Bruno Diego Garcia[1]
Resumo: Descartes é um nome de grande relevância para a filosofia moderna, principalmente pela preocupação com a edificação de um método científico capaz de oferecer clareza e distinção para os processos de conhecimento. Seu método postula fundamentos para a razão humana que permitem desenvolver uma filosofia capaz de atingir um conhecimento de mundo mais eficiente. O presente artigo visa apresentar os significados e a contribuição do método cartesiano para a fundamentação de um conhecimento seguro, mediante o uso da razão. Para atingir tal escopo, propomos investigar como o método cartesiano foi desenvolvido, analisando o valor da dúvida, a significativa importância que ganhou no pensamento filosófico da modernidade e suas principais consequências.
Palavras-chave: Descartes, Dúvida, Método Cartesiano, Filosofia Moderna.
Introdução
A filosofia, enquanto ciência que estabelece amizade entre o homem e o saber, sempre colocou em relevo a preocupação com as possibilidades do conhecimento humano como um marco fundante e estruturante. Podemos identificar que, desde os primeiros pensadores gregos, os dilemas do conhecimento foram sendo colocados em questão. Igualmente, a modernidade não se isenta desta preocupação, mas, pelo contrário, é considerada um período profundamente marcado pela valorização da razão humana. Não foram poucos aqueles que se dedicaram a estabelecer parâmetros que assegurassem os processos cognitivos, estabelecendo, inclusive, uma nova compreensão de mundo na qual o sujeito, por sua racionalidade, torna-se capaz de ordenar o mundo e manipulá-lo para seu próprio benefício.
Neste sentido, a obra de René Descartes (1596-1650) é uma passagem obrigatória para que possamos entender como se dá esta nova visão de mundo e as profundas transformações oriundas dos avanços da ciência a partir da modernidade. Faz-se necessário destacar que essas transformações têm seus fundamentos lançados já na revolução copernicana[2] que, ao propor uma nova organização dos corpos celestes, proporcionou um processo gradual de mudanças que desembocará numa prática científica regulada por métodos e instrumentos cada vez mais exatos e precisos. “O resultado do processo cultural chamado revolução científica é uma nova imagem do mundo, que entre outras coisas levanta questões religiosas e antropológicas importantes; é ao mesmo tempo a proposta de uma nova imagem de ciência: autônoma, pública, controlável e progressiva” (REALE, 2017, p.147).
No entanto, mudanças tão significativas não se solidificam de uma hora para outra, pelo contrário, elas exigem tempo e amadurecimento. É bastante claro que a revolução iniciada por Copérnico, aos poucos, foi tornando-se capaz de converter a já consolidada visão metafísica de mundo[3], gerando uma afirmação da autoridade da ciência em detrimento da autoridade eclesial, vigorante até antão. O progressivo interesse na razão é uma consequência direta desta revolução que engloba o saber filosófico independentemente da teologia, hiper estimada na idade média. O que compôs um cenário em que se evidenciam as possibilidades do conhecimento humano, a forma como se pode alcançar tais conhecimentos e também o que se deve fazer para que este não seja vão, impreciso ou incerto. Em meio a este contexto de intenso movimento intelectual de afirmação de um novo modo de pensar encontra-se a filosofia cartesiana.
A trajetória de René Descartes
De família nobre, o francês René Descartes contou com uma sólida formação não só por ter sido educado na La Flèche, uma das principais escolas da sua época, mas, principalmente, por seu gosto e empenho intelectual. Apesar de profundamente dedicado à matemática, às leituras de grandes filósofos e à teologia, Descartes não se contentou com o que lhe foi apresentado pela ratio studiorum[4], pois, ele identificara haver uma dissonância entre o que lhe era ensinado e a efervescência científico-filosófica de seu contexto. Dissonância esta que lhe gerou uma grande confusão, ao ponto de fazê-lo cair em uma profunda crise. Em sua obra Discurso do Método, publicada originalmente em 1637, ele relata algumas das incertezas que o invadiram nesse período. Diz ele: “Encontrei-me tão perdido entre tantas dúvidas e erros que me parecia que, ao procurar me instruir, não alcançara outro proveito que o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância” (DESCARTES, 1996, p.8).
As inquietações de Descartes partem da dificuldade de se encontrar segurança nos moldes de fazer ciência, tanto no âmbito das exatas, como em relação à especulação filosófica e também no que se refere às demais ciências. Para ele, toda dedicação empregada nos estudos não havia sido suficiente para encontrar uma base sob a qual pudesse edificar, como que em pilares concretos, o conhecimento. Mas, o fato de sentir-se perdido, envolto na própria ignorância, não foi uma barreira intransponível. Sua crise tornou-se uma ponte pela qual pôde alcançar novas perspectivas e estabelecer novos horizontes para nortear sua empreitada filosófico-científica.
Descartes compreendia que era preciso estabelecer parâmetros que servissem de garantia para os esforços acadêmicos e tal parâmetro não poderia ter outra fonte, senão a própria razão:
E assim pensei que as ciências dos livros, pelo menos aquelas cujas razões são apenas prováveis, e que não têm nenhuma demonstração, sendo compostas e aumentadas pouco a pouco pelas opiniões de muitas pessoas diferentes, não se aproximam tanto da verdade quanto os simples raciocínios que um homem de bom senso pode fazer naturalmente sobre as coisas que se lhe apresentam. […] é quase impossível que nossos juízos sejam tão puros e tão sólidos como teriam sido se tivéssemos tido inteiro uso de nossa razão desde a hora de nosso nascimento, e se tivéssemos sido conduzidos sempre por ela (DESCARTES. 1996, p. 17).
Não podemos deixar de ressaltar a importante contribuição de algumas viagens que o francês realizou pela Europa para fortalecer sua crença na racionalidade. Exemplo desta peregrinação pelo velho continente também pode ser encontrado no Discurso do Método, no qual o autor descreve sua passagem pela Alemanha: “Ficava o dia inteiro sozinho fechado num quarto aquecido, onde tinha bastante tempo disponível para entreter-me com meus pensamentos” (DESCARTES, 1996, p.15). Também de grande importância foi sua estadia na Holanda[5], local em que se estabeleceu por alguns anos e produziu algumas de suas obras, como, por exemplo, Os Princípios de Filosofia e As Paixões da Alma, última escrita em Amsterdã.
De fato, o percurso trilhado por René Descartes é marcado pelo desencantamento, pois, aqueles conhecimentos que lhe eram apresentados como bastante sólidos foram, aos poucos, se revelando carentes e deficitários. Seu período de crise evidenciou a necessidade de se construir uma filosofia que justificasse a confiança na razão. Ele entendia que a busca pela verdade se impõe como um dever inerente à própria realidade do homem, o qual possui por natureza uma inteligência ansiosa pelo que é verdadeiro, justo e bom. Seguindo essa intuição, Descartes admite que os erros são frutos de mal uso da faculdade intelectiva presente em nós, sendo estes um sinal de ignorância, como explica Miguel Spinelli (2013, p.261): “Nada, portanto, há em nós que nos faça errar ou que nos induza naturalmente ao erro. Erramos na tentativa de acetar, e isto denuncia que os erros não são rigorosamente erros, mas ignorância”. Assim, se o homem procura naturalmente o conhecimento do que é verdadeiro, e se o erro é o resultado do mal uso da razão, é fundamental assumir uma postura cautelosa em relação aos conteúdos que nos são dados antes de, precipitadamente, assumi-los como verdadeiros ou negá-los.
Também merece relevo o fato de que Descartes não fazia separação entre filosofia e ciência, entendendo que os meios a serem utilizados para uma ou outra deviam ser precisos. Isso nos permite afirmar que seu desejo não era pôr em xeque este ou aquele saber, mas, delimitar quais os meios que proporcionam fundamentos sólidos para não incorrer em equívocos. Era preciso clarificar como se atinge, com distinção precisa e sem dogmatismos ingênuos, os conhecimentos das realidades, sejam elas quais forem. Mais do que isso, era preciso duvidar para ir às raízes do saber. A dúvida permitiria dar à sua prática filosófica a preservação do princípio de universalidade em busca da verdade e do conhecimento autêntico, estabelecendo por meio dela “o verdadeiro método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que o espírito seria capaz” (DESCARTES, 1996, p.21).
Dúvida: da crise à utilização metodológica
A dúvida apresentar-se-á a Descartes como uma porta de saída para o êxodo desta crise quanto à carência de métodos. Para ele, duvidar era o primeiro e derradeiro passo em direção a um saber puro e límpido, pois, a dúvida não é, de modo algum, negativa ou negacionista. O apontamento cartesiano para a dúvida não se dirige à dúvida cética, mas sim ao uso da dúvida de forma voluntária, metódica, lógica e hiperbólica. Ele cultiva a dúvida de modo que, fazendo uso dela, se pode refutar o ceticismo sem que seja necessário atacá-lo. “Ele se empenha, isto sim, em edificar o saber, não em negá-lo; afinal, como ele admite, conhecer é perfeição maior que duvidar”. (SPINELLI, 2013, p.265)
Assim, a função da dúvida é, sobretudo, positiva e racional, de modo que colocar em questão até mesmo os conhecimentos que podem ser considerados, em primeiro momento, como básicos e óbvios é o único meio de comprovar se de fato o são.
Adianto as razões pelas quais podemos duvidar geralmente de todas as coisas, e particularmente das coisas materiais, pelo menos enquanto não tivermos outros fundamentos nas ciências além dos que tivemos até o presente. Ora, se bem que a utilidade de uma dúvida tão geral não se revele desde o início, ela é, todavia, nisso muito grande, porque nos liberta de toda sorte de prejuízos e nos prepara um caminho muito fácil para acostumar nosso espírito a desligar-se dos sentidos (DESCARTES, 1979, p. 79).
Como se vê, a forma como Descartes emprega a dúvida não é uma mera negação cética da possibilidade de conhecimento, mas, ao invés, é uma passagem obrigatória que conduz à verdade. Ou seja, a utilização metódica da dúvida é uma passagem, que mesmo sendo obrigatória, é apenas provisória. Trata-se de olhar a dúvida como um fruto da decisão de colocar em questão o conhecimento. Nada possui uma certeza inquestionável, pois, todas as coisas as quais nos são apresentadas e podemos ter algum conhecimento são sempre passíveis de dúvida que, por sua vez, deve ser generalizada e levada ao seu extremo.
Para justificar que a dúvida é fundamentalmente necessária para um processo de conhecimento seguro, Descartes apresenta, na obra Meditações, quatro argumentos que ilustram as etapas da dúvida, a saber: o argumento do erro dos sentidos, do sonho, do Deus enganador e do gênio maligno. Inicialmente, ele indica que se os sentidos, por vezes, trazerem alguns conhecimentos destorcidos ou enganosos, o que é um empecilho para fornecer ao homem relatos verídicos e precisos, sobre o mundo. Essa ideia pode ser levada para a compreensão do segundo argumento, uma vez que, se o conhecimento alcançado pelos sentidos não pode ser caracterizado com precisão, também não se pode diferenciar o estado de vigília e o de sono, tornando-se impossível qualquer saber claro sobre o mundo.
Já o terceiro argumento amplia a dúvida ao valor objetivo da verdade das ciências. Ele apresenta a dúvida sob o prisma metafísico, propondo a pergunta se o Deus criador é também o postulador das crenças sobre o mundo, o que deixaria o conhecimento a mercê de engano. Por fim, semelhante a este, o último argumento desloca a dúvida metafísica para o âmbito psicológico, levando a questão para a interioridade do homem, perguntando-se: Será que não existe em nós um gênio maligno que constantemente nos está a enganar?
Assim, ao estabelecer a dúvida metodológica como ponto de partida para a produção intelectual, a proposta cartesiana comprova que as inquietações são um terreno fecundo para o florescer da razão. Este terreno, no entanto, deve ser enriquecido com a evidência, a análise, a ordenação e a enumeração, como apontam as regras de seu método, que mesmo sendo simples e fáceis podem produzir difíceis demonstrações. Portanto, a dúvida conclama a importância da análise como premissa essencial para o conhecimento, como se vê no método proposto por Descartes.
As características e contribuições do método cartesiano
Pretendendo uma forma de imunidade contra os dogmatismos, as regras que encontramos em seu método postulam fundamentos para a razão humana que permitem desenvolver uma filosofia fazendo uso da dúvida como motor para erguer um sistema especulativo e qualitativo capaz de conhecer o mundo de forma mais eficiente. Descartes quer oferecer regras assertivas, de modo que, ao segui-las com precisão, tornar-se-ia quase impossível tomar como verdadeiro algo que seja falso. As quatro regras do método cartesiano (DESCARTES, 1996, p.23) comprovam que não há nada de tão distante que não se possa alcançar, como também não há algo tão oculto que se não possa descobrir. O professor Flávio Williges oferecer uma chave de leitura para bem compreendermos como o método cartesiano torna-se eficaz para fundar as possibilidades do conhecimento:
O método de análise “prepara” a descoberta das verdades através de mecanismos como a exposição gradual, a introdução de informações que permitirão realizar inferências que conduzirão ao descobrimento de novas verdades e a recursividade ou retomada dos resultados obtidos antes de ingressar em cada novo estágio do percurso investigativo (WILLIGES, 2007, p.107).
Compreende-se então que, como primeiro passo para se atingir a segurança gnosiológica, deve-se assumir a dúvida em relação a quaisquer certezas, pois, como aponta a primeira regra do método, não é possível que nenhuma coisa seja aceita como verdadeira sem que se possa reconhecê-la como tal. Essa premissa assegura o rigor na pesquisa, evitando precipitações de juízos, além de proporcionar que as formas de conhecimento sejam colocadas à prova. “Mais que uma regra este é o princípio fundamental, justamente porque tudo deve convergir para a clareza e a distinção, na qual justamente se soluciona a evidência” (REALE, 2017, p.285).
Nesse sentido, o segundo passo é dispor as dificuldades em instâncias menores, para que, divididas, elas possam ser examinadas em cada um de seus pontos de incerteza e, assim, mais facilmente serem colocadas às claras para que sejam solucionados os possíveis pontos de tensão. Este é o princípio pelo qual se colocam em voga todas as nuances e facetas possíveis do objeto de análise, ao desarticular sua complexidade em partículas mais simples. Por esta regras as generalizações são exterminadas, uma vez que as partes simples se tornam tão claras e evidentes que não podem ser outra coisa senão o que são em detrimento de quaisquer pretensões presunçosas.
Na sequência, a terceira regra do método convida-nos a ordenar os pensamentos de forma escalonada, segundo a ordem de dificuldade. Partindo das questões mais rasas e fáceis é possível, progressivamente, atingir as mais complexas e exigentes. Por isso da análise se segue à síntese pela qual se vai recompondo a complexidade, criando uma cadeia lógica de raciocínios sobre o objeto de estudo, já desmistificado. Por fim, Descartes aponta para a necessidade de se fazer enumerações e revisões completas e abrangentes. “Enumeração, portanto, e revisão: a primeira controla a completude da análise; a segunda, a retidão da síntese” (REALE, 2017, p. 287). Este quarto princípio dá segurança à pesquisa, pois, confirma que todos os pontos desejados foram comtemplados e evita, ao máximo, deixar algo sem a devida consideração.
As regras que o método nos apresenta, embora perfeitamente aplicáveis para o saber geométrico, podem ser generalizadas, servindo como base para qualquer conhecimento. Nestes quatro passos Descartes procura estabelecer como é possível atingir um conhecimento independentemente de condições materiais e psicológicas, as quais poderiam exercer influência negativa no pensamento, como se comprovou nos argumentos das quarto etapas da dúvida. Seu método fortalece o encontro com a verdade partindo da evidência e não da decorrência de condições subjetivas. Para Descartes a subjetividade, enquanto contributo ao conhecimento, é vista como lugar e fundamento do conhecimento e não sob o prisma histórico psicológico.
Tal rigor expresso no método cartesiano, mais que confirmar as preocupações do pensador francês, são a expressão de seu comprometimento com a prática científica e, sobretudo, sua grande confiança na razão, como ele mesmo afirmou: “Mas o que mais me contentava nesse método era que por meio dele tinha a certeza de usar em tudo minha razão, se não perfeitamente, pelo menos da melhor forma em meu poder” (DESCARTES. 1996, p. 26). O seu empenho metodológico revelou-se de forma tão consolidada e firme que uma investigação filosófico-científica conduzida por ele dificilmente poderia ser abalada por críticas e hipóteses que não alçam mão de fundamentos semelhantes.
Não podemos deixar de mencionar que o método cartesiano traz, como consequência direta da elevação da dúvida ao seu máximo, a afirmação do cogito. Quando levada ao extremo, a dúvida, parte essencial do método Descartes, aponta para si mesma como uma certeza indubitável, isto é, comprova que se podemos duvidar de tudo não podemos duvidar que duvidamos. O encadeamento lógico, nestes termos expresso, permite afirmar que se duvido, penso; o que leva ao entendimento do pensamento como evidencia do existir, pois, quem duvida, pensa e só quem pensa pode ter certeza de sua existência. Deste modo, se duvido penso e se penso existo: cogito, ergo sum.
Para além de uma característica resultante do método, o cogito cartesiano apresentar-se-á como única certeza da qual não podem repousar quaisquer tipos de questionamentos, ao ponto de afirmar-se como centro orbital da compreensão cartesiana do ser humano.
Por que o cogito vem a ser uma retomada extrema do conhece-te a ti mesmo, e com um propósito bem definido: recuperar o indivíduo humano da tutela do divino, desconcentrá-lo das expectativas da transcendência em favor do presente e de si mesmo, e do gerenciamento de sua liberdade e de seu destino (SPINELLI, 2013, p.276).
É a partir desta certeza que Descartes consolida sua afirmação da razão humana, pois, o homem enquanto res cogitans é pensamento e tem consciência de si pela subjetividade de seu espírito; mas também é exterioridade no mundo, res extensa, através de seu corpo que, em relação ao espírito, funciona mecanicamente[6]. O que nos permite afirmar que o homem, segundo a concepção cartesiana, é essencialmente pensamento, ainda que sejam consideradas duas realidades componentes de seu ser. Afirma-se, assim, a sua preocupação com a valorização da razão, já que o homem, irrenunciavelmente, é uma realidade pensante, uma consciência racional, pois, a razão possibilita o domínio da natureza e a atividade cognitiva, como atividade propriamente humana. “Compreendem-se muito melhor as razões que provam que a nossa razão é de uma natureza inteiramente independente do corpo” (DESCARTES, 1996, p.66).
Assim, o cogito dá a Descartes a possibilidade de fundamentar o puro pensamento, partindo-se da pureza da razão para atingir, consequentemente, uma fundamentação do conhecimento humano. Também a noção de sujeito surge do cogito, pois, o pensamento revela o homem e é o traço fundamental da sua existência, no qual se amparam todas as aquisições intelectivas. Ou seja, para Descartes, o homem é, sobretudo, um ser pensante, evidenciando-se sua racionalidade em detrimento da dimensão corporal. O que nos permite caracterizar essa afirmação cartesiana presente na principal linha de pensamento fundante da Modernidade: a autonomia do pensamento a pureza da razão.
Considerações finais
O itinerário cartesiano é inspirador não só por sua dedicação e seu empenho em estabelecer um método forte o suficiente para assegurar os processos do conhecimento. Seu compromisso de universalidade, expresso na simplicidade das regras propostas, ultrapassa os limiares da filosofia e atingem com maestria outras áreas do saber. Nesse sentido, podemos perceber que o filósofo francês deixou um legado não só para a modernidade como para toda a ciência e para a afirmação da existência partindo do ato de duvidar que, de modo algum, é uma barreira para o conhecimento.
A dúvida conduziu Descartes à compreensão do pensamento como indício preciso da existência. Por sua obra é possível inferir que a razão empregada na reflexão é o caminho próprio para se chegar ao conhecimento, sem a necessidade de amparar-se em muletas dogmáticas. É notório perceber ainda que suas preocupações o levaram à dúvida e, partindo da dúvida, permitiram que ele estabelecesse um método capaz de assegurar o rigor metodológico e a confiança na racionalidade de suas pesquisas. Sua produção dá bastante ênfase ao homem como aquele que pode, de maneira amadurecida e livre de quaisquer tutelas dogmáticas, cultivar sua razão para além de convicções fracas que são mancas e requerem sempre apoios externos.
O movimento proposto por Descartes é um movimento de afirmação do ser racional do homem que, em potência, supera as precariedades vigentes até então e trazem em relevo a utilização da dúvida como ponto de apoio em vez de simples negação ou crítica. Portanto, podemos intuir, em tom de conclusão, que a preocupação cartesiana com o conhecimento acabou por tornar-se o seu principal contributo à filosofia moderna e às formas de fazer ciência.
Referências
DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
______. Meditações. In. Os pensadores: DESCARTES. Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 7. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
REALE, Giovanni: ANTISERI, Dario. Filosofia: Idade Moderna, v. 2. Tradução José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2017.
SPINELLI, Miguel. Bacon, Galileu e Descartes: o renascimento da filosofia grega. São Paulo: Edições Loyola, 2013.
WILLIGES, Flávio. A Função das Dúvidas Céticas nas Meditações de Descartes. Doispontos, Curitiba; São Carlos: v. 4, n. 2, p. 103-118, out. 2007.
[1] Bacharelando em Filosofia pela FDLM.
[2] A teoria copernicana não é revolucionária apenas por colocar o sol no centro do universo, quebrando os paradigmas geocêntricos, mas, sua revolução consiste, principalmente, em oferecer os germes para a progressiva e radical mudança na forma de se fazer uma ciência autônoma, comprometida exclusivamente com o saber. (REALE, 2017, p.174-177).
[3] Esta nova visão da ciência busca torná-la cada vez mais autônoma de quaisquer tutelas: “A Ciência Ativa moderna rompe com a separação antiga entre a ciência (episteme), o saber teórico, e a técnica (téchne), o saber aplicado, integrado a ciência e a técnica e fazendo com que problemas práticos no campo da técnica levem a desenvolvimentos científicos, bem como com que hipóteses teóricas sejam testadas na prática, a partir de sua aplicação técnica” (MARCONDES, 2002, p. 151).
[4] A ratio studiorum do tempo de Descartes compreendia um programa de ensino no qual três anos eram dedicados aos estudos de matemática e à teologia, além de seis anos de estudos humanísticos, que se englobavam obras e correntes dos principais pensadores da filosofia (REALE, 2017, p. 279).
[5] É na Holanda que Descartes se apaixona por Helène Jans e tem sua filha Francine, que morreu muito cedo, aos cinco anos de idade. Parda que marcou profundamente a vida e o pensamento de Descartes, como, por exemplo, as reflexões sobre a fragilidade da natureza humana (REALE, 2017, p. 279).
[6] Descartes tem uma visão mecanicista do corpo, admitindo haver na dimensão somática um automatismo funcional, ou seja, o corpo tem seu funcionamento estabelecido por ele próprio, à sua maneira. Assim, órgãos e funções vitais são explicáveis sob parâmetros mecânico-matemáticos, pois, são entendidos apenas como componentes meramente integrantes de uma máquina que tem valor minimizado em relação ao pensamento. “Compreendem-se muito melhor as razões que provam que a nossa razão é de uma natureza inteiramente independente do corpo e que, por conseguinte, não está sujeita a morrer com ele” (DESCARTES, 1996, p.66).