os maniqueístas postularam um dualismo entre o bem e o mal. Agostinho, antes de sua conversão, fazia parte da seita maniqueísta. Todavia, após certo tempo, começa a perceber sérios problemas no sistema maniqueísta por causa das explicações dualistas, sobretudo entre o corpo e alma. Aos maniqueus, “a alma humana é perfeitamente boa […], mas ela está presa ao corpo e suas concupiscências.” (EVANS, 1995, p. 33). No maniqueísmo, corpo e a alma possuíam uma enorme adversidade, pois são duas substâncias que não se homogeneízam, fazendo com que aconteça essa separação dual e acabem por gerar uma disputa entre si.
Agostinho, assim frustrado por não encontrar soluções às suas inquietações no maniqueísmo, abandona a seita. “Agostinho foi motivado desde o interior a abandonar os maniqueus pelo próprio conflito do qual esperara que os maniqueus o resgatassem”. (EVANS, 1995, p. 35). Após um período encontrando-se com Santo Ambrósio, Agostino converte-se ao Cristianismo e inicia sua caminhada filosófica para solucionar o problema do mal que há muito lhe instigava, refutando, desse modo, as críticas ao Cristianismo propostas pela seita maniqueísta.
Influenciado por Santo Ambrósio e pelo neoplatonismo, Agostinho propõe que o problema metafísico do mal envolvia Deus, pois Deus é o sumo bem e criador de todas as coisas. Não há nenhum bem supremo a não ser Deus. Ele não pode mudar, visto que não há nada que possa adquirir para melhorar sua condição de perfeição. Como Deus é sumamente bom e cria tudo, o mal não pode ser parte da criação divina. Agostinho encontra no neoplatonismo a chave da questão a ser resolvida: o mal não é ser, mas sim deficiência e privação de ser. Em sua obra “Confissões”, Agostinho (2014, p. 174-175) afirma que o mal, cuja origem buscava, não é uma substância, porque, se fosse uma substância, seria um bem. E, na verdade, seria uma substância incorruptível e, por isso, sem dúvida um grande bem ou seria uma substância corruptível e, por isso, um bem que, de outra forma, não poderia estar sujeito à corrupção. Por isso, afirma claramente como Deus, sendo sumamente bom, fez boas todas as coisas.
Santo Agostinho, após definir que o mal não pode ser criado por Deus, vai mais além e afirma poder-se examinar o problema do mal de três maneiras diferentes, criando um estatuto ontológico a respeito do mal. O mal pode ser visto, segundo a filosofia agostiniana, em três níveis: metafísico-ontológico; moral e físico. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 455).
O mal, do ponto de vista metafísico ontológico, não existe enquanto substância. Ao realizar a criação ex nihil, Deus conferiu às coisas criadas, segundo sua vontade, o ser. Evidentemente, não a plenitude do ser, que só n’Ele existe, mas apenas uma parcela de participação. “Dessa medida diversa de participação no ser decorre naturalmente certa gradação no ser criado.” (AGOSTINHO apud BOEHNER; GILSON, 1991, p.181). No domínio da criação, o lugar mais elevado cabe ao ser humano.
Do ponto de vista metafísico-ontológico, não existe mal no cosmos, mas apenas graus inferiores de ser em relação a Deus, que dependem da finitude da coisa criada e dos diferentes níveis dessa finitude. Mas mesmo aquilo que, numa consideração superficial, parece um “defeito” (e, portanto, poderia parecer um mal), na realidade na ótica do universo visto em seu conjunto, desaparece: os graus inferiores do ser e as coisas finitas, mesmo as mais ínfimas, revelam-se momentos articulados de um grande conjunto harmônico. (REALE; ANTISERI, 1990, p. 455).
Há, de fato, graus diferentes dos seres – uma hierarquia – que supõe a todos os seres sua bondade, o seu sentido e a sua razão de ser, portanto, constituindo-se como algo positivo, mesmo que seja um ser tido por muitos como mal. Desta forma, percebe-se que, para Agostinho, o mal não é uma substância, pois tudo o que existe é bom, e admitir a existência de uma substância má é atribuir ao criador (que é bom) à criação de tal substância.
No que diz respeito ao mal moral, tem-se o pecado. Este, por sua vez, depende da vontade, do livre-arbítrio. O homem é livre e precisamente nisto reside a possibilidade de pecar, embora não seja o pecado elemento constituinte da essência mesma do livre-arbítrio. Assim como visto, Deus não é o autor do mal, porque d’Ele somente procede toda natureza e os atributos que a conservam, isto é, todas as coisas criadas de cujos atributos o mal é a corrupção ou privação. É o homem, que por vontade livre corrompe a si mesmo e peca, o autor do mal. Todavia, isto não significa que a vontade humana seja, em sua essência, má, tampouco os objetos do seu desejo, pois o mal não é a inclinação a algo mau em vez de algo bom, mas sim a troca de um bem superior por um bem inferior, ou seja, uma inversão na hierarquia de valores: quando se peca (e pecado, na compreensão agostiniana, compreendido por afastar-se de Deus), troca-se o Sumamente Bom (Deus) por uma paixão carnal, algo inferiormente bom.
O mal moral é o pecado. E o pecado depende de nossa má vontade […] a má vontade não tem ‘causa eficiente’, mas, muito mais, uma ‘causa deficiente’. Por sua natureza, a vontade deveria tender para o bem supremo. Mas, como existem muitos bens criados e finitos, a vontade pode tender a eles e, subvertendo a ordem hierárquica, pode preferir a criatura a Deus, preferindo os bens inferiores, aos bens superiores. Sendo assim, o mal deriva do fato de que não há um único bem, e sim muitos bens, consistindo, precisamente, em uma escolha incorreta entre esses bens. O mal moral, portanto, é ‘aversio a Deo’ e ‘conversio ad creaturam’. […] O fato de se ter recebido de Deus uma vontade livre é um grande bem. O mal é o mau uso desse grande bem. […] Por isso Agostinho pode dizer que ‘o bem em mim é obra tua, é o teu dom; o mal em mim é o meu pecado’ (REALE; ANTISERI, 1990, p 456).
Assim percebe-se que é a vontade, ou liberdade, do homem que o leva ou não a pecar. Então, tal vontade pode ser dividida em: boa vontade e má vontade. A boa vontade é a vontade de viver em retidão, o caminho da justiça e da paz, junto a Deus. Desta forma Agostinho define a boa vontade e a coloca num patamar acima das riquezas, honras e prazeres do corpo. É a boa vontade que garante ao homem condições de fazer escolhas para o que é eterno e imutável, da verdadeira alegria. O homem que faz uso da boa vontade, segundo Santo Agostinho, é virtuoso e usará bem das virtudes: prudência, força, temperança, justiça.
A má vontade se caracteriza pela concupiscência, sendo adversa ao bem. Ela almeja as coisas temporais e terrenas. Ao fazer uso da má vontade, o homem cairá numa vida infeliz, pois afastar-se-á de Deus e pensará apenas em seu bem próprio, muitas vezes, para alcançar tal bem próprio, incorrendo em erros e em pecados. Disso, afirma-se que a vontade é o que possibilita ao homem ir em direção ao sumo Bem, ou ir em direção às coisas mutáveis; de pecar ou de não pecar; de praticar o mal, ou de não o praticar.
Dentro do estatuto ontológico do mal em Agostinho, por fim existe o mal físico. Este, compreendido por dores, sofrimentos, doenças e morte, por sua vez. Significa, de modo genérico, consequência do pecado original, ou seja, é uma consequência do mal moral.
Se sabes ou acredita que Deus é bom – e não nos é permitido pensar de ouro modo-, Deus não pode praticar o mal. Por outro lado, se proclamamos ser ele justo – e negá-lo seria blasfêmias –, Deus deve distribuir recompensas aos bons, assim como castigos aos maus. E por certo, tais castigos parecem males àqueles que os padecem. (Agostinho, 1995, p. 25).
Tudo o que se sofre, se padece, e que, em alguns casos, parece ser um mal, na verdade são apenas consequências do verdadeiro mal: o pecado – mal moral. “A corrupção do corpo que pesa sobre a alma não é a causa, mas a pena do primeiro pecado: não é a carne corruptível que torna a alma pecadora, mas sim a alma pecadora que torna a carne corruptível.” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 456).
Agostinho deixa claro que a causa de todos os males está relacionada com a criação, mas em sua concepção, a natureza não é responsável pelos pecados, pois está na vontade desregrada do homem a causa dos males. Se a vontade estivesse de acordo com a natureza, esta não lhe seria nociva e não seria desregrada. Assim, pode-se concluir que “a raiz de todos os males não está na natureza. E isso basta, por enquanto, para refutarmos todos aqueles que pretendem responsabilizar a natureza dos seres pelos pecados. (AGOSTINHO, 1995, p. 206). A raiz dos males está na vontade desregrada do homem, na inversão da hierarquia dos bens, no mau uso do livre-arbítrio.
CONCLUSÃO
De acordo com o que foi apresentado, cumpre-se assim, a proposta deste trabalho: apenas servir de introdução à resposta ao problema do mal presente no pensamento de Santo Agostinho, através da elaboração de um estatuto ontológico do mal por parte deste autor. Sabe-se que, como alguém que fez parte da seita maniqueísta por nove anos, Agostinho foi motivado pelo pensamento maniqueu a empreender sua jornada em busca de respostas.
Em suma, pode-se dizer que a doutrina maniqueísta consiste na existência de dois reinos opostos, luz e trevas. Tal doutrina serviu de início para a refutação do problema do mal, todavia sua fundamentação teórica resultou em algumas heresias à fé cristã e alguns questionamentos permaneceram pendentes, o que levou o jovem Aurélio Agostinho a abandonar a seita maniqueísta e, após encontrar-se com Santo Ambrósio, abraçar definitivamente o Cristianismo, lançando sua própria filosofia.
Influenciado por Santo Ambrósio e pelo neoplatonismo (principalmente Plotino), Agostinho apresenta sua refutação ao maniqueísmo e tenta solucionar o problema do mal com uma explicação que serviu e serve até hoje como ponto de referência. O problema do mal, segundo Santo Agostinho, pode ser analisado através de três aspectos: metafísico-ontológico; moral e físico.
O mal, na filosofia agostiniana, não é fruto de Deus (já que é sumamente bom e criador de tudo), mas sim fruto da vontade humana que se afasta de Deus, ou seja, é uma consequência do livre-arbítrio. O mal moral, na visão de Santo Agostinho, consiste na inversão de valores que o homem cria, colocando o Sumamente Bom – Deus – em segundo plano, deixando assim com que os bens inferiores – paixões terrenas – assumam o seu lugar na hierarquia de valores humanos. Cometer o mal é furtar-se aos bens menores e privar-se dos bens eternos. O que, para muitos resulta num mal, é uma tentativa do homem de buscar um bem para si, todavia sem compreender o bem maior. A vontade do homem o guia para buscar esses bens: ora uma boa vontade, ora uma má vontade. Assim, a vontade humana possui uma autonomia que permite ao homem escolher até mesmo aquilo que não está em conformidade com a razão.
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo. A Natureza do Bem. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2005.
______. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 2014.
______. O livre-arbítrio. Tradução, organização, introdução e notas de Nair de Assis. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1995.
BOEHNER, Philotheus. GILSON, Etienne. História da filosofia cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. Tradução e nota introdutória de Raimundo Vier. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
EVANS. G. R. Agostinho sobre o mal. Tradução de João Resende Costa. São Paulo: Paulus, 1995.
REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1990.
* Graduando em Filosofia na FAM