Filipe Henriques Gonçalves
Resumo: O presente artigo busca dissertar sobre a memória a partir da visão de Santo Agostinho, tema apresentado no Livro X das Confissões, apresentando os conteúdos da memória, como chegam até ela, como são recordados depois de armazenados, fazendo isso, percebemos a relação com o conhecer e aprender um conteúdo. Além disso, investiga sobre o elemento “esquecimento” procurando explicar, com o pensador, o que ele seria e como está na memória. Ademais, pretende mostrar a relação de Deus com a memória. Assim, discorremos sobre a memória e seu conteúdo, depois entendemos o processo de recordar e do esquecimento e, por fim, apresentamos a questão de Deus na memória do homem.
Palavras-chave: Agostinho; Memória; Recordação; Esquecimento; Deus
INTRODUÇÃO
Santo Agostinho (354 – 430) foi um filósofo e teólogo importante para a tradição ocidental tanto religiosa, quanto não religiosa. O presente trabalho pretende discorrer sobre o tema da memória, que é tratado principalmente no livro X das Confissões – uma das principais obras do autor. Para tanto, este artigo trabalhará o que é a memória, entendendo o que ela é e o que está presente nela, depois o processo da recordação e o esquecimento e, por fim, trabalharemos Deus na memória do homem.
Antes de entrarmos propriamente no texto é importante ressaltar o porquê Agostinho faz essa investigação. Um primeiro ponto é que ele, nos livros anteriores dessa obra (Livros I – IX), discorreu sobre sua vida, então o objeto é o passado vivido por ele, que estava presente em sua memória, então nada mais justo do que falar sobre ela. Contudo, este não é o único motivo aparente. Confissões trata principalmente da vida de um homem em busca de “um bem cuja posse satisfaz todo desejo e, por conseqüência, confere a paz” (Gilson, 2010, p.17). Trata de um homem que é inquietado pelo “seu destino; para ele, esta é toda a questão: procurar se conhecer para saber o que é preciso fazer a fim de ser melhor e, se possível, a fim de bem ser” (Gilson, 2010, p.17). Então, por procurar essa beatitude, ele procura, como todo homem, a felicidade e, como Gilson (2010, p.19) afirma sobre o pensamento de Agostinho, “aquele que tem Deus é, portanto, o único que teria a felicidade e também, por conseguinte, o desejo de Deus é a única via que conduz à beatitude”. Então, a obra é também uma busca de Deus, já que Ele é entendido como esse “bem cuja posse satisfaz todo desejo”, e este é o principal objetivo ao discorrer sobre a memória: encontrar a Deus.
É importante entender isso, pois é o caminho retórico, argumentativo e didático escolhido pelo autor para discorrer sobre esse tema. Assim apresentado, podemos entrar propriamente na discussão sobre a memória.
O QUE É A MEMÓRIA
Santo Agostinho, ao iniciar a discussão sobre a memória propriamente dita, afirma que ela não é material. Podemos perceber isso com alguns fragmentos de seu texto. Primeiramente ele afirma, ao procurar o caminho que chegará a Deus:
Pela própria alma, subirei até ele, ultrapassarei a força que me prende ao corpo e vivifica meu organismo. Mas não é por meio desta força que chegarei ao meu Deus. Se assim fosse, também o alcançariam ‘o cavalo e a mula que não têm inteligência’ e cujos corpos vivem graças àquela mesma força. Mas existe outra força, que não só vivifica, mas também sensibiliza o corpo que o Senhor me deu […]. Ultrapassarei ainda outra força que igualmente o cavalo e a mula possuem, porque também possuem a sensibilidade corporal (Conf. X, 7, 11, p. 277).
Nesse trecho, o autor afirma ultrapassar forças. Podemos entender, disso, a passagem entre as funções da alma, que Aristóteles explica como a função nutritiva, sensitiva e intelectiva. Assim ultrapassa a categoria da nutrição e da sensibilidade na alma humana, chegando ao nível da intelecção, da racionalidade.
Fica claro, portanto, que a memória não está no nível dos sentidos, embora seja eles importantes para a relação com o mundo e aquisição de imagens para a memória, como veremos a frente. Mais adiante na obra, quando se tratando de um dos conteúdos da memória, Agostinho afirma que as noções “Encontram-se como que escondidas em lugar muito recôndito, que não é lugar” (Conf. X, 9, 16, p. 281), mostrando mais uma vez que, por mais que a linguagem insista em tratá-la como algo sensível, físico e material, ela não o é. A memória então seria uma categoria do homem interior, isto é, da alma, no que é superior na alma humana: a sua capacidade de ser racional.
Sendo a memória, faculdade da alma, é nela que “é também depositada toda a atividade de nossa mente, que aumenta, diminui ou transforma, de modos diversos, o que os sentidos atingiram, e também tudo o que foi guardado e ainda não foi absorvido e sepultado no esquecimento” (Conf. X, 8, 12, p. 278). Sendo assim, o que de fato é o conteúdo em que a memória “aumenta, diminui ou transforma”?
Santo Agostinho vai categorizar o conteúdo da memória em dois grupos principais: as imagens e as noções, sendo estas que não passam propriamente pelos sentidos e as outras que necessariamente chegam à memória pelos sentidos. Nesse sentido, “a memória pode ser dividida em sensível […], e em intelectual […] A primeira é passiva, recebimento de imagens, e a segunda é ativa; é nela que o sujeito pode exercer atividade cognitiva, que tem como alicerce Deus” (Scherer, 2006, p. 39)
Quanto às imagens, podemos afirmar que a memória as armazena de forma ordenada pela maneira que foram introduzidas aí: as cores pela visão, os sons pela audição e por aí vai (Conf. X. 8, 13, p.278-279). Contudo é importante entender que “Não são os próprios objetos que entram [na memória], mas as suas imagens pelos sentidos” (Conf. X. 8, 13, p. 279). Então, tudo o que os sentidos “tocam”, cada um com sua forma própria, é armazenado na memória a espera para retornarem à mente no momento propício.
Agostinho percebe que nem tudo que está em sua memória é algo proveniente dos sentidos, mas tem algumas coisas que ali estão que são diferentes das imagens adquiridas pelos sentidos. Estas ganham o nome de noções. Por noções podemos entender como as ciências liberais, “as noções de literatura, de dialética, as diferentes espécies de problemas existentes, todos os conhecimentos que tenho a respeito” (Conf. X, 9, 16, p. 281), enfim, podemos entender como os conceitos abstratos. O doutor da graça afirma que as noções “não são apenas as imagens, são as próprias realidades que carrego” (Conf. X, 9, 16, p. 281). Mas, com o autor, podemos, uma vez entendido que esses conceitos estão de alguma forma dentro de nós, perguntar-nos como entraram em nossa memória (Conf. X, 10, 17, p. 281).
Para responder a essa indagação, o autor recorre a um exemplo de ouvir três palavras que tem significados abstratos (a existências, a natureza e os atributos) e diz reconhecer as imagens das palavras em si, porém, ele diz: “Depositei na memória não suas imagens, mas as próprias substâncias” (Conf. X, 10, 17, p. 282). Ele percebe então, que, mesmo escutando os sinais que lhe foram pronunciados, os seus significados, as coisas em si, estão em sua memória e não somente suas imagens, nem somente seus sinais, mas o que significam. Contudo, Agostinho quer entender como essas estavam lá, como foram apreendidas. Sobre isso ele discorre:
E então, de onde e por onde entraram na minha memória? Ignoro-o, porque, quando as aprendi, não foi por testemunho de outros, mas reconhecias existentes em mim, admitindo-as como verdadeiras, e entreguei-as ao meu espírito, como quem as deposita, para depois retirá-las quando quisesse. Estavam aí, portanto, mesmo antes de as aprender, mas não estavam na minha memória. Onde estavam então? Foi assim que as reconheci? Ao ouvir falar delas, eu disse: “É isso mesmo, é verdade”! Não estariam já na memória, mas tão escondidas e retiradas, como que nos mais profundos recessos, de tal modo que eu não poderia talvez pensar nelas, se alguém não me advertisse para arrancá-las? (Conf. X, 10, 17, p. 282)
E acrescenta:
Descobrimos assim que aprender as coisas – cujas imagens não atingimos pelos sentidos, mas que contemplamos interiormente sem imagens, tais como são em si mesmas – significa duas coisas: colher pelo pensamento o que a memória já continha esparsa e desordenadamente, e obrigá-lo pela reflexão a estar como que à mão, em vez de se ocultar na desordem e no abandono, de modo a se apresentar sem dificuldade à nossa reflexão. (Conf. X, 11, 18, p.282-283))
Assim parece que não há um aprendizado, mas apenas uma recordação de algo que já se sabia. Essa ideia aparece de forma muito forte em Platão. Este dizia que o ato de aprender é a reminiscência, o recordar uma realidade que a alma já viveu, ou melhor, já experimentou, trazendo a pré-existência da alma em relação ao corpo. Contudo, Agostinho não aceita toda essa formulação como verdadeira. Nesse sentido, Gilson (2010, p.155-156) afirma que:
Na verdade, Platão tem razão em dizer que a alma encontra a verdade em si mesma; conclui mal, a partir disso, que ela se lembra da verdade como nos lembramos de um conhecimento passado. É verdadeiro que a verdade sempre está ao nosso alcance, graças ao Mestre interior que a ensina para nós, basta somente prestamos atenção ao que ele nos ensina. Se Santo Agostinho faz também uso das palavras “lembrança” e “reminiscência” para explicar seu pensamento, convém entendê-las num sentido bem diferente daquele de Platão: a memória platônica do passado tem aqui o lugar da memória agostiniana do presente, cujo papel não deixará de sempre ser mais afirmado.
A partir disso, podemos entender que as noções – as coisas que estão na memória por si e que não vieram pelos sentidos – ali estão como que escondidas em um “canto” da memória e foram ensinadas por esse Mestre interior, que é Deus (Gilson, 2010, p. 159).
Ainda sobre as noções, é importante dizer que, por ser as coisas em si, elas não pertencem a uma língua ou outra (Santos, 2002, p. 372). Sim, os sinais pelos quais significam essas coisas pertencem a uma língua, porém, a coisa que ele significa estando já na memória, a coisa pode ser significada em diversas línguas, que não irá atrapalhar na compreensão da coisa. Obviamente que é necessário entender o que o sinal significa para lembrar-se da coisa.
Outra coisa que está na memória são os sentimentos. Estes estão ali “não do modo como o espírito sente no momento em que os experimenta, mas de maneira diferente, de acordo com o poder da própria memória” (Conf. X. 14, 21, p.285). Isso quer dizer que lembrar-se de uma alegria é possível mesmo estando com o espírito triste e vice-versa. Para deixar mais claro, Agostinho explica comparando os sentimentos com os alimentos. Assim, um alimento quando passa pela boca, esta sente seu gosto, se é salgado, doce, azedo e por aí vai. Contudo, quando esse vai para o estômago, não é sentido seu gosto. Então “o fato é que a memória é, por assim dizer, o estômago da alma. […] Quando tais emoções são confiadas à memória, podem ser aí despertadas como num estômago, mas perdem o sabor” (Conf. X, 14, 21, p. 285).
Mesmo sendo assim, Agostinho esclarece:
No entanto, não poderíamos falar se não encontrássemos na memória, não somente os sons das palavras segundo as imagens impressas nos sentidos, mas as próprias noções das coisas que não entraram em nós através de algum acesso do corpo. Essas noções foram confiadas à memória pelo espírito, depois de este havê-las experimentado e sentido, ou foram retidas pela memória sem que ninguém as tivesse confiado a ela. (Conf. X, 14, 22, p. 286)
Então, os sentimentos estão na memória não como imagens, mas como as próprias noções deles, mesmo não trazendo necessariamente emoções ao lembrar-nos de algum deles. Agora, depois de entendido o que está presente na memória e o como chegaram lá, torna-se necessário, entender a recordação e o esquecimento.
RECORDAÇÃO E ESQUECIMENTO
Agostinho ao falar da memória não tinha como não citar em algum momento sobre o lembrar de algo e de esquecer de algo, o que já tangenciamos também durante a explicação do título anterior. Contudo, no começo do discurso sobre a memória no livro X, ele, de forma literária, exemplifica como acontece o ato de recordação de algo.
Quando aí me encontro [na memória], posso convocar as imagens que quero. Algumas se apresentam imediatamente; outras fazem-se esperar por mais tempo e parecem ser arrancadas de repositórios mais recônditos. Irrompem as outras em turbilhões no lugar daquela que procuro, pondo-se em evidência, como que a dizerem: “Não somos nós talvez o que procuras”? Afasto-as da memória com a mão do meu espírito; emerge então aquela que eu queria, surgindo das sombras. Outras sobrevêm dóceis em grupos ordenados, à medida que as conclamo, uma após a outra, as primeiras cedendo lugar às seguintes, e desaparecendo para reaparecer quando quero (Conf. X, 8, 12, p. 278).
Então, podemos perceber exatamente uma narração de como é o processo para recordar de alguma coisa que está em nossa memória. Ademais, é interessante que ele, no final desse fragmento diz sobre grupos ordenados, o que nos remete que, assim como vimos anteriormente, cada lembrança é distinta na memória pela maneira que foi introduzida, cada uma é ordenada com as outras de mesmo gênero, se são externas ou internas, ou seja, imagens ou noções, se são as primeiras, se chegaram pelos ouvidos ou pela visão e por aí vai (Conf. X, 8, 13, p. 278-279). “A memória armazena tudo isso nos seus amplos recessos e em seus esconderijos secretos e inacessíveis, para ser reencontrado e chamado no momento oportuno” (Conf. X, 8, 13, p. 279). E ele acrescenta insistindo nessa ideia:
Encontram-se aí [na memória], à minha disposição, céu, terra e mar, com aquilo tudo que neles colher com os sentidos, excetuando-se apenas o que esqueci. É aí que me encontro a mim mesmo, e recordo as ações que realizei, quando, onde e sob que sentimentos as pratiquei. Aí estão também todos os conhecimentos que recordo, seja por experiência própria ou pelo testemunho alheio (Conf. X, 8, 15, p. 279)
Entretanto, diante de tudo isso, surge uma dúvida no autor: Recordamos através da imagem (Conf. X, 15, 23, p. 286)? Então, ele percebe que recorda as coisas como elas estão na memória, se estão armazenadas por formas de imagens, então recorda por meio de imagens, não imagens de imagens. “Evoco a imagem do sol, e ela se apresenta à minha memória” (Conf. X, 15, 23, p. 287). Se estão armazenadas como as próprias coisas, então se recordará como as próprias coisas. “Digo os números com os quais fazemos os cálculos, e à minha memória não se apresentam as imagens, mas os próprios números” (Conf. X, 15, 23, p. 287).
Contudo, a memória não só armazena e recorda coisas, mas tem o poder de fazer ligações entre elas. Sobre isso, Agostinho comenta:
Dessa riqueza de ideias me vem a possibilidade de confrontar muitas outras realidades, quer experimentadas pessoalmente, quer aceitas pelo testemunho dos outros; posso ligá-las aos acontecimentos do passado, deles inferindo ações, fatos e esperanças para o futuro, e, sempre pensando em todas como estando presentes, “farei isto ou aquilo”, digo de mim para mim no imenso interior de minha alma repleto de tantas imagens (Conf. X, 8, 14, p. 280).
Neste fragmento da obra temos essa noção de que “a memória possui uma função não somente retrospectiva, mas também prospectiva” (Santos, 2002, p. 368), uma vez que pode não somente lembrar-se do passado e perceber o presente, mas também imaginar o futuro, claro, a partir do que se lembra do passado e se percebe do presente. Isto é possível pelo poder de confronto das realidades na memória, como citado por Agostinho. Este coligir, no sentido de unir lembranças, sejam elas imagens ou noções, mas principalmente estas, e concluir algo disso, está intimamente ligado com o termo cogitar, usado pelo autor. Há a necessidade de entender o que ele quer dizer com o cogitar para entender esse confronto bem como a expressão usada anteriormente: arrancar as lembranças de repositórios mais recônditos.
Quando Agostinho explica sobre as noções trabalha a palavra cogitar no momento em que explica como são apreendidas tais noções.
Descobrimos assim que aprender as coisas – cujas imagens não atingimos pelos sentidos, mas que contemplamos interiormente sem imagens, tais como são em si mesmas – significa duas coisas: colher pelo pensamento o que a memória já continha esparsa e desordenadamente, e obrigá-lo pela reflexão a estar como que à mão, em vez de se ocultar na desordem e no abandono, de modo a se apresentar sem dificuldade à nossa reflexão […]. Dessa operação deriva o verbo cogitar, estando cogo para cogito, como ago está para agito, facio para factito. No entanto, a palavra cogito tornou-se exclusiva do espírito, de modo que agora cogitar significa a ação de colher, mas somente no espírito, e não alhures (Conf. X, 11, 18, p. 282-283).
Existe, então, uma relação entre o cogitar e o aprender. Sobre isso, Gilson (2010, p. 156) explica que:
A cogitatio agostiniana é tão-somente o movimento pelo qual nossa alma colige, reúne e recolhe, para poder fixar seu olhar sobre eles, todos os conhecimentos latentes que ela possui sem ainda tê-los discernido. Para ele, portanto, pensar, aprender e se lembrar é, verdadeiramente, o mesmo.
Depois de analisar esses fragmentos podemos perceber que cogitar é exatamente o ato de pensar profunda e insistentemente sobre algo, reunindo as imagens e noções e fazendo ligações, coligindo, de tal forma que a memória fique mais firme, clara e não caia no esquecimento. Sendo assim, acontece o aprendizado ao fazer ligações diferentes e ao perceber combinações novas a partir daquilo que já se conhece surgindo novas noções, bem como lembrar de ligações já feitas. Vale lembrar que as coisas na memória também podem ser “ressignificadas quando o espírito as reivindica” (Moraes, 2011, p.55). Se bem que, no fim, lembrar e aprender é tomado como coisas semelhantes, pois as noções já estão na alma, no fundo da memória, esperando serem colhidas por essa força do pensamento para então serem puxadas à superfície da memória.
Muitas ligações entre as noções lembradas são possíveis e levam a desvelar uma outra noção. Sendo assim, Santo Agostinho afirma:
Conservo tudo isso [noções] na memória, como também o modo pelo qual aprendi. Retenho igualmente na memória muitos argumentos errôneos contra essas verdades. São falsos, mas não é falso o fato de lembrar-me. Lembro-me também de ter sabido, nessas discussões, discernir entre verdades e falsidades que se opunham a elas (Conf. X, 13, 20, pág. 284).
Então a memória retém a maneira que se aprendeu, ou seja, as ligações que foram feitas e o caminho percorrido, até mesmo os erros desses caminhos, pois eles também são importantes para a compreensão do aprendizado. Além disso, ajuda a deixar disponível na memória e tal aprendizado não cair no esquecimento.
Entendemos o que é a memória, seus conteúdos e como acontece o processo de lembrar-se de algo, mas “a memória não está imune totalmente da temporalidade, ou melhor, do efeito trazido pelo tempo: o esquecimento” (Scherer, 2006, p.40). Santo Agostinho tenta entender o que seria o esquecimento e procura investigá-lo. Ele tenta fazer o seguinte caminho:
Quando me lembro da memória, é a própria memória que se apresenta a mim. Quando, pelo contrário, me lembro do esquecimento, tanto a memória como o esquecimento me vêm à minha presença. A primeira é o meio pelo qual recordo; a segunda é o objeto que recordo. Mas o que é o esquecimento senão a privação da memória? E como pode estar presente, para que eu o recorde, se quando está presente não posso recordar? O que recordamos está guardado na memória, e se não nos lembrássemos do esquecimento, não poderíamos nem mesmo reconhecer o que significa esta palavra ao ser pronunciada, e isto quer dizer que a memória retém o esquecimento. Assim, a presença do esquecimento faz com que não o esqueçamos, mas, quando está presente, nos esquecemos (Conf. X, 18, 24, p. 288).
Talvez seja uma imagem do esquecimento que ele se lembre ao lembra-se disso, mas ainda sobre isso o autor acrescenta:
Quando todos esses objetos [os objetos como lugares, pessoas] me eram presentes, a memória captou-lhes as imagens, a fim de que mais tarde as contemplasse e repassasse no espírito, quando ausentes. Portanto, se é pela imagem e não por si esmo que o esquecimento se grava na memória, é preciso que o esquecimento esteja presente, para que a memória lhe capte a imagem. Todavia, estando o esquecimento presente, como pode gravar a própria imagem na memória, se com sua presença, apaga tudo o que lá encontra impresso? Contudo, seja como for, apesar de ser inexplicável, e incompreensível, estou certo de que me lembro do esquecimento, isto é, daquilo que destrói em nós todas as lembranças (Conf. X, 18, 25, p. 289).
Diante da complexidade do esquecimento, Agostinho reconhece a limitação de não conseguir explicar esse ponto paradoxal da relação entre a memória e o esquecimento. Entretanto, não deixa de discorrer mais um pouco sobre ele. Para isso, o autor coloca um exemplo: a mulher que procurava uma dracma, presente no Evangelho segundo Lucas (Cf. Lc 15, 8). Ele argumenta que “não a [a dracma] teria encontrado se dela não se lembrasse. Tendo-a depois achado, como saberia se era aquela, se dela não se recordasse” (Conf. X, 18, 27, p. 290)?
A partir desse exemplo, é claro a relação entre o encontrar objetos perdidos e a memória. Esta é necessária para o reconhecimento da coisa quando é encontrada, pois, mesmo quando este objeto se perde da vista, sua imagem é retida na memória e então, quando o objeto reaparece à vista, é reconhecido (Conf. X, 18, 27, p. 291). Se já foi totalmente esquecido e é encontrado, então não é reconhecido. A memória é também necessária para motivação da busca, pois se algo está perdido e não há lembrança desse algo, não há a esperança de se encontrar, pois o objeto já foi inteiramente esquecido.
Como é evidente, isso acontece quando o objeto está perdido no mundo exterior ao homem e sua imagem retida na memória e quando o objeto está perdido na própria memória, ou seja, foi esquecido. A questão é que quando um objeto é procurado, ele não saiu por completo da memória da pessoa que o busca. A partir dessa parte lembrada é que se procura o restante do objeto (Conf. X, 19, 28, p. 291), se assim não fosse não haveria a procura, já que não saberia da necessidade de procurar algo, uma vez que não se sabe que se perdeu algo. Mas mesmo se fosse possível saber da necessidade dessa procura, não seria possível procurar algo perdido, já que não saberia o que procurar e qualquer coisa que fosse sugerido pela memória poderia ser tomado como o que estava sendo procurado, mesmo não sendo de fato o que era procurado.
DEUS NA MEMÓRIA DO HOMEM
Tendo discorrido sobre tudo isso entramos na discussão de onde está Deus na memória. Para tal Agostinho diz primeiro da felicidade. A felicidade é um desejo que todos os homens possuem (Conf. X, 23, 33, p. 295-296). E de acordo com Agostinho (Conf. X, 23, 33, p. 296), “a felicidade […] é a alegria oriunda da verdade”. Então todos amam também a verdade, e buscam no fundo de seu ser. A verdade, para o autor, é o próprio Deus. Nesse sentido ele afirma: “Onde encontrei a verdade, aí encontrei o meu Deus, que é a própria verdade, da qual nunca mais me esqueci, desde o dia em a conheci” (Conf. X, 24, 35, p. 297). E claro, a felicidade também é associada a Deus, como ele mesmo vai dizer: “Então, quem tem Deus […] é feliz” (DBV. 2, 11).
Assim sendo, se Deus não foi esquecido desde o dia do conhecimento. Porém, para se conhecer é preciso encontrar e, então, o autor se pergunta aonde poderia ter encontrado a Deus (Conf. X, 26, 37, p. 298). Então, em seguida afirma, em um diálogo com Deus: “Tu, a verdade, reinas em toda parte sobre todos aqueles que te consultam, e respondes ao mesmo tempo a todas as consultas diversas que te são apresentadas” (Conf. X, 26, 37, p. 299). Nesse sentido, parece que Deus se revela e se deixa encontrar nas verdades, por ser a própria verdade. Está na memória (Conf. X, 24, 35, p. 297), pois se aí não estivesse, não ele não poderia falar de Deus, já que só se fala do que se lembra (Conf. X, 8, 14, p. 280). Contudo, ainda procura:
Onde habitas, Senhor, na minha memória? […] Deste-me a honra de habitar em minha memória, mas em que parte? É o que estou procurando. Ao recordar-me de ti, ultrapassei as regiões da memória que também os animais possuem, porque aí […] eu não te encontrava. Passei às regiões onde depositei os sentimentos do espírito, e nem mesmo aí te encontrei. Entrei na sede da alma – pois o espírito também se recorda de si mesmo – e nem aí estavas. Como não és imagem corpórea, e tampouco sentimento de um ser vivente […], assim também tu, não podes ser o próprio espírito, porque és Senhor e Deus do espírito […]. Mas por que procurar em que parte habitas, como se na memória houvesse vários compartimentos? É certo que nela habitas, pois recordo-me de ti desde o dia em que te conheci. E é aí que te encontro quando me lembro de ti (Conf. X, 25, 36, p. 298).
Então está na memória, sendo assim o autor possui, de alguma forma, a Deus ao lembrar-se dele, assim como todo homem possui a felicidade de alguma forma ao desejá-la e procurá-la, alguns possuindo-a de forma que são felizes na realidade e outros por esperança, que como vimos, se se tem a esperança de algo, se quer encontrar algo, é porque já se lembra disso em certo ponto, assim, já possui aquilo em certo nível (Conf. X, 20, 29, p. 293). Explicando como Deus se revela de acordo com Agostinho, Gilson (2010, p. 31-32) afirma:
O Deus agostiniano aparece com sua característica distinta de Deus que se faz suficientemente conhecido para que o universo não possa ignorá-lo, mas que só se deixa conhecer tanto quanto for necessário para que o homem deseje possuí-lo mais e se empenhe em procurá-lo
Sendo assim, Deus se revela à memória a partir das verdades que ela contempla de forma que sempre O busca, pois sempre procura a felicidade e a verdade, mas não chega a um conhecimento que abarque a Deus totalmente, pois assim, não mais procuraria.
CONCLUSÃO
Neste trabalho buscamos compreender o tema da memória tratado por Santo Agostinho no Livro X das Confissões. Para tal, começamos tratando do que é a memória. Primeiramente, ela não é um órgão físico, mas uma faculdade da alma, não um lugar, propriamente dito. Entendemos que a memória é constituída de imagens armazenadas que vieram por meio dos sentidos. Nesse caso, não são as próprias coisas que estão presentes na memória, mas suas imagens. Contudo, há coisas presentes na memória que não vieram pelos sentidos, a essas Agostinho chama de noções, são conhecimentos intelectivos, no sentido que se constituem de conceitos abstratos como números, noções de retórica e literatura por exemplo. Estas não são imagens, mas as próprias coisas. As noções já estão na memória, como que escondidas. Foram ali colocadas pelo Mestre Interior. Há na memória uma outra categoria de coisas: os sentimentos. Discorrendo sobre os sentimentos entendemos que a memória é comparada ao estômago, que não gera sabor, então uma pessoa pode lembrar-se do sentimento sem de fato estar sentindo aquilo que significa.
Depois, entendemos do que significa recordar e esquecer. A recordação é, para Santo Agostinho, sinônimo de aprender e pensar. Deparamo-nos com o verbo cogitar e percebemos que significa pensar profundamente, fazer ligações, coligir, refletir intensamente. Fazer as ligações entre as noções permite ao homem fazer uma prospecção, ou seja, olhar para o futuro, fazer planos a partir daquilo que se sabe, do que se viu no passado. Também permite aprender, fazer novas ligações entre noções e imagens já existentes até perceber a presença de outro conhecimento. Uma vez que as noções já estão na memória, aprender significa trazer um conhecimento que está como que escondido no fundo da memória e é descoberto.
O esquecimento é, de certa forma, uma incógnita pra o autor, já que, como vimos, ele está presente na memória para podermos falar dele e saber o que significa, mas se está presente ele apaga o que se apresenta a memória. Entretanto, ajuda Agostinho a perceber como se dá a busca de algo: se um objeto é buscado, é procurado, é porque ainda não foi totalmente esquecido da memória, mas somente em partes, possibilitando que se tenha a motivação para buscá-lo. Ao mesmo tempo que o objeto até então perdido, esquecido, tem de estar na memória, mesmo que no fundo dela, para que seja reconhecido quando encontrado.
Isso possibilitou-nos a falar sobre Deus na memória do homem. Como citado anteriormente, o motivo de Agostinho falar sobre a memória é buscar a Deus. Então ele percebe que não possui a Deus totalmente, pois O busca, mas possui até certo ponto, pois isso permite falar dele e não esquecê-Lo. Deus é associado à felicidade, o que todos os homens buscam, e a verdade, que é o que os homens amam e que Deus se revela. Deus está na memória, mesmo que não se saiba onde nela, o que não faz tanto sentido, pois ela não tem compartimentos físicos. Deus se deixa encontrar no interior do homem e então que Agostinho encontra a Deus.
REFERÊNCIAS
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AGOSTINHO, Santo. Sobre a vida feliz. Tradução: Enio Paulo Giachini. 1. ed. Petrópolis: Vozes, 2014 (Vozes de Bolso) [DBV]
GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. Tradução: Cristiane Negreiros Abbud Ayoub. 2. ed. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2010
MORAES, Suelma de Souza. A Aporia da Memória do Esquecimento no Livro X das Confissões de Santo Agostinho. Orientador: Dr. Moacyr Novaes Filho. 2012. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/002441970. Acesso em: 12 maio 2025.
SANTOS, Bento Silva. A Metafísica da Memória no Livro X as Confissões de Agostinho. Veritas. Porto Alegre, v. 47, n. 3, p. 365-375, set. 2002. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/veritas/article/view/34883. Acesso em: 07 maio. 2025
SCHERER, Fábio Cesar. Memória e interioridade nas Confissões. Controvérsia. São Leopoldo, v. 2, n. 2, p. 34-42, jan – jun. 2006. Disponível em: http://www.controversia.unisinos.br/_include/imprimir_artigo.inc.php?e=3&a=52. Acesso em: 07 maio. 2025