Carlos Henrique e Karine de Souza[1]
Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar uma análise da obra Abaporu, de Tarsila do Amaral, compreendendo-a dentro do movimento do qual pertence, que é o Modernismo. Por isso traz uma descrição da trajetória histórica da autora durante sua passagem pela Europa, ambiente em que teve o primeiro contato com a arte moderna. Conta também com uma breve abordagem da história do movimento no Brasil, enfatizando a contribuição da artista para o mesmo. É dado, aqui neste artigo, uma atenção especial à obra, Abaporu, na apresentação de suas características estéticas, situando sua originalidade e importância para a Arte Moderna Brasileira.
Palavras-Chave: Modernismo, Tarsila, Abaporu, Estética.
1 Introdução
Tarsila do Amaral, começa seus estudos artísticos em São Paulo, no entanto, vai para Paris e ingressa na academia Julian. Ao retornar a São Paulo em 1922, aproxima-se dos modernistas da época, a saber: Oswaldo de Andrade, Anita Malfatti e Menotti Del Pichia. Regressando ao Brasil, começa suas viagens pelas cidades históricas mineiras, embora sua primeira exposição fosse em Paris. Em 1929, Tarsila expõe sua arte no Rio de janeiro e São Paulo, e a partir desta exposição começa sua notoriedade ao público brasileiro. E uma de suas obras responsáveis por lhe proporcionar grande reconhecimento é sem dúvidas o Abaporu.
Ela é uma arte um tanto quanto enigmática, e que toca aquele que a vê, por suas cores e desproporcionalidade. Esse trabalho, de Tarsila do Amaral, é considerado uma das obras mais importantes do Modernismo brasileiro, tornando-se ícone do mesmo. A pintura, parafraseando o filósofo Paul Ricoeur, dá o que pensar. A começar pelo nome tupi-guarani Abaporu cujo significado é “homem que come gente”, e que deu origem ao movimento antropofágico de Oswald de Andrade, marido de Tarsila.
E aquela coisa, com um enorme pé, cheio de dedos e unhas, apoiado na terra, rosado como um bebê, tendo ao lado um cacto verde-bandeira com três braços esticados para o céu, a segurar o sol em forma de flor, numa típica paisagem nordestina, acabou por se tornar um símbolo. Passou a representar a arte brasileira, que devorando as influências estrangeiras em nosso meio artístico tupiniquim, cospe uma outra arte, vomita uma arte terceira. Um Manifesto que só poderia ser antropófago (HOFMANN, 2010, p. 54).
Apropriando de tendências europeias, com assimilação do que vem de fora, e com junção dos recursos culturais-nacionais e naturais de nosso país, a autora pinta algo originalmente brasileiro. Tudo isso traduz numa dialética, resultando em algo inovador, e com muita liberdade na criação artística, que era defendida no movimento do qual pertence. O monstro devorador na verdade pensaria em não ser “um devorador de homens, só de ideias. E, semente e fruto ao mesmo tempo, o pensador-monstro percebeu que era muito maior que aquele limite retangular da janela pela qual via o mundo do lado de cá” (HOFMANN, 2010, p. 60).
Como modo de organização deste trabalho, no primeiro momento será feito uma descrição breve da obra, apresentando seus elementos físicos, a trajetória da autora, e o movimento no qual está inserida. Em um segundo momento, mais detalhadamente, será abordado a análise da pintura, trazendo uma leitura estética de suas principais características.
2 Abaporu e a trajetória da artista Tarsila do Amaral
A pintura “Abaporu” é representada por uma figura solitária, sentada numa planície verde, com pé enorme, o braço esquerdo dobrado num joelho, a mão sustentando o peso da minúscula cabeça, a boca e os olhos quase sumindo, a mão direita caída ao lado do grande pé. Ao fundo, o céu azul, o sol e cactos esverdeados. Pintada de óleo sobre tela, tendo oitenta e cinco centímetros de altura por setenta e três centímetros de largura.
A autora desta obra, Tarsila do Amaral, foi nascida e criada em uma fazenda de café em São Paulo, sua família era pertencente à elite cafeeira. Em sua adolescência estudou em Barcelona, em um colégio interno. E ao amadurecer, depois de se tornar mais velha, começou a ter aulas de desenho. Tudo isto contribuiu na sua decisão de ir para Europa aprender mais, aprofundar seus conhecimentos, adquirir experiência e desenvolver sua arte. Em 1920 vai para Paris, e tem contato, conhece, a arte moderna.
Neste país se encanta pelo modo de como a arte estava por toda a parte. A Europa nesse momento estava sendo palco das vanguardas artísticas que com intensidade envolviam as produções. Tarsila, no princípio, estranhou as novas tendências apresentadas por estes movimentos. Logo se rendeu, e encantou com a novidade. Teve como professor Léger, que estava trabalhando com a arte moderna em Paris. Aprendeu com o pintor muitas coisas, e assim como ele “guardou o segredo de construir trens e estradas de ferro, ainda que coloridos e infantis, longe dos tons metálicos das pesadas locomotivas de seu mestre” (HOFMANN, 2010, p. 24). Ao retornar para o Brasil acontecia a Semana de arte moderna, conhecida como a semana de 22.
Volta a Paris em 1923, período em que considera o mais importante de sua vida artística. Com a ajuda de grandes mestres, a artista pinta quadros paisagísticos com animais e figuras geométricas. “Tarsila pinta, mas parece desenhar os contornos de suas imagens, geométricas, pesadas e compactas, com rasgos de pensamento matemático, quase como um engenheiro que constrói uma casa. Construir, com linhas retas, curvas, sempre traçadas com cuidado e precisão” (HOFMANN, 2010, p. 23).
A autora por um longo período, retornava para o Brasil, mas logo voltava para Paris. Também em 1923 resolve organizar uma exposição no Brasil, na fase em se reconhecia como cubista, “Sérgio Milliet seria também retratado pela pintora […] Era um retrato muito azul, recortado como uma obra cubista, tracejado, dividido, essencialmente racional. O Retrato Azul ‘caracteriza o momento de transição entre o impressionismo que ela abandonara” (HOFMANN, 2010, p. 27). Abandonou-o para assumir o cubismo, que segundo ele, “teria uma importância decisiva em sua obra” (HOFMANN, 2010, p. 27).
Em 1926 teve sua primeira exposição individual em Paris, ambiente em que aprendeu tanto e foi um divisor de águas em sua carreira. Tudo isso possibilitou a criação de suas principais obras. Trazia para o Brasil essa bagagem, novas tendências, novas formas de criar, tudo que viu e aprendeu. Mas mesmo em chão europeu já sentia que precisava de retornar às suas origens. Pintar sua infância, seus sonhos, o que existia em sua terra natal merecia ser valorizado, os recursos, a cultura, os traços regionais, etc.
Sim, certamente Tarsila aprendeu tudo sobre ordem e equilíbrio, divisão do espaço e racionalidade, entretanto, não desejava passar para suas telas algo que não estava dentro dela, precisava também do sonho, das cores caipiras, da aventura de enxergar o mundo com olhos de criança. Precisava criar monstros também, e monstros não se originam na ordem, mas a pintora tinha percepção para encontrar o seu equilíbrio dentro de toda esta ordenação (HOFMANN, 2010, p. 24).
E o Abaporu, pintura célebre criada em 1928, bebe dessa fonte, dessas tendências modernas da Europa incorporadas por Tarsila. Mas ao contrário da autora, que outrora ficava no vai-e-vem, este, após causar grandes conversas, reboliços, vai embora e não volta.
Sua mãe fez uma exposição em Paris, na Galerie Percier, e ele estava lá, chamado de ‘Nu’, mas era mesmo um manso antropófago. Tal mãe, tal filho. Fez fama e, assim como a mãe, acabou saindo do Brasil muitos anos depois de todos aqueles movimentos ruidosos, mas, ao contrário dela, não voltou, indo morar em outras paragens” (HOFMANN, 2010, p. 60).
2.1 Modernismo no Brasil e a contribuição de Tarsila
O modernismo no Brasil foi um movimento de grande importância artística, literário e cultural. Outrossim, tal movimento tinha por objetivo romper com todo o tradicionalismo de como fazer arte que vigorava na época. Este movimento foi de grande valia para independência e valorização da cultura brasileira, que até então estava europeizada, sem uma identidade.
O mundo precisava de inovações, novos conceitos que reconfigurassem teorias vigentes, era preciso, pois, inovar, modernizar, modificar. Em 1922, no Brasil, na Semana de arte moderna, esta que foi uma manifestação artístico-cultural, artistas das elites paulista e carioca, reúnem-se com um propósito: ignorar os antigos ideais e renovar todas as formas de pensamento. Além disso, os artistas envolvidos na Semana, propunham uma nova visão de arte, a partir de uma estética inovadora inspirada nas vanguardas europeias.
A primeira fase do modernismo é a de ruptura com aquele modelo de arte advindo da Europa. Neste momento, o humor, uso coloquial, vanguardas, tudo é válido para criar uma literatura artística em sintonia com os novos tempos. Em seguida, veio a segunda fase que foi a de consolidação da arte, aqui, o regionalismo e o nacionalismo prevalecia; logo após veio a terceira fase, a da oposição dos artistas ao próprio movimento, não seguiam mais a regra ditadas pelo movimento, acredita-se que esta fase acontece pós-modernismo.
Era preciso mostrar ao povo o poder da recriação e dar lugar a um novo estilo, valorizando os elementos nacionais. Ademais, grandes artistas como Manuel Bandeira, Oswaldo de Andrade, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, entre outros, participavam ativamente do movimento. Com toda essa ânsia pela inovação, surge a partir daí o modernismo brasileiro. Contudo, a nova arte não foi bem aceita pela elite paulistana, influenciada pela estética europeia conservadora. Todavia, apesar das críticas, o modernismo brasileiro, teve o seu reconhecimento ao longo do tempo.
Primeiramente, para que a arte fosse realmente brasileira, os artistas optaram na simplificação do discurso, apropriando, dessa forma, do linguajar popular. Além disso, houve a valorização artística nacional, com uma exploração de elementos cotidianos. No seguinte trecho, nota-se essa preocupação pela busca de identidade:
A arte tão elaborada quanto radical do Modernismo deveria superar o elitismo e atingir a todos, pois somente assim cumpriria seu papel, considerado revolucionário por vezes. O movimento não buscava só atualizar a situação estética brasileira, ao se apropriar das conquistas formais das vanguardas europeias, mas ainda – como aquelas vanguardas, aliás – operar transformações culturais que tornassem a vida mais poética (VISO,2012, p.110).
Os modernistas brasileiros, no contato com as vanguardas europeias, continuaram pesquisando a arte de maneira muito íntima e ininterrupta. Haja vista, muitas viagens foram empreendidas no território brasileiro, a fim de despertar para aquilo que era tipicamente do Brasil. Nestas viagens estavam os grandes expoentes, a saber, Tarsila do Amaral e Oswaldo de Andrade, nota-se no seguinte trecho a preocupação pela informação:
Quem não ia até lá, como Mário de Andrade, estudava as revistas e os materiais que chegassem divulgando o que se passava fora. Isso, contudo, apenas demonstra que os nossos modernistas eram informados, antenados, mas não que eram plagiadores. É fácil apontar as matrizes de vanguarda acolhidas pelos modernistas brasileiros. Eles mesmos fizeram esse trabalho em diversos momentos. Menos fácil é explicar como tais matrizes foram transformadas na prática das obras produzidas por esses artistas. Diga-se, só de passagem, que foi a esse desafio que correspondeu a noção de antropofagia. Em suma, o Modernismo foi de vanguarda, mas não cópia das vanguardas (VISO,2012, p.111).
Não obstante de não ter participado da Semana de Arte Moderna, Tarsila torna-se um símbolo do modernismo brasileiro. O fato de não ter participado da Semana de 1922 não tira o seu lugar de grande expoente do movimento brasileiro. Com suas pinturas de muitas paisagens, Tarsila, retira a máquina como um grande ícone da sociedade industrial e moderna, com muita precisão nos contornos, cores e molduras, produz verdadeiramente o movimento à tela. A essa primeira fase chamada pau-brasil, caracterizada pelas paisagens, segue-se um curto período antropofágico, que tem como marco inicial a estupenda obra: Abaporu, esta que é uma grande contribuição da artista para o movimento.
2.2 Apreciação estética da obra Abaporu
Por que a obra Abaporu provoca em nós sentimento de beleza? Apreciamo-la por que é realmente bela ou fomos convencidos pelo consenso? Para o filósofo Immanuel Kant, por exemplo, não seria possível discutir mediante argumentos lógicos o sentimento do belo, por este não possuir uma base conceitual. Todavia, esse sentimento estético poderia ser compartilhado entre pessoas que possuíssem a mesma certeza acerca da beleza, retirando assim o caráter totalmente subjetivo de um juízo estético. Neste sentido, Theodor Adorno nos diz:
De certo modo, o belo surgiu do feio mais do que ao contrário. Mas, se o seu conceito fosse posto no índex, como muitas correntes psicológicas procedem com a alma e numerosos sociólogos com a sociedade, a estética tinha de se resignar. A definição da estética como teoria do belo é pouco frutuosa porque o caráter formal do conceito de beleza deriva do conteúdo global do estético. Se a estética não fosse senão um catálogo sistemático de tudo o que é chamado belo, não existiria nenhuma ideia da vida no próprio conceito do belo (ADORNO,1970, p. 65).
É notório que a arte Abaporu, assim como qualquer outra obra, é constituída de formas, linha, ponto, cor, textura, fundo e figura. No entanto, a linha não aparece como um contorno na obra em questão, ela se apresenta de forma suave com um jogo de luz e sombra, que delimita a figura humana em deformação, esta que toma todo o espaço da paisagem. O cacto ao lado direito e atrás da figura o sol isolado integra a obra. Em síntese no que tange à compreensão do que venha ser arte, Theodor Adorno diz:
A obra de arte é processo essencialmente na relação do todo às partes. Não podendo reduzir-se nem a um nem a outro momento, esta relação é, por seu turno, um devir. O que de qualquer modo se pode chamar a totalidade na obra de arte não é a estrutura englobante de todas as suas partes. Também na sua objetivação persiste, antes de mais, algo que se constrói em virtude das tendências que nela atuam (ADORNO, 1970, p. 202).
Os objetos naturais têm vida, as obras de arte também são vivas. De uma forma de vida diferente destes, a arte comunica sua vida de forma particular. O Abaporu “grande e tranquilo, pensativo, quase a dormir sob o sol estrelado no céu, é mais do que uma simples imagem sobre um pano esticado. O manso selvagem é. É um feixe de ideias amarrado, é um sonho retratado” […] (HOFMANN, 2010, p. 60). Ademais, conceituar a arte, de forma bem simples fazendo analogia, é andar numa corda muito instável e procurar pontos de equilíbrio de momentos e por vezes frágeis, dentro de um equilíbrio para si e para o outro. “A arte opõe-se tanto ao conceito como à dominação, mas, para tal oposição, precisa, como a filosofia, dos conceitos” (ADORNO, 1970, p. 115).
A arte moderna para Adorno não é diferente, caracterizada por ele “como abstrata, pois aponta para aquilo que ainda não existe, que não pode ser conceitualizado, que escapa a todas as tentativas de instrumentalização”(DANNER, 2008, p. 2). Instrumentalização suscetível à sociabilidade capitalista, e difundida nas esferas das relações sociais. Então:
O resto de abstração no conceito do moderno é o tributo que lhe paga. Se, no seio do capitalismo monopolista, se continua a saborear o valor de troca, e já não o valor de uso [10], então a abstração torna-se para a obra de arte moderna a indeterminação irritante daquilo e para aquilo que ela deve ser, a cifra do que é. Tal abstração nada tem em comum com o caráter formal das antigas normas estéticas, por exemplo, com as normas kantiana (ADORNO, 1970, p. 34).
Outrossim, toda obra de arte é reflexo do seu tempo. A obra Abaporu, por exemplo, que está dentro do modernismo brasileiro, insere-se no contexto de industrialização. Período de novas ideias, novas formas de viver, e isso causa um certo impacto na obra. Mas, deve-se levar em conta que ela não fica presa a essa realidade, pois “A arte moderna não aceita qualquer tentativa de inserção a parâmetros socialmente determinados e aceitáveis” (DANNER, 2008, p. 7). Pelo contrário “Flutua sem peso sobre um manto verde, pois é apenas um pesadelo. Pintado, seus contornos parecem delimitar seu espaço, aquele em que pode existir somente como um ser da imaginação, tornado real por uma pintora modernista” (HOFMANN, 2010, p. 63).
Neste cenário, em que nasce o modernismo, Tarsila do Amaral percebe que a desigualdade entre as classes sociais estava cada vez mais desproporcional. A partir disso traz para suas obras a figura do operário, entre outros elementos que fundem às suas representações artísticas. “É por isso que Adorno define-a como uma ‘antítese social da sociedade’, pois despreza normas e preceitos de estruturação preconcebidos, rejeitando modelos éticos, políticos e religiosos que possam determinar previamente a sua forma” (DANNER, 2008, p. 7).
Das cores usadas, na pintura em questão, percebemos tons muito reais, decerto que o cacto é verde, o céu é azul e o sol entre tons laranja e amarelo. Estas cores se unem ao tom de bege que foi utilizado para representar a cor da pele humana. A figura é realçada não somente pela cor, mas pelo tamanho do pé em sua forma exagerada, que nos faz perceber uma outra dimensão da realidade artística do homem brasileiro: o sofrimento. Lemos este sofrimento no trabalhador ao ficar exposto várias horas por dia ao sol, e isso acontece até nos dias atuais, quando o trabalhador é deformado por trabalhar no campo, em serviços braçais.
Adorno afirma que a arte moderna, diferentemente do falso prazer (satisfação) que é fornecido pela indústria cultural, expressa o sofrimento humano em seu cotidiano. No mundo da indústria cultural, os seres humanos são obrigados a reprimir uma parte de sua vida (desejos, ambições, sonhos, ideais, etc.) para ingressarem nessa “nova” realidade. É por isso que a arte moderna é o veículo privilegiado de expressão do sofrimento que cada ser humano experimenta em sua vida cotidiana. Isso justifica o fato de a arte moderna estabelecer uma íntima relação com aqueles materiais não tão agradáveis, belos, harmoniosos, etc., materiais estes que, de certa forma, chocam nossa sensibilidade, assumindo o caráter de uma pura irracionalidade (DANNER, 2008, p. 8).
Além disso, a obra não apresenta muitas texturas, talvez seja pela intensidade das cores que Tarsila resolveu representar. Há a presença de suma importância da luz e sombra que dá à obra a sensação de volume e peso. As cores verdes e azuis trazem uma harmonia à obra, um equilíbrio estético. O cacto que é próprio da realidade nordestina traduz o trabalho do homem do campo, marcado por uma faina diária difícil, ressaltando a seca, miséria, desnutrição e ao mesmo tempo fazendo alusão histórica às paisagens brasileiras tão exóticas e que são muito cobiçadas pelos europeus.
É evidente que o conceito de arte moderna expresso na obra Abaporu rompe com os princípios clássicos das obras europeias que vigorava desde então. Tarsila utiliza da ousadia para representar numa tela uma figura com toda brasilidade possível e ao mesmo tempo tão enigmática. De fato, “A arte moderna tem como característica principal mostrar-se incompreensível, enigmática. Segundo Adorno, ‘a arte só é interpretável pela lei do seu movimento’, não por invariantes” (DANNER, 2008, p. 9).
Esta ousadia é percebida através do uso das cores quentes, expressivas, formas exageradas numa figura com perna e pé enormes e uma cabeça tão pequena. Esta imagem “poderia sugerir um sem número de associações, assim era o presente. Saci, monstro, figura mítica, em pose melancólica, mas que em nada poderia sequer lembrar uma gravura de Albrecht Dürer.” (HOFMANN, 2010, p. 53). No entanto, essas características apresentadas não significam a falta de competência da artista, mas sim uma tendência em querer romper com os princípios estabelecidos, trazendo para a arte brasileira seu jeito próprio de ser.
De acordo com Adorno, as obras de arte, na ânsia de exigir sua autonomia, criticam essa relação das coisas na realidade capitalista. O que está em jogo aqui é, segundo ele, o fato de que o significado da arte pode ser construído a partir dela mesma, da relação que se estabelece na singularidade da experiência de sua contemplação (DANNER, 2008, p. 8).
É importante salientarmos que a figura ali representada causa certo incômodo, no entanto, este padrão estético é próprio do modernismo. “A harmonia que, enquanto resultado, nega a tensão que a garante, transforma-se assim em elemento perturbador, falsidade e, se se quiser, dissonância. O aspecto harmonioso do feio erige-se, na arte moderna, em protesto. Daí brota algo de qualitativamente novo” (ADORNO, 1970, p. 60).
Tal desproporção, agonia, aflição, inquietude dentre vários sentimentos que a obra pode nos suscitar, retrata aquilo que o movimento antropofágico queria provocar, retratado por meio de um “monstro que come gente”. “Mas era um pesadelo: uma figura imensa, que a tudo em volta diminuía, diante daquele monstro rosa-carne, de uma perna só. Pacato espectador do tempo, iluminado por um sol amarelo em forma de flor” (HOFMANN, 2010, p. 53).
Em outras palavras, o novo, na arte, aponta para aquilo que ainda não sofreu influência da cultura de massas capitalista. É por isso que Adorno caracteriza a arte moderna como abstrata, pois ela direciona para aquilo que não existe, que ainda não foi visto, que não pode ser dito, que não pode ser modificado pela ideologia dominante (DANNER, 2008, p. 9.
As mãos e pés exagerados, que compõem a desproporcionalidade citada acima, podem também ser justificados na compreensão de que o trabalho braçal, naquela época, era mais valorizado. E a cabeça pequena, por sua vez, poderia ser um retrato da falta de valorização da intelectualidade e criações brasileiras. Sendo também os estudos artísticos, literários, etc., mais acessíveis somente às elites, ficava para o resto da população uma tecnificação de sua formação (preparação para o trabalho manual).
É moderna a arte que, segundo o seu modo de experiência e enquanto expressão da crise da experiência, absorve o que a industrialização produziu sob as relações de produção dominantes. Isto implica um cânon negativo, proibição do que tal arte moderna nega na experiência e na técnica; e semelhante negação determinada é já quase, por seu turno, o cânon do que é necessário fazer. Que uma tal arte moderna seja mais do que um vago «espírito do tempo» ou um versado up-to-date deve-se ao desencadeamento das forças produtivas. Ela é tão determinada socialmente pelo conflito com as relações de produção como intra-esteticamente enquanto exclusão de elementos gastos e de procedimentos técnicos ultrapassados (ADORNO, 1970, p. 47).
Por isso “para Adorno, a arte é, essencialmente, essa expressão crítica e libertadora dos seres humanos frente à racionalidade instrumental da vida econômica, política e científica.” (DANNER, 2008, p. 9). Mas, sua função não é determinada por este seu aspecto, esse não é o objetivo da arte. Sua natureza também despreza vários tipos de predicados que poderiam a ela serem referidos, pois foge à tentativa de instrumentalização. Tal como “Ao contrário da indústria cultural, a arte não tem uma função de divertimento; a seriedade do prazer artístico faz com que ela seja diferente do que se experimenta nos meios de comunicação de massa” (DANNER, 2008, p. 7).
Com o Abaporu não é diferente, apesar de toda sua importância social, cultural, política, é desinteressado diante destes efeitos. Por detrás dos enigmas, “Cor de gente, pose humanizada, quase homem em seu absoluto cansaço diante de seu mundo, e total descaso perante todo o movimento que foi feito em torno de si mesmo, […] alheio a tudo, o Abaporu se aquece sob um pequeno sol tropical” (HOFMANN, 2010, p. 63).
Os produtos da indústria cultural exercem um grande distanciamento entre o criador e seu produto, como nos apresenta Adorno, e também do produto em relação ao público. Isso é próprio do sistema econômico vigente, visto que visa uma cultura massificada, padronização das sensações, julgamentos pré-estabelecidos sobre determinada arte. O Abaporu não é construído e encarado desta forma, pois é parte da arte moderna. Há uma relação muito próxima entre a autora e a obra em si. Seus elementos estéticos permitem uma certa experiência singular, única, do contemplador com o contemplado. “Para Adorno, o que caracteriza a obra de arte em sua singularidade é a concretude da relação entre o sujeito e o objeto, pois, segundo ele, a obra de arte parece acabar com o processo de afastamento, de separação entre o sujeito e o objeto, que é próprio do capitalismo” (DANNER, 2008, p. 9).
3 Considerações finais
Portanto, é notório que toda essa ousadia ao retratar tantos elementos numa obra, é próprio de uma tendência de ânsia por uma verdadeira identidade. Ou ainda uma verdadeira vanguarda, rompendo com tudo que estava estabelecido na sociedade estética europeia, jamais será esquecida. Indubitavelmente, o modernismo deixou um grande legado no que tange a importância e representatividade da cultura Brasileira.
Ainda que o respectivo movimento estivesse influenciado pelas tendências das vanguardas europeias, tinha-se total consciência de sua filiação, e estava longe de ser uma espécie de imitação. Deve-se destacar a originalidade e destreza com que os artistas produziram os seus trabalhos. Tarsila, sem sombra de dúvidas, incorporou a esse movimento um grande enriquecimento com suas obras, diga-se à parte, o Abaporu. O enigmático e dialético monstro que come gente, símbolo deste período. Deste modo não é vã a grande ressonância e repercussão que gerou na sociedade, não obstante descrevê-lo e ainda faltar muito o que dizer sobre ele.
Referências:
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CEREJEIRA, Thiago. Abaporu de Tarsila do Amaral. Disponível em:<http://artedescrita.blogspot.com/2012/08/abaporu-de-tarsila-do-amaral.html?m=1>. Acesso em: 07. Abr. 2020
DANNER, Fernando. A Dimensão Estética em Theodor W. Adorno.Thaumazein, Santa Maria, n. 3, v. 2. 2008. Disponível em: <https://periodicos.ufn.edu.br>. Acesso em 12 jun. 2020.
DUARTE, Pedro. A Vanguarda modernista brasileira. Viso, Rio de janeiro, n.11. p 110-118, jan./-jun. 2012. Disponível em: <http://www.revistaviso.com.br/ a vanguarda modernista brasileira.pdf >. Acesso em 2 jun.2020.
GENIAL, cultura. Abaporu. Disponível em: <https://www.culturagenial.com/abaporu/>. Acesso em: 07. Abr. 2020
HOFMANN, Maria Helena Cavalcanti. A Linha que Contorna a Crônica: a Obra de Tarsila do Amaral. Dissertação (Mestrado em História e Crítica da Arte) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2010.
MARTINS, Simone R.; IMBROISI, Margaret H. Abaporu. Disponível em:< https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/abaporu-de-tarsila-do-amaral/>. Acesso em: 07. Abr. 2020
Anexo:
[1] Graduandos em Filosofia na Faculdade Dom Luciano Mendes