Antônio Marcos Maciel Ferreira*
Resumo: Este artigo busca apresentar a concepção de Homem na perspectiva de Blaise Pascal; este pensador apresenta uma visão trágica do homem, caracteriza-o como um caniço pensante, um caniço mais frágil de todos, porém, diferenciado pela sua capacidade de pensar. A razão é um ponto muito importante na antropologia pascalina; diante disso, pode-se entender o homem como um paradoxo, ou seja, ao mesmo tempo que o homem é grandeza ele é miséria. Diante do Universo o homem é um nada, mas diante do nada o homem é tudo, é tudo porque ele tem a capacidade de reconhecer-se existente, reconhecimento este que uma árvore, por exemplo, não possui. A miséria do homem consiste em amar a si próprio, não querer ver a sua condição frágil, por isso surge mais um aspecto que é o do divertimento; para fugir da realidade, o homem cria uma série de artifícios para escapar de si mesmo e não se reconhecer miserável. Para bem articularmos este artigo, vamos dividi-lo em duas partes: 1)- O Paradoxo humano: o homem como ser grande e miserável; 2)- O divertimento como fuga da realidade.
Palavras-chave: Grandeza. Miséria. Divertimento. Antropologia. Pascal.
INTRODUÇÃO
O pensamento de Blaise Pascal, conforme afirma Lima Vaz, é uma das obras mais genialmente representativas da transformação da ideia do homem ocidental no limiar da idade moderna; coloca o homem diante da natureza e o define como grandeza e miséria, ao mesmo tempo. Nisto consiste a dualidade ontológica ou paradoxo humano estabelecido por ele. A grandeza do homem consiste, sobretudo, em sua capacidade racional, o homem reconhecer-se existente, e é esse “reconhecer” que faz o homem ser diferente de todas as outras criaturas que existem no Universo.
A miséria do homem, porém, é o amor que ele manifesta por si próprio e o ódio que tem pela sua realidade existencial e ontológica. O homem, grande pela racionalidade que possui, e miserável pelo seu amor próprio, busca artifícios para ludibriar a si mesmo. Por não querer ver a realidade, o homem inventa uma série de divertimentos para amenizar a ferida provocada pela sua frágil condição; o divertimento, na perspectiva pascalina, é a fuga de si mesmo, é como o rei que coloca o bobo da corte para fazer palhaçadas com o intuito de esquecer-se de si mesmo, porque se ele parasse para pensar a sua vida ele veria o quão miserável é, talvez até mesmo mais miserável que os seus próprios súditos.
1-O PARADOXO HUMANO: O HOMEM COMO SER GRANDE E MISERÁVEL
- A grandeza do homem
Neste primeiro tópico do nosso trabalho, vamos começar a expor alguns pontos da Antropologia de Pascal, mas cabe ressaltarmos que o mesmo, primeiramente, se dedicava aos estudos matemáticos, tinha uma capacidade de raciocínio invejável, escreveu o Tratado das Crônicas quando tinha apenas 16 anos de idade, e posteriormente inventou a máquina aritmética, mas não é nosso objetivo apresentar aqui uma biografia do filósofo em questão. Queremos, neste primeiro momento, mostrar que Pascal passa a pensar a condição do homem após a sua conversão[1]. Ele se situa no contexto da idade cartesiana e início da idade moderna, vem após René Descartes e afirma que o homem é miséria e grandeza ao mesmo tempo.
Neste primeiro ponto da nossa análise a respeito da concepção pascalina de homem, colocamos a questão da dualidade ontológica ou o paradoxo humano, como apresentado por alguns estudiosos. Blaise Pascal considera o homem como grandeza e miséria ao mesmo tempo; a grandeza do homem, reside, sobretudo, em sua razão, na sua capacidade de conhecer as coisas, o Universo, tudo aquilo que o envolve, o conhecimento de si próprio, característica esta que faz, de fato, o homem ser homem, ser grande em relação às outras coisas que existem no Universo.
O homem é colocado diante do Universo e a partir dessa colocação afirma-se que ele é um nada diante do tudo e tudo diante do nada. Essa posição na qual o homem é colocado é caracterizado por Pascal como dois abismos, a saber: o nada e o infinito. Também encontramos a afirmação de que o homem é um caniço pensante, ou seja, um bambú, o mais frágil de todos, mas o fator que o diferencia é a sua capacidade racional, a sua capacidade de pensar. É interessante notarmos que nesta característica do homem como caniço pensante, ele revela os dois aspectos do homem, revela a sua grandeza e a sua miséria.
Afinal que é o homem dentro da natureza? Nada em relação ao infinito; tudo em relação ao nada; um ponto intermediário entre tudo e nada. Infinitamente incapaz de compreender os extremos, tanto o fim das coisas quanto seu princípio permanecem ocultos num segredo impenetrável, e é-lhe igualmente impossível ver o nada de onde saiu e o infinito que o envolve (Frag. 72)
Giovanni Reale coloca em sua obra que, tanto Blaise Pascal quanto Montaigne, consideram que o homem é algo que a filosofia deve ocupar-se a refletir, ele ainda coloca que no estudo do homem, a primeira coisa que fica evidente é que o mesmo é um ser de razão, é um ser pensante, como refletimos até agora. Quando colocamos a questão da miséria do homem, não queremos refletir apenas na perspectiva da sua corrupta condição, como veremos mais adiante, mas também no ponto de vista físico.
Pascal vê o homem como um caniço pensante, um caniço mais frágil de todos. Ele afirma que o homem é tão frágil que basta um vapor para destruí-lo, basta uma gota d´água para matá-lo. Esse aspecto revela também a frágil condição física do ser humano; porém, ainda que fosse destruído, ele não perderia a sua grandeza por ser um ser racional, um ser que se reconhece existente. Mesmo sendo um animal, o mais frágil da natureza, o homem não perde a sua característica de ser o maior na ordem das outras criaturas.
O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmaga-lo: um vapor, uma gota de água basta para mata-lo. Mas, mesmo que o Universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que o Universo tem sobre ele; o Universo desconhece tudo isso. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. Daí que é preciso nos elevarmos, e não do espaço e da duração, que não podemos preencher. Trabalhemos, pois, para bem pensar; eis o princípio da moral. Não é no espaço que devo buscar minha dignidade, mas na ordenação de meu pensamento. Não terei mais, possuindo terras; pelo espaço, o Universo me abarca e traga como um ponto; pelo pensamento, eu o abarco. (Frag.70)
1.2 – A miséria do homem
Até agora vimos que toda a grandeza e dignidade do homem, segundo Blaise Pascal, reside na sua capacidade de pensar, de raciocinar. Agora queremos apresentar alguns aspectos que levam Pascal afirmar que o homem é, também, miséria. A partir desse ponto em que trataremos a questão da miséria do homem, surgirá outro aspecto de suma importância para Pascal que é a questão do divertimento, como veremos adiante.
No fragmento 100 da obra Pensamentos, a miséria humana é caracterizada como amor próprio, amor a si mesmo; “A natureza do amor-próprio e desse eu humano é não amar senão a si e não considerar senão a si; quer ser grande e acha-se pequeno, quer ser feliz e acha-se miserável, quer ser perfeito e acha-se cheio de imperfeições, quer ser objeto do amor e da estima dos homens, e vê que seus defeitos só merecem deles aversão e desprezo” (Frag. 100). Pascal considera que o homem é ser grande quando, pela razão que possui, reconhece-se miserável, mas há aqueles que, mergulhados no amor próprio, preferem não ver as suas mazelas. O amor próprio impede o homem de reconhecer as suas misérias
O homem, portanto, é uma criatura constitutivamente miserável. Ele ‘não sabe em que lugar se colocar’. Ele se desviou visivelmente, pois, caiu de seu verdadeiro lugar sem poder afora reencontrá-lo. Procura-o por toda parte, com inquietude e sem sucesso, entre trevas impenetráveis. (REALE, 1997, p.180)
Diante desse aspecto Blaise Pascal nos dá um precioso exemplo sobre o Sacramento da Reconciliação; o Sacramento da Reconciliação é um modo que temos de reconhecer as nossas falhas, de olhar para dentro de nós mesmos e ver o quão miserável somos. Ninguém é obrigado a tal, e nele existe a possibilidade de expor as nossas mazelas sem que ninguém mais saiba. Tudo aquilo que expomos dentro de um confessionário se torna um segredo inviolável. Para Pascal, não se pode pensar em algo mais caritativo e suave do que o Sacramento da Reconciliação. Porém, por causa do amor próprio, muitos não o aceitam porque é uma forma de ver as suas mazelas. Prefere-se viver na ilusão do que reconhecer as faltas. Para Pascal, a pior coisa que existe no homem é a alienação, é não querer reconhecer que é miserável. É por isso que o sacramento da reconciliação provoca horror, porque é através deste sacramento que vemos que a nossa condição é a pior que existe.
- O DIVERTIMENTO COMO FUGA DA REALIDADE
Para não encarar as misérias, o homem cria divertimentos; “a diversão di-verte, ou seja, desvia do reto caminho[2]”. Os divertimentos, na perspectiva pascalina, é a fuga de si mesmo. O rei coloca o bobo da corte para fazer palhaçadas o tempo todo para esquecer-se dele mesmo, porque se parasse para pensar a sua própria vida ele veria o quão miserável é, talvez mais miserável que os súditos que varrem o chão de seu palácio: “o rei está rodeado de pessoas que só pensam em divertir o rei, e em impedi-lo de pensar em si mesmo. Porque se pensa em si mesmo é infeliz, por mais rei que seja”. (MAURIAC, 1972, p. 70)
O divertimento, neste sentido, é considerado como algo bastante negativo, porque é uma forma do homem fugir da sua condição. É bom destacarmos que não é todo divertimento que é fuga de si mesmo, mas para Pascal o divertimento toma esse viés negativo justamente quando o mesmo é um artifício usado para fugir da sua própria condição miserável.
O divertimento, o divertissement, é fuga diante da visão lúcida e consciente da miséria humana, é aturdimento que nos faz divagar e chegar inadvertidamente à morte. O divertimento é fuga de nós mesmos, de nossa miséria, mas é ele próprio a maior de nossas misérias, porque nos proíbe pensar a nós mesmos; “sem ele, desembocaríamos na náusea, e esta nos impeliria a procurar um meio mais seguro para dela sair; ao contrário, o divertimento nos faz chegar à morte se que disso nos apercebamos. (REALE, 1997, p. 181)
Blaise Pascal, no fragmento 139 de sua obra Pensamentos, faz uma reflexão bastante relevante, nos mostra que não é o ter que faz o homem ser feliz; também não é o poder e a glória que garantem a estabilidade para a vida do homem:
O homem que tem suficiente bens para viver, se soubesse ficar em casa com prazer, não sairia dela para ir ao mar ou ao cerco de uma praça. Não se pagaria tão caro por um posto no exército se não se achasse insuportável não sair da cidade; e só se procuram as conversas e os passatempos dos jogos porque não se sabe ficar em casa com prazer. (Frag. 139)
Pascal nos mostra que o homem tem vários bens, mas ele concentra a sua felicidade “em não ficar quieto”, ele não acha prazer naquilo que possui, sendo necessário buscar sempre mais. Em suma, é nisto que consiste o divertimento: em fugir de si mesmo, em lutar incessantemente para enganar-se a si mesmo e fazer de conta que está tudo bem. O homem corre de si mesmo, mas no final das contas vê que a sua corrida foi vã; “as misérias da vida humana criaram tudo isso: como eles viram isso, escolheram o divertimento”. (Pensamentos – frag. 166)
CONCLUSÃO
Com este trabalho objetivamos apresentar alguns pontos fundamentais da antropologia pascalina. Bem sabemos que a sua antropologia não se resume apenas na questão da dualidade ontológica do homem e na questão do divertimento, mas há outros aspectos, como por exemplo, o espírito de finura e o de geometria, mas estes não foram objetos de pesquisa em nosso estudo.
A questão da grandeza e da miséria do homem é uma reflexão de suma importância no pensamento pascalino, como vimos durante a nossa pesquisa; o homem é ser grande e pequeno ao mesmo tempo, é grande por causa da capacidade de razão que possui, característica esta que o faz ser diferente de todos os demais seres que existem no universo. O homem existe e tem plena consciência disso. A miséria do homem consiste em seu amor próprio, nunca quer encarar a sua miséria, a sua pequenez. Diante desse fato, surge a questão do divertimento que é um artifício para fugir de si mesmo, para não reconhecer-se miserável.
Colocamos, também, a questão do silêncio, tão difícil para o homem moderno. Vivemos na era do barulho, muitas pessoas não sabem mais o que é silêncio. A prática do silêncio parece ser algo doloroso, até mesmo quando vão à Igreja é difícil fazer um momento de silêncio. Neste sentido, pedimos licença para citar aqui as palavras do Cardeal Robert Sarah[3] numa entrevista a um jornal francês chamado “La Nef”, ele nos diz que é preciso reconhecer o valor do silêncio, sobretudo nas celebrações litúrgicas, o silêncio nos conduz a Deus; e ainda continua dizendo que “Deus é silêncio e o demônio é barulho. O barulho se tornou como uma droga da qual os nossos contemporâneos são dependentes. Com sua festiva aparência, o barulho é um redemoinho que impede cada pessoa de encarar a si mesma e enfrentar o vazio interior”.
A antropologia pascalina é algo para ser levado para a nossa vida. Devemos reconhecer sempre que, pela nossa razão, somos a criatura mais importante do universo; por outro lado, também somos a criatura mais miserável por causa das nossas corruptelas, nossas falhas, pelo orgulho, pelo desejo de glória e poder, etc. O homem é grande quando, também, reconhece a sua pequenez e não busca artifícios para fugir de si mesmo, “conheçamos, pois, nossas forças; somos algo e não tudo”. (Frag. 72)
Referências Bibliográficas
PASCAL, Blaise. Pensamentos. 2. ed. Tradução Sérgio Melliet. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção “Os Pensadores”)
______ A arte de persuadir – precedida de A arte da Conferência de Montaigne. Prefácio e notas Marc Fumaroli; tradução Rosemary Costhek Abílio, Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004
MAURIAC, François. O pensamento vivo de Pascal. Tradução Sérgio Milliet. São Paulo: Livraria Martins, 1972
LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Antropologia Filosófica I. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1991.
REALE, Giovanni. História da Filosofia – de Spinoza a Kant. Vol. IV. Tradução Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2005.
[1]A conversão de Blaise Pascal pode ser definida em dois momentos como estabelecido por diversos estudiosos; o primeiro momento de sua conversão foi quando ele teve o seu primeiro contato com as obras do abade Saint Cyran e o segundo momento foi quando uma forte cefaleia o atingiu, neste contexto o seu pai já havia falecido e a sua irmã ingressara no Port-Royal para seguir a vida religiosa; foi neste momento que ele deixou toda atividade mundana após sentir uma aprofunda iluminação religiosa que o levou, também, a escrever o “famoso memorial”, conforme nos diz vários estudiosos.
[2] REALE, 1997, p. 181
[3] Cardeal da Igreja Católica e Prefeito da Congregação para o Culto Divino e disciplina dos Sacramentos no Vaticano.