Antônio Marcos Maciel Ferreira[*]
Resumo: A categoria do espírito é o que confere ao ser humano a capacidade de agir racionalmente e livremente. Usando o método vazeano de compreensão das estruturas fundamentais do ser humano, apresentaremos a compreensão de espírito em Lima Vaz. Esta categoria é de suma importância uma vez que ela permite que o homem transcenda os limites de espaço e tempo e se abra para a relação com a transcendência; no decorrer da história da filosofia, o tema do espírito ora passou por um momento em que queria ser extinguido, ora também foi compreendido de diversas formas. A categoria do espírito é o que faz com que o homem seja o que ele é, essa categoria é própria do ser humano. Pelo espírito é conferida ao ser humano a capacidade de relacionar com o mundo/objeto, com o Outro e com a transcendência. Se se tira essa categoria do ser humano, ele vira um animal qualquer, sem razão. Para a confecção deste trabalho tomaremos o seguinte método: a)- Considerações gerais sobre o espírito; b)- A explicação do espírito segundo o método vazeano; c)-O homem e suas relações.
Palavras – chave: Antropologia. Lima Vaz. Categorias estruturais. Espírito. Relações humanas.
INTRODUÇÃO
Na antropologia sistemática de Lima Vaz encontramos três categorias/estruturais que são fundamentais para o ser humano, a saber: a categoria do corpo próprio, do psiquismo e do espírito. Neste disserto, abordar-se-á apenas a categoria do espírito, como veremos mais adiante; mas, ao abordarmos a categoria do espírito, as demais categorias estruturais também serão trabalhadas, isso porque é a categoria do espírito que confere unidade a todas as demais categorias. Quando fala que o ser humano é um ser espiritual, o corpo e o psiquismo já estão suprassumidos nessa afirmação. Para apresentar cada uma dessas estruturas fundamentais, Lima Vaz apresenta-nos um método que envolve três níveis de conhecimento que, segundo ele, a Antropologia deve levar em consideração no processo de conhecimento do homem. São estes os três níveis: a) – a pré-compreensão; b) – a compreensão explicativa; c) – a compreensão filosófica.
No estudo sobre o homem, a pré-compreensão é entendida como o contexto cultural no qual predomina alguma imagem do homem, se manifesta nas representações, nos símbolos e nas crenças, conforme nos diz Lima Vaz. Na compreensão explicativa encontramos o método próprio de cada ciência e seu modo de compreender o homem; e, por fim, temos o plano da compreensão filosófica em que o homem, segundo encontramos, é tematizado, o homem torna-se capaz de dar razão ao seu próprio ser e formular a pergunta: o que é o homem? Para iniciarmos os nossos estudos, é de suma importância compreendermos esse método utilizado pelo Pe. Lima Vaz, pois é através desse método que ele nos apresentará no percurso da história da filosofia a pré-compreensão, a compreensão explicativa e filosófica das categorias estruturais do corpo próprio, do psiquismo e do espírito.
Segundo Lima Vaz, a categoria do espírito, tema central da nossa pesquisa, é o ápice da unidade do ser humano, pois, permite que ele seja um ser aberto para a relação com a transcendência e com o outro. Na história da filosofia muitos tentaram negar essa categoria fundamental do ser humano; esse negar é entendido por estudiosos como uma espécie de apelo para que não ouse tocar no solo proibido da transcendência e do próprio espírito. Mas, sem a categoria do espírito, nos diz o nosso filósofo em seu livro Antropologia Filosófica I, o discurso sobre o homem se torna partido e incluso. A partir de agora, veremos a concepção de espírito no método vazeano, os diferentes modos como o espírito foi compreendido na histórica da filosofia e, também, a visão científica e filosófica desta categoria estrutural fundamental do ser humano.
- CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O ESPÍRITO
A categoria do espírito é definida em Lima Vaz como a capacidade racional que o ser humano tem de agir livremente; é uma categoria que, de certo modo, se apresenta como a que mais identifica o ser humano como ser humano. “Com a categoria do espírito ou com o nível estrutural aqui designado com noético-pneumático, atingimos o ápice da unidade do ser humano” (LIMA VAZ, 1991, p. 201). Com a categoria estrutural do espírito, o homem se torna capaz de transcender o espaço e tempo, com o espírito o homem é livre para voltar ao tempo, para ir ao futuro; diante disso, duas características são importantes: a racionalidade e a liberdade. A liberdade que tratamos aqui e que é apontada por Lima Vaz, não se trata da liberdade no sentido de ir e vir, e sim no sentido de o espírito pensar livremente.
Segundo os estudiosos, o termo “espírito” é herdado da teologia, aplicado ao homem por analogia. No homem, a noção de espírito é coextensiva e muito parecida com a noção do ser; quando falamos de espírito estamos falando do ser que também é bondade, verdade e unidade; de certo modo, essas características da bondade, verdade e unidade são os transcendentais do ser tratados por São Tomás de Aquino. O que me faz ser humano, conforme dissemos, é a categoria do espírito. Lima Vaz nos mostra em suas obras que encontramos um diálogo muito fecundo entre antropologia e metafísica, na procura da razão de ser mais profunda do ser humano, chega-se à conclusão de que o ser mais profundo do humano é o espírito. O espírito, conforme nos diz o Pe. Lima Vaz, imprime no ser humano as marcas do infinito e lhe dá a possibilidade de superação das limitações físicas do espaço e do tempo. Em suma, a categoria do espírito confere ao homem a capacidade de relacionar-se com as coisas, até mesmo com aquilo que foge do âmbito do espaço e do tempo físico.
Com a categoria do espírito ou com o nível estrutural aqui designado como noético-pneumático, atingimos o ápice da unidade do ser humano. É nesse nível que o ser do homem abre-se necessariamente para a transcendência: trata-se de uma abertura propriamente transcendental, seja no sentido clássico, seja no sentido kantiano-moderno, que faz do homem nesse cimo de ser que é também, para usar outra metáfora, o âmago mais profundo se sua unidade, um ser estruturalmente aberto para o outro. (LIMA VAZ. 1991. p. 201)
No decorrer da história, o espírito foi compreendido de várias formas. Na obra Antropologia Filosófica I o autor apresenta, pelo menos, quatro compreensões pelas quais o espírito foi apresentado, a saber: o espírito compreendido com pneuma, nous, logos e synesis. “O espírito compreendido como pneuma é o espírito compreendido como princípio de vida; o espírito como nous envolve a forma mais elevada de conhecimento, de contemplação/theoria. O espírito como nous é a capacidade do ser humano de contemplar e guardar as coisas. O espírito como Logos envolve a capacidade organizativa, a capacidade de ordenar as coisas no meu intelecto; neste sentido do espírito como logos também colocamos a questão da palavra, a palavra tem para nós um significado muito especial uma vez que ela expressa aquilo que está dentro de nós, em nosso interior. A última forma de compreensão do espírito, é o espírito como synesis, que é a capacidade de o ser humano reconhecer-se a si mesmo” (Cf. LIMA VAZ, 1991, p.2013)
A categoria do corpo próprio me situa no espaço e no tempo, mas pelo espírito eu consigo transcender o espaço e o tempo e ter contato com a transcendência. Pela racionalidade o ser humano é um ser que se abre à verdade, seja ela das coisas ou de si mesmo, mas a alienação prende o ser humano e o faz com que não busque mais a verdade. Pela liberdade, o homem busca o bem, e o primeiro bem que buscamos é o bem para nós mesmos, visto que ninguém busca o mal para si mesmo; neste sentido, aquele que busca o mal para si mesmo é um problema enfrentado de auto rejeição, só o ser humano tem espírito, portanto, só o ser humano possui atos espirituais.
Com efeito, em sua estrutura espiritual ou noético-pneumática, o homem se abre, enquanto inteligência (nous), à amplitude transcendental da verdade, e, enquanto liberdade (pneuma), à amplitude transcendental do bem: como espírito ele é, pois, o lugar do acolhimento e da manifestação do Ser e do consentimento ao Ser: capax entis. (LIMA VAZ. 1991. p. 202)
Quando Lima Vaz afirma que o homem é um ser espiritual, quer dizer que ele é corpo, psiquismo, razão e liberdade; quando fala que o homem é um ser espiritual, todas as outras categorias são importantíssimas, pois, uma categoria suprassume a outra elevando-a. Neste sentido, levando em consideração a categoria de corpo próprio, dizemos que o corpo não é entendido apenas em sua visão físico-biológica, mas é também uma totalidade intencional, conforme nos diz Lima Vaz, em que o homem se torna capaz de dar ao seu corpo uma intencionalidade que transcende o nível físico-biológico.
No que diz respeito ao psiquismo, podemos dizer que a passagem do estar-no-mundo para o ser-no-mundo, ou da presença natural para a presença intencional, dá-se, segundo Lima Vaz, no sentido de uma interiorização do mundo ou da constituição de um mundo interior. Vemos que o problema do psiquismo, esse intermediário entre o corpo e o espírito, é um problema que percorre toda a história da filosofia. O psiquismo, conforme encontramos em Lima Vaz, é o primeiro estágio de interiorização do mundo, é pelo psiquismo que o homem consegue interiorizar as realidades provenientes do mundo externo. Em suma, o psiquismo assume o corpo dando a ele um sentido mais elevado.
Em Lima Vaz. a categoria estrutural do espírito também pode ser chamada de noético-pneumática; o noético se encontra na dimensão do pensamento, da inteligência e da razão, enquanto que, na dimensão pneumática, encontramos o espírito propriamente dito, a ideia de sopro e de liberdade. O ser humano é formado pelas categorias de corpo próprio, psiquismo e espírito, mas é o espírito que confere unidade a todas essas categorias; quando se fala que o ser humano é um ser espiritual, de certo modo dizemos que o corpo e o psiquismo já estão suprassumidos, e é justamente por esse motivo que não podemos falar do espírito sem abordar as outras categorias do corpo próprio e do psiquismo. Cada uma das categorias estruturais, nos diz Lima Vaz, abre espaço para alguma relação, o espírito se abre à relação com transcendência, o psiquismo com as pessoas e o corpo próprio com as coisas. Em cada uma dessas relações percebe-se a primazia de uma categoria estrutural do ser humano, a saber: na relação de objetividade a primazia é do corpo, na de intersubjetividade a primazia é do psiquismo, e na relação de transcendência a primazia é do espírito; mas sobre essas relações não trataremos agora, e sim posteriormente.
Segundo Lima Vaz, em cada uma dessas esferas há a primazia de uma das estruturas que integram a totalidade do ser-homem: na relação de objetividade, a primazia é dada ao corpo próprio, enquanto condição primeira de possibilidade da presença humana à realidade na forma de abertura ao mundo; na relação de intersubjetividade, a primazia é dada ao psiquismo, uma vez que este é a condição primeira de possibilidade da presença humana à realidade, na forma de abertura ao outro (ou à História); e na relação de transcendência, a primazia é dada ao espírito. (POZZO, 2014, p 60-61)
- A EXPLICAÇÃO DO ESPÍRITO SEGUNDO O MÉTODO VAZEANO
Na pré-compreensão da categoria do espírito encontramos as várias manifestações do espírito na cultura e na história, e isso se percebe através do modo como o homem age na sua história e na sua cultura. A história que nós construímos é sempre história espiritual, conforme nos diz Lima Vaz. A história é segundo o espírito, o mundo é compreendido e significado pelo homem. Lima Vaz dá uma grande ênfase na questão da linguagem para dizer que a linguagem e os símbolos são características marcantes do ser humano como animal simbólico.
A presença espiritual como presença reflexiva confere à linguagem sua forma especificamente humana de manifestação. No nível do espírito, o ser-no-mundo do homem é um ser de linguagem, entendendo-se aqui linguagem num sentido amplo como sistema de signos e significações. Portanto, o mundo no qual o homem existe pelo espírito é o mundo da linguagem ou das formas simbólicas: nele se desdobram as três dimensões do nosso ser-no-mundo: o Eu, a Sociedade e a Natureza” (LIMA VAZ, 1991, p. 207).
Na compreensão explicativa na qual abordamos o espírito sob o viés científico, podemos dizer que o mesmo não pode ser objeto da ciência. Estudiosos disseram que é possível ser objeto da ciência certas classes de operações do espírito como a ciência da linguagem, os atos livres, a psicologia da vontade, o processo de conhecimento, a lógica, etc. Em suma, na compreensão explicativa da categoria estrutural do espírito afirmamos que não há ciência do espírito, mas ciência das manifestações do espírito.
Para Lima Vaz, na compreensão explicativa não é possível encontrar procedimentos metodológicos científicos que possam “conceituar” de forma operativa, através de leis e teorias, uma compreensão do espírito. O que se mostra viável fazer é estudar a linguagem, diante dos mais variados ramos das ciências da linguagem; assim é possível, por exemplo, estudar o ato livre por meio da psicologia da vontade, as operações cognitivas por intermédio das novas ciências da cognição e das neurociências. (POZZO, 2014, p. 41)
Na compreensão filosófica encontramos dois modos de compreender o espírito; primeiramente podemos compreendê-lo de uma forma transcendental, depois de forma categorial, pois, em mim o espírito se torna uma categoria. Na modernidade, porém, o espírito se torna condição de possibilidade do agir humano. “Descobrir a dimensão espiritual do homem é descobrir as reais condições de possibilidade do seu agir como humano”. Atos humanos são atos nos quais concorrem nele a dimensão do espírito.
Na antiguidade, Lima Vaz acentua que a razão era compreendida de uma forma mais demonstrativa, ou seja, o interesse da razão é o contemplativo, contemplar o bem e buscar o fundamento da realidade. No medievo, porém, a razão está a serviço da fé e deve ser iluminada, segundo vários autores, pela graça divina; a razão que não se deixa iluminar pela graça divina não é uma razão reta e que se curva diante do sagrado. Na modernidade, encontramos a autonomia e a instrumentalização da razão pela ciência e pela técnica; o conhecimento moderno não é conhecimento da razão grega, mas do saber fazer. A razão contemporânea, segundo Lima Vaz, é a razão do diálogo; a razão do diálogo permitiu ao homem ir além da visão científica, agora também o homem se tornou capaz de refletir sobre determinados objetos, indo, neste sentido, além da visão científica.
“Vemos que a razão moderna carrega uma intensão espiritual que se fecha no império de si mesmo. Nesse autocentramento, o espírito imanente rompe com a transcendência e torna-se incapaz de perceber a efetivação do ser, a ponto de ser esquecido. O aumento acentuado do individualismo conduz a uma espécie de absolutização da racionalidade instrumental em suas ações e um autocentramento que o faz indiferente às questões do ser e do outro” (POZZO, 2014, p. 92).
Ainda da compreensão filosófica, mas agora na aporética crítica, encontramos o momento eidético da Categoria do Espírito na Antropologia de Lima Vaz; no momento eidético encontramos que a essência do homem é ser aberto, ser aberto no sentido de se relacionar com as coisas, com o outro e com a transcendência, o ser humano é um ser de relações. Compreendemos que a essência é aquilo que faz com que a coisa seja o que é e não outra, e que no caso do homem a sua essência é estar aberto; o homem possui uma essência que não o limita, mas que o abre para a interação com o absoluto, com o infinito. Em suma, o eidos da Categoria do Espírito é a abertura estrutural; no momento eidético o aspecto da abertura do homem, algo próprio da sua essência, é um tema de suma importância.
Por fim, entramos no momento tético, último momento que Lima Vaz utiliza na análise das categorias. Neste momento encontra-se a questão do quiasmo do espírito que é, segundo Lima Vaz, o entrelaçamento da razão e da liberdade na vida do espírito. A razão acolhe o ser e a liberdade aceita o ser. Enquanto mais o ser humano fazer o bem, mais livre ele será, pois, o bem é a verdade da liberdade e a verdade é o bem da inteligência. Quanto mais o ser humano se aproximar da verdade, mais automaticamente ele vai procurar fazer o bem; o homem que busca o quiasmo do espírito procura a felicidade não nos prazeres deste mundo, mas apenas em Deus que é o fundamento absoluto dos sentidos.
A experiência de Deus é, para o ser humano, uma experiência de liberdade, quando o homem absolutiza o prazer, o dinheiro e o poder, ele se torna um objeto qualquer fadado a responder aos seus próprios comandos. Neste sentido citamos a encíclica papal Splendor Veritatis do Papa São João Paulo II, na qual encontramos que não há verdade que não conduz ao bem, e não há bem que esteja desvinculado da verdade. A Igreja defende a ideia de que há a vinculação entre liberdade e bem, razão e verdade. O Papa nos mostra como a verdade está em íntima união com a liberdade, mas a verdade da liberdade deve estar em busca do Bem, pois, sendo o contrário, torna-se uma liberdade falsa.
“A razão e a experiência atestam não só a debilidade da liberdade humana, mas também o seu drama. O homem descobre que a sua liberdade está misteriosamente inclinada a trair esta abertura para o Verdadeiro e para o Bem, e que, com bastante frequência, de fato, ele prefere escolher bens finitos, limitados e efêmeros. Mais ainda, por detrás dos erros e das opções negativas, o homem detecta a origem de uma revolta radical, que o leva a rejeitar a Verdade e o Bem para arvorar-se em princípio absoluto de si próprio: ‘Sereis como Deus’ (Gn3,5). Portanto, a liberdade necessita de ser libertada. Cristo é o seu libertador: Ele ‘nos libertou, para que permaneçamos livres’ (Gl5,1)” (VERITATIS SPLENDOR, 86).
Finalizando estas nossas considerações acerca do espírito, concluímos dizendo que a estrutura noético-pneumática é o homem presente a si mesmo, ao mundo e ao outro. A partir de Descartes, a dimensão transcendental do homem foi diminuída. Deus é usado apenas para justificar alguns sistemas filosóficos, como Descartes que afirma a existência de Deus para fundamentar o cógito. Também encontramos a afirmação de que nos primeiros pós-hegelianos, os que mais negam a dimensão espiritual do ser humano, destaca-se Marx; este diz que o que movimenta o mundo é a matéria e as relações, nega a dimensão espiritual do ser humano. Juntamente com Marx se encontra Freud que considera a ideia de que a transcendência é uma projeção, ou seja, projetamos no ser espiritual aquilo que está dentro de nós. Em suma, percebemos nos pensadores modernos a fragilidade dos discursos sobre o espírito, mas conforme nos diz o Pe. Lima Vaz, todo discurso sobre o homem que não fala do espírito se torna um discurso fragilizado.
- O HOMEM E SUAS RELAÇÕES
“No seu âmago mais profundo, o homem é estruturalmente aberto para o outro”. Vimos nas considerações a respeito da categoria do espírito que o homem não é fechado em si mesmo, aquilo que identifica o ser humano (liberdade e racionalidade) ao invés de fechá-lo em si mesmo, o abre. “O homem é, pois, ser-em-relação segundo a totalidade estrutural que o constitui como corpo psiquismo e espírito” (LIMA VAZ, 1991, p. 14). Se o ser humano não fosse um ser aberto, poderíamos desconsiderar a dimensão relacional do homem; se o ser humano é um ser aberto, ele é aberto às relações. Temos três tipos de ralação, a saber: a relação de objetividade, que compreende a relação do homem com as coisas/mundo; a relação de intersubjetividade, que envolve a relação entre as pessoas; e, por fim, temos a relação de transcendência que é compreendida como a nossa relação com o infinito e o absoluto.
“Aqui, ao iniciarmos o estudo das categorias de relação, aparece toda a sua importância, pois é em virtude dela que podemos falar de uma abertura intencional do homem, na sua unidade estrutural de corpo-alma-espírito, à realidade na qual está situado. Abertura que se desdobra em níveis relacionais distintos, segundo a forma própria da realidade com a qual o sujeito se relaciona, mas que é determinada fundamentalmente pela presença espiritual, regida pela dialética do em-si e do para-nós descrita a propósito da pré-compreensão do espírito” (LIMA VAZ, 1991, p.13)
O ser humano está situado no tempo e no espaço; se está situado, significa que está num mundo relacional. O ser humano possui uma finitude constitutiva, questão essa que interfere no modo de como se relaciona. Todo sujeito humano não é sujeito puro, a intuição de si mesmo só é possível através do contato com outras realidades; não temos intuição imediata, tudo é um processo de construção no qual vamos intuindo a nós mesmos a partir do momento em que vamos tendo contato com as coisas. Em suma, o fato de o homem não possuir uma intuição pura aponta para a capacidade de o mesmo se relacionar com o mundo. As relações nascem da estrutura humana; a estrutura do corpo próprio possibilita uma relação maior com o mundo da objetividade, enquanto que na relação de intersubjetividade o que interfere é o psiquismo, pois, o psiquismo é o modo de introjetar o mundo que vem de fora e que interfere no modo como nos relacionamos com as pessoas.
“Podemos afirmar que a unidade estrutural do homem, ao mesmo tempo que assegura sua identidade ontológica e lhe dá forma da ipseidade (reflexão), define-o como ser-em-situação ou como ser-de-presença a uma realidade com a qual se encontra dialeticamente relacionado – dialética que é, fundamentalmente, uma dialética do interior-exterior” (LIMA VAZ, 1991, p.12).
Dentre o conjunto de relações, destacamos primeiramente a relação de objetividade. Esta categoria é a relação do homem com a realidade que lhe é exterior. Em sua obra Antropologia Filosófica II, Lima Vaz apresenta-nos seis sentidos que definem bem essa relação de objetividade, são eles: o sentido lógico, o sentido gnosiológico, o sentido epistemológico o sentido dialético, o sentido moral e, por fim, o sentido antropológico. O mundo com o qual o homem se relaciona de forma não recíproca é entendido como um horizonte onde se desenrolam as experiências humanas; não é possível, nesse sentido, pensar o homem fora do horizonte do mundo, pois, ele é pano de fundo de toda a existência humana. De uma forma geral, entendemos que é no tempo e no espaço que se desenrolam o agir humano.
Outra relação que encontramos na antropologia vazeana é a relação de intersubjetividade. A relação de intersubjetividade é a relação entre sujeitos; trata-se, neste caso, de uma relação recíproca e intencional, pois, sempre quando nos aproximamos de alguém, aproximamos com uma intenção; diante disso afirmamos que na relação entre as diversas realidades não existe uma relação pura, sempre nos aproximamos diante das pessoas ou das coisas marcados por uma intencionalidade do sujeito que se relaciona. Na relação de intersubjetividade encontramos as relações entre o EU – TU e o EU – NÕS. Nos vários períodos da história, o tema do outro foi abordado; no período antigo o outro é contado como um ser da pólis, é um grupo enquanto participa da comunidade humana; no período medieval o outro é o próximo a quem devemos amar, doar, respeitar, ter responsabilidade. Aqui envolve todas as ideias religiosas para pensar o problema do outro; no período moderno vemos o desaparecimento do outro e o surgimento do Eu, ou seja, o outro foi ocultado; no período contemporâneo o outro é aquele que de algum modo participa da história. Na contemporaneidade o outro passa a ser objeto central da reflexão filosófica, conforme nos diz vários estudiosos.
Por fim, apresentamos a última relação tratada por Lima Vaz que é a de transcendência; por causa da sua dimensão espiritual, todo homem se torna capaz de se relacionar com o transcendente. O contato com a transcendência, conforme nos apresenta Lima Vaz, é um contato que se dá, primeiramente, pela razão, e o outro modo é a manifestação da própria transcendência, ou seja, a transcendência se dá, se oferece e se revela. Vimos que, a relação do homem com as coisas (relação de objetividade) é uma relação de exterioridade, a relação com o ser humano é de interioridade, ele está fora de mim, mas ao mesmo tempo está dentro de mim.
O transcendente é exterior ao sujeito porque ele é transcendente, a dimensão de transcendência está salvaguardada essa relação de exterioridade. Por outro lado, o transcendente também está dentro do sujeito, pois ele tem capacidade de acolher a transcendência, capacidade esta que é concedida pelo espírito que o permite acolher o absoluto, o infinito. Em suma, a transcendência é, ao mesmo tempo, interior e exterior ao ser humano; a relação de transcendência é exterior porque o sujeito é finito, e é interior porque o ser humano possui a categoria do espírito que permite essa relação com o transcendente.
CONCLUSÃO
Com este artigo, objetivamos compreender de uma forma mais aprofundada as questões referentes à concepção de espírito e as relações humanas tratadas pelo filósofo brasileiro, o Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz. Como vimos, o espírito é específico do ser humano. Com esta categoria, o homem torna-se capaz de ir além do espaço e do tempo e estabelecer relações com o infinito e com o absoluto. Neste percurso de compreensão do espírito abordamos, sinteticamente, as considerações feitas a respeito das categorias do corpo próprio e do psiquismo, pois, é impossível falar da categoria do espírito sem abordar as demais categorias, é o espírito quem dá unidade a todas elas e é o ápice da estrutura humana.
Pelo fato de o ser humano possuir em sua essência a abertura para o outro, também abordamos a questão das relações humanas aqui denominadas de objetividade, intersubjetividade e transcendência. A essência é aquilo que faz com que o homem seja aquilo que ele é e não outra coisa, e a essência do homem é a abertura para as relações com o mundo, com o outro e com a transcendência. Através do estudo da categoria espiritual tivemos a oportunidade de compreender melhor aquilo que é o homem; e, de fato, conforme nos diz Lima Vaz, não é possível ocultar a categoria do espírito, esse aspecto que faz o homem ir além dos seus limites e contemplar a transcendências. Todo o discurso acerca do homem que deixa de lado a sua dimensão espiritual, torna-se um discurso incompleto e fragilizado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Antropologia Filosófica I. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1991.
______. Antropologia Filosófica II. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
JOÃO PAULO II. Carta encíclica Veritatis splendor. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1993.
POZZO, Edson Luiz Dal. A dimensão do espírito e a relação com a transcendência em Lima Vaz – uma resposta ao niilismo contemporâneo. 2014. 117f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC – RS), Porto Alegre, 2014. Disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/2938/1/457928.pdf
[*] Graduando em Filosofia na Faculdade Dom Luciano Mendes (FDLM)