Por André Rodrigues Marques, Brenno Maciel de Paiva Rosa, Gerlison Ferreira Fernandes e Vítor Alves Rodrigues e Silva
Resumo: O presente artigo visa analisar esteticamente a obra A Última Ceia de Leonardo da Vinci, segundo os parâmetros conceituais da filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Em primeiro lugar, é realizada a descrição e contextualização da pessoa de Leonardo da Vinci, assim como da sua obra A Última Ceia. Em seguida, é exposta uma análise do contexto social vivido por da Vinci, a saber: o Renascimento, e as implicações desse movimento na arte. No segundo momento, apresentar-se-ão os paramentos conceituais da estética hegeliana, principalmente a sua concepção sobre a superioridade do Belo artístico ao Belo natural e as manifestações do Belo artístico ao longo do tempo. Por fim, em terceiro lugar, a análise estética de A Última Ceia é realizada de acordo com o seu contexto e as contribuições da filosofia hegeliana, sobretudo no que se refere às emoções representadas e à relação entre luz e sombra.
Palavras-chave: Leonardo da Vinci, A Última Ceia, Renascimento, estética de Hegel, manifestação do Espírito.
A história da arte é marcada por inúmeras correntes, dentre as quais se encontra o Renascimento, ocorrido entre os séculos XIV e XVI, principalmente na Itália. Nesse período, surgiu um dos maiores artistas e intelectuais de todos os tempos, Leonardo da Vinci (1452-1519), pintor de variadas obras, como A Última Ceia, pintada de1494 a 1498. Essa pintura tornou-se não apenas bastante famosa e popular, como também um marco na arte renascentista. Além disso, após as transformações históricas e sociais desse período e da modernidade, desenvolveu-se, de modo autônomo, o pensamento filosófico na área da estética. Nesse sentido, o filósofo alemão Georg W. F. Hegel (1770-1831) deu à filosofia importantíssimas contribuições no pensamento estético. Assim, diante da relevância da referida obra de da Vinci e da estética hegeliana, não somente é possível, como também necessário, compreender melhor histórica e esteticamente A Última Ceia, a partir dos pressupostos da filosofia da arte de Hegel.
Como referido anteriormente, a escolha da referida pintura se dá pela sua relevância no âmbito artístico da Renascença e, igualmente, da religião cristã, bem como pela importância fundamental de seu autor, o polímata Leonardo da Vinci, para a história da arte. O período do Renascimento é reconhecido pelo humanismo e pelas profundas transformações sociais e culturais dele decorrentes, bem como pela produção artística muito rica e variada. A Última Ceia é um exemplo dessas características presentes em tal período, por exemplo, pelo uso inovador de perspectiva de luz e composição e por uma nova forma de narrar visualmente um episódio religioso, de forma a ultrapassar a simples representação bíblica ao representar as emoções dos apóstolos ao descobrirem a traição que Jesus sofreria. Por conseguinte, a análise estética de tal obra contribui para um rico aprendizado sobre a arte, filosofia e história.
Dessa maneira, este artigo visa, em primeiro lugar, propor uma análise filosófica e estética da obra A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, a partir de sua contextualização no período do Renascimento e da estética hegeliana. Em segundo lugar, objetiva-se aprofundar a análise da obra estudada em si, dos aspectos gerais da arte renascentista e dos principais conceitos acerca da arte trazidos por Hegel, de modo a investigar as características representadas na obra por da Vinci segundo esses conceitos. Em síntese, o presente estudo visa não apenas reafirmar a relevância de A Última Ceia no cânone artístico, mas também demonstrar a fertilidade da estética hegeliana como ferramenta hermenêutica para desvelar as profundas interconexões entre a obra de arte, o espírito humano e o processo histórico.
Metodologicamente, o estudo utiliza obras de comentadores específicos para a história da arte, como Jacob Burckhardt, Ernst Gombrich e Adonias Filho, assim como os Cursos de Estética de Hegel, e os comentários filosóficos O que é estética?, de Marc Jimenez, e de artigo publicado em revista especializada. A partir da contextualização biográfica e conceitual do Renascimento e da descrição minuciosa da obra, o texto seguirá com a explicação detalhada da filosofia estética hegeliana e com a relação entre esse pensamento e as características da obra analisada, de forma a destacar, de modo particular, a expressão das emoções dos personagens como representação da subjetividade espiritual e a intrincada relação entre luz e sombra na composição, evidenciando o papel de espiritualização da arte, conforme os preceitos do pensamento hegeliano.
Descrição e contextualização histórica e artística da obra
Leonardo da Vinci nasceu no ano de 1452 (Gombrich, 2011, p. 291), em Anchiano, um vilarejo da região da Toscana, próximo à cidade de Florença, na república homônima. Era filho ilegítimo de Ser Piero, um notário florentino de 25 anos, e de Caterina di Meo Lippi, uma camponesa de apenas 15 anos. Logo após seu nascimento, o pai assumiu sua custódia e o criou na casa da família em Vinci. Da Vinci teve acesso a textos acadêmicos e cresceu em meio a uma rica tradição artística, que influenciaria diretamente sua formação intelectual.
Aos 15 anos, foi admitido como aprendiz no ateliê do mestre Andrea del Verrocchio, em Florença, um dos centros culturais mais vibrantes da Itália renascentista. Desde cedo, demonstrou um talento extraordinário, de forma a se destacar em diversas obras, e permaneceu no ateliê até 1477, consolidando-se como artista completo. Também foi polímata: ao longo da carreira, da Vinci se destacou também como inventor, engenheiro, arquiteto, anatomista, músico e pensador. Entre suas obras mais célebres estão Mona Lisa e A Última Ceia (estudada neste trabalho), que revelam seu domínio técnico e profundidade emocional. Faleceu aos 67 anos, em 2 de maio de 1519, na cidade de Cloux, na França, e deixou um legado imortal como símbolo do espírito renascentista e da união entre arte e ciência.
A Última Ceia foi encomendada pelo duque de Milão, Francesco Sforza, por volta de 1497, com o intuito de decorar uma parede no refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, na mesma cidade. O projeto foi atribuído a Leonardo da Vinci, que iniciou os esboços e supervisionou pessoalmente a execução da pintura. A obra foi realizada com a técnica de têmpera e óleo sobre um preparo em gesso, uma escolha inovadora para a época, já que o afresco era a técnica predominante no contexto vigente.
Com dimensões imponentes – 8,8 metros de largura por 4,6 metros de altura – a obra reflete a genialidade técnica e emocional do artista, que buscou retratar os apóstolos de maneira original, de modo a enfatizar as reações emocionais intensas de cada um ao ouvir o anúncio da traição de Judas. O gesto de horror, cólera e desespero é capturado com profundidade e exatidão, enquanto a transição de sentimentos dos discípulos é retratada de forma sutil, desde o espanto até a repulsa de Judas. O apóstolo João é retratado com uma expressão de serenidade, refletindo sua condição de “discípulo amado”.
A pintura também revela a interpretação do artista da Sagrada Escritura, com a figura de Cristo como irradiadora de uma luminosidade que simboliza sua divindade e a transcendência do momento da última Ceia. Ao fundo, janelas simuladas permitem que a luz do céu oriental penetre na cena, detalhe criador de um vínculo simbólico com a Jerusalém espiritual representada pelas montanhas que se erguem sob seus pés.
Nesse sentido, após a descrição da obra e para sua melhor compreensão, é preciso também discorrer acerca do contexto em que ela se insere, sobretudo sob o recorte artístico: o Renascimento. Nesse período, principalmente na Itália, segundo a obra A Cultura do Renascimento na Itália, de Burckhardt (1991), o movimento cultural foi um fenômeno amplo – político, social, intelectual e também artístico – marcado por mudanças significativas, como a descoberta da subjetividade. Além disso, sob o humanismo, o homem passou a ser o centro de todas as ações públicas e privadas, e o resgate dos modelos greco-latinos reformulou tanto a vida civil quanto a produção de arte. Outra grande mudança foi a laicização dessa produção: além das encomendas eclesiásticas, as cidades-Estado passaram a contratar artistas para obras cívicas, como afrescos em salas de conselho ou estátuas em praças, de forma a fortalecer o conceito de artista-cidadão, cuja reputação dependia menos da Igreja e mais do reconhecimento público em variados ambientes urbanos.
A revolução renascentista, no campo das artes, valorizou não apenas a habilidade técnica, mas a criatividade e originalidade do artista, elevando-o a um modelo de homem universal capaz de dominar artes, letras, ciências e até esportes em busca da perfeição individual. A partir do Quattrocento (final do século XV), a investigação científica – especialmente o estudo da anatomia – guiou os pintores a representar o real com precisão, equilíbrio, proporção e harmonia clássicas em lugar dos contornos rígidos medievais. Ademais, o uso de novas técnicas, como o sfumato e o chiaroscuro, conferiu profundidade e naturalidade inéditas às formas pela mescla de luz e sombra.
No Alto Renascimento (Cinquecento), mestres como Leonardo da Vinci, Rafael e Michelangelo concretizaram mais ainda as mudanças acima descritas, ao plasmarem ideais de individualidade e erudição em obras de equilíbrio clássico e monumentais, motivados pelos ideais do classicismo e do humanismo. Esse período não foi apenas uma conquista estética, mas uma verdadeira revolução antropológica, que elevou o artista a sujeito autônomo – cujas criações refletiam ao mesmo tempo o legado da antiguidade e as demandas políticas e sociais de uma Itália emergente como nação de criadores e pensadores.
Essa passagem do artesão anônimo das guildas medievais para artista autônomo, dotado de personalidade e prestígio social, rompeu com o anonimato técnico e fez que os artistas assumissem um papel de “indivíduo espiritual” (Burckhardt, 1991, p. 81). Esse fenômeno, segundo as aspirações do humanismo florentino – que mescla reverência aos clássicos, criatividade e ambição pessoal – reposicionou o artista como protagonista de seu tempo e inaugurou a noção moderna de gênio. Assim, nascia o uomo singolare: não mais o artesão anônimo, mas esse gênio criador, original e solitário, cujo nome se eterniza junto às suas criações. Da Vinci demonstrou esse ideal ao combinar rigor empírico e inventividade: realizava dissecações, estudava o voo das aves e as leis da ótica para conferir às suas telas realismo e poeticidade. Inventou o sfumato – contornos esmaecidos em sombras suaves – para livrar as figuras de rigidez, fazendo-as “respirar” na pintura.
A estética hegeliana
Diante do exposto acerca da arte renascentista e, mais precisamente, da obra A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, é preciso – a fim de realizar uma análise estética dessa obra – adotar um parâmetro teórico-filosófico. Nesse sentido, escolhemos a teoria estética segundo o pensamento adotado pelo filósofo alemão G. W. F. Hegel (1770 – 1831). Portanto, serão abordados, a seguir, os principais pressupostos do pensamento hegeliano acerca do belo e da arte.
Antes de tudo, vale lembrar que as abordagens estéticas variam bastante de acordo com a referência adotada. Alguns filósofos dignificam o aspecto sensível, como Hume, enquanto outros exaltam a beleza natural, como Kant, e outros ainda enfatizam mais o belo artístico, como Hegel, parâmetro teórico desta análise.
Embora Hegel tivesse reservas em utilizar a palavra “estética” – ele o faz “[…] por não ter outra melhor e porque o termo já entrou em uso. A expressão ‘filosofia da arte’, em sua opinião, é de fato mais adequada” (Jimenez, 1999, p. 167). Com efeito, ele propôs realmente um estudo filosófico sobre a arte, de modo a contemplar sua evolução histórica, de acordo com o seu sistema de pensamento. Diante disso, urge tratar propriamente de sua compreensão estético-filosófica, intrinsecamente ligada ao todo de sua filosofia.
Hegel possui grande consideração pelo belo na arte. No entanto, seu ponto de partida não é a obra de arte em si, mas a ideia de “Belo”. Dessa maneira, ele próprio afirma que “Aceitamos pois, no seu pleno significado, as palavras de Platão: ‘Deve considerar-se, não os objectos particulares qualificados de belos, mas o Belo’” (Hegel, 1993, p. 7). Esse é um pressuposto fundamental para o filósofo, pois é esse princípio ou ideal de “Belo” que guiará sua análise da “[…] variedade, a multiplicidade, as diferenças, as múltiplas e diversas formas e figuras da arte que, então, se vêm a apresentar como produções necessárias” (Hegel, 1993, p. 8).
Dessa maneira, é necessário discorrer, segundo o sistema filosófico hegeliano, a respeito da superioridade do belo artístico sobre o belo natural. Para Hegel, o Espírito é superior qualitativamente à natureza, e tudo aquilo que é influenciado ou marcado pelo elemento espiritual será, por conseguinte, superior àquilo que é somente natural. É nessa linha de pensamento que reside a importância da “filosofia da arte” para Hegel. O filósofo alemão diz:
Segundo a opinião corrente, a beleza criada pela arte seria muito inferior à da natureza e o maior mérito da arte residiria em aproximar as suas criações do belo natural. Se, na verdade, assim acontecesse, ficaria excluída da estética, compreendida como a ciência unicamente do belo artístico, uma grande parte do domínio da arte. Mas contra essa maneira de ver, julgamos nós poder afirmar que o belo artístico é superior ao belo natural por ser um produto do espírito que, superior à natureza, comunica esta superioridade aos seus produtos e, por conseguinte, à arte; por isso é o belo artístico superior ao belo natural. Tudo quanto provém do espírito é superior ao que existe na natureza (Hegel, 1993, p. 2).
Essa compreensão tem igualmente, entre seus efeitos, um ponto de vista acerca do objetivo final da arte, que não seria uma simples imitação da natureza, como Aristóteles afirmara anteriormente, mas sim o deleite da alma e do espírito humano, uma livre expressão do belo e da vida do espírito. Ou ainda, conforme as palavras de Jimenez (1999, p. 168), pode-se concluir que “Uma das conseqüências desta superioridade incontestável do espírito é que a arte não poderia ter como finalidade a imitação da natureza. […] Ora, a finalidade da arte não é a de satisfazer a recordação, mas a de satisfazer a alma, o espírito”. Hegel mesmo argumenta que
Em suma, é missão da arte apreender a existência e apresentá-la como verídica nas suas manifestações fenomenais, quer dizer, no acordo dela com um conteúdo coerente consigo mesmo e possuidor de um valor próprio. A verdade da arte, não é, pois, a da exactidão pura e simples a que se reduz a chamada imitação da natureza (Hegel, 1993, p. 94).
Nesse sentido, é importante ressaltar que
[…] existe em Hegel esta inquebrantável certeza – ou esta “crença” – de que o espírito humano é ele mesmo uma parcela de um espírito que o ultrapassa: um Espírito absoluto rege o conjunto do pensamento e da atividade humanas e se desdobra ao longo da história (Jimenez, 1999, p. 169).
Assim como a religião e a filosofia, a arte, conforme Hegel, é uma forma de exprimir as maneiras pelas quais o Espírito supera as contradições da história. Tal superação se realiza de maneira concreta na evolução da história, em muito graças à manifestação do belo nas obras de arte. Dessa forma, “Em Hegel, o belo é a própria realidade concreta, apreendida em seu desdobramento histórico. Quando esta realidade toma a forma sensível do belo artístico, ela determina o Ideal do belo artístico” (Jimenez, 1999, p. 171). Essa manifestação do Espírito por meio da arte se realiza precisamente através das obras artísticas, reunidas por ele em três grandes formas particulares ao longo da história: a arte simbólica, a arte clássica e a arte romântica.
A arte simbólica, notadamente arte oriental, é um estágio primário, em que há desarmonia entre matéria e espírito: espiritualmente pobre, mas abundante de matéria, realizada num acabamento mais rústico e com a presença de formas monstruosas e antropomorfizadas. Por sua vez, a arte clássica, produzida na antiguidade greco-romana, apresenta uma técnica mais apurada e uma espiritualidade mais profunda e refinada, expressa pela representação mais sofisticada do humano derivada da evolução do pensamento racional e abstrato. Dona de maior equilíbrio entre matéria e espírito, terá vários de seus elementos retomados no período da Renascença, como anteriormente exposto, inclusive na pintura de da Vinci. Por fim, a arte romântica “[…] é uma arte de interioridade absoluta e da subjetividade consciente de sua autonomia e de sua liberdade” (Jimenez, 1999, p. 174). Compreendida sobretudo na arte cristã, essa forma de arte apresenta o transbordamento da dimensão espiritual e dos valores religiosos, com a perda do equilíbrio da arte clássica e com a ultrapassagem das formas sensíveis. Em relação a isso, Hegel (1993, p. 173) afirma que
Quando […] a ideia do belo se concebe a si mesma como sendo o espírito absoluto e, por conseguinte, livre em si e para si, já ela não tem a possibilidade de se realizar plenamente por meios exteriores, pois só como espírito existe. Assim destrói ela a fusão entre o fundo interno e a manifestação exterior, que havia sido realizada pela arte clássica, e regressa a si mesma. E assim surge a arte romântica: como, em virtude da sua livre espiritualidade, o seu conteúdo exige mais do que lhe poderia dar a representação exterior e corpórea, a arte romântica mostra-se completamente indiferente à forma.
Há uma tensão de crescimento histórico constante da manifestação do Espírito, cada vez mais racionalizado. A arte, que é manifestação sensível da Ideia do belo artístico, não consegue mais cumprir sua finalidade, fato que constitui o conceito de “fim da arte”. O modo de fazer arte até então, para Hegel, acabou, de forma que a arte seguirá novos termos para tal. Ela cede seu espaço de manifestação do Espírito para maneiras mais elevadas, como a própria filosofia.
Hegel lembra que a arte serve para exprimir o absoluto. Mas o conhecimento que nos dá é, de longe, inferior ao da religião e da filosofia. Quando atinge seu grau supremo de espiritualização e de subjetivização – na arte romântica sobretudo – ela desaparece enquanto arte, criadora de obras, para ceder o lugar à filosofia (Jimenez, 1999, p. 181).
Por fim, o filósofo alemão considera cinco formas individuais de arte: arquitetura (mais relacionada à arte simbólica), escultura (à arte clássica) e as três ligadas, em sua plena existência artística, à arte romântica: pintura, música e poesia. Com base no foco deste trabalho, Hegel (1993, p. 349), propõe que a pintura “[…] faz da figura exterior a expressão total do interior que, no seio do mundo circundante, representa o absoluto não somente recluído em si mesmo, mas também na sua subjectividade espiritual […]”. Ainda sobre essa manifestação do espírito interior, o filósofo (1993, p. 445) afirma que “É com efeito na pintura que pela primeira vez se afirma o princípio da subjectividade ao mesmo tempo finita e infinita, o princípio da nossa própria vida, e contemplamos nas obras dela tudo o que vive, actua e se agita dentro de nós”.
Portanto, o pensamento estético hegeliano – expresso acima e constituído conforme o seu sistema filosófico – apresenta bases suficientes para analisar o belo artístico presente nas obras de arte. Dessa forma, seguir-se-á este texto com a análise do quadro A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, a partir dos pressupostos expostos anteriormente.
Análise estética
Ao serem consideradas a riqueza histórica e artística da obra estudada e a vastidão da teoria estética hegeliana utilizada para a sua análise, destacam-se dois pontos principais para o seu estudo estético, entre os muitos possíveis de serem tratados. Em primeiro lugar, serão abordadas a emotividade dos personagens da pintura em questão como expressão da subjetividade espiritual, conforme Hegel. E, em segundo lugar, será retratado o aspecto físico dessa obra na relação estabelecida entre luz e sombra, com ênfase no papel de espiritualização que ela fornece à arte, de acordo com o filósofo alemão.
A princípio, sobressai a expressividade das emoções. Na obra A Última Ceia, é notável a concepção de que a pintura é uma forma mais excelente – comparada à arquitetura e à escultura – em que se manifesta, com intensidade notória, a subjetividade do espírito por meio das expressões dos personagens representados. Cada discípulo expressa, por meio de gestos, da inclinação do corpo, do movimento das mãos e da posição do olhar, a grandeza da instituição da Eucaristia e também a inquietação diante do anúncio da traição, uma tensão entre a cena histórica e corporal finita e o drama espiritual e interior infinito. A paz e a serenidade de Jesus Cristo, em oposição ao tumulto das emoções dos apóstolos, se encarnam no que Hegel reconhece como a verdadeira potência da pintura em relação à expressão da alma, que muitas vezes não é demonstrada na escultura: “[…] O substancial da pintura não é representado, como o da escultura, por um indivíduo condensado na sua imobilidade, mas encontra-se por assim dizer espargido sobre a comunidade inteira que ele penetra e anima” (Hegel, 1993, p. 446). Na obra de da Vinci, nota-se esse espargimento do espírito, dado na totalidade do grupo. Jesus aparece ao centro, com calma e com o equilíbrio da forma triangular que o envolve, e os discípulos, por sua vez, estão dispostos em três grupos, de modo a manifestar o impacto da declaração do mestre com expressões e gestos únicos. Não há rigidez, mas uma tensão viva, um movimento interior traduzido em forma pictórica. A cena retratada na obra demonstra uma unidade orgânica que transcende, de forma espiritualizada, a reunião de figuras humanas e o divino, e é essa capacidade da pintura que Hegel destaca:
[…] a pintura torna-se capaz de exprimir a vida e o movimento, que a escultura, em razão, tanto do seu conteúdo como do seu modo de representação, era obrigada a negligenciar, e encontra à sua disposição numerosos temas e uma grande variedade de modos de representação que faltaram à escultura (Hegel, 1993, p. 446).
A preciosidade e riqueza do movimento, assim como a diversidade interior nos rostos e gestos de da Vinci, confirmam essa observação. A pintura, segundo Hegel, possui o dom de fundir o exterior, que é a aparência, com a vida subjetiva. Em A Última Ceia, o plano pictórico, ao mesmo tempo que é espaço físico, é também atmosfera psíquica. A janela ao fundo se revela como símbolo da transcendência, e a mesa que une e separa as figuras bíblicas criam a ambiência que é o reflexo do drama íntimo em curso.
Ademais, Hegel, diz que: “[…] a superioridade do talento afirma-se, não da pintura da beleza sensível, da forma, mas na expressão da vida profunda, espiritual, e é isso que faz a perfeição do quadro, que o torna uma obra-prima” (Hegel, 1993, p. 447). Tal “vida profunda” é perceptível no contraste retratado entre Judas, recolhido, sombrio, com o rosto semioculto, e os demais discípulos que expressam incredulidade, surpresa, dor e busca de mais explicações.
A obra não apenas narra uma cena bíblica, mas a transforma em símbolo da condição humana. Nela estão presentes a traição, a amizade, o medo, a fé, a dúvida, o que, para Hegel, constitui a verdade da pintura como arte do espírito. O ambiente arquitetônico na pintura, as paredes, assim como a luz que entra ao fundo, as linhas de fuga que convergem ao centro, estão em plena ordenação para reforçar a centralidade que é Cristo e também de todo o enredo que ocorreu nesse significativo dia. A harmoniosa ação entre o espaço e o espírito é tão perfeita que a cena transcende o tempo e permanece nos dias atuais como poder da arte pictórica. Conforme observa Hegel (1993, p. 447) sobre a capacidade da pintura, ela
[…] situa as suas figuras numa natureza exterior ou numa ambiência arquitectónica inventadas por ela própria, e sabe animar e vivificar este exterior a ponto de o tornar um reflexo da subjectividade e de criar um acordo e uma harmonia entre si e o espirito das figuras que nele evoluem.
Sua subjetividade aqui se faz forma, que se faz a expressão viva do espírito humano, bem como de seu caráter e individualidade. De fato, Hegel mesmo comenta sobre A Última Ceia e a representação de seus personagens, de modo a enfatizar que tais características
Não são ideais divinos ou deuses ideais, mas ideais humanos no mais alto grau de individualização, não são só homens tal como deveriam ser, mas ideais humanos tal como existem na realidade, homens aos quais não faltam nem a particularidade do carácter nem a participação desta particularidade no universal, que ocupa e penetra os indivíduos. São figuras deste género as que criaram Miguel Ângelo, Rafael e Leonardo da Vinci, este na sua célebre ceia, figuras donde emanam uma dignidade, uma grandeza e uma nobreza que não encontramos com frequência nas dos outros pintores (Hegel, 1993, p. 480, grifo nosso).
Ademais, outro ponto a se destacar na pintura de da Vinci que pode ser analisado segundo o pensamento estético hegeliano é a relação entre luz, sombra e obra. Diante disso, faz-se necessário abordar como o filósofo pensa esteticamente essa questão. Hegel (1993, p. 451) afirma que “Ora, o elemento físico essencial, utilizado pela pintura, não é senão a luz, esse factor de visibilidade dos objectos em geral”. Acerca desse elemento tão importante na pintura, ele continua:
A luz é o contrário da matéria grave, ainda em busca da sua unidade. Seja o que for que se possa dizer acerca da luz, o certo é que ela é de uma leveza absoluta, sem peso nem resistência, absolutamente idêntica e relativa a si mesma, enfim representa a primeira idealidade, a primeira auto-afirmação da natureza. Na luz, a natureza torna-se pela primeira vez subjectiva; é doravante o físico geral que, sem estar ainda particularizado nem encerrado num isolamento punctiforme, não rejeitou menos a objectividade e a exterioridade da matéria rude e se mostrou capaz de se abstrair da totalidade espacial e sensível desta. É graças a esta qualidade idealizante que a luz se torna o princípio físico da pintura (Hegel, p. 451).
Nesse viés, é possível afirmar que
Hegel deixa clara a idéia de que a luz responsável pelo fenômeno da pintura não é de fato a mesma luz que se pode considerar natural, aquela, por exemplo, que incide sobre uma folha de árvore deixando-se refletir o verde que comumente vemos. A luz que gera a pintura é muito mais uma luz espiritual, pois ela é capaz não apenas de refletir as cores e as formas dos objetos, mas de criar objetos em uma superfície onde antes nada mais existia além da mera superfície (Gonçalves, 2008, p. 46).
Hegel põe a pintura como uma forma de arte mais elevada do que a arquitetura e a escultura, pois nela o espírito se encontra mais desenvolvido em relação à matéria simplesmente (destaca-se a observação hegeliana da subjetivização da natureza presente na pintura, graças à luz). Por mais que Hegel se refira à pintura na sua plenitude dentro das formas de arte românticas e que a obra de da Vinci, segundo o contexto renascentista em que se encontra, retome importantes aspectos da arte clássica, é possível notar que a luz exerce nela papel importantíssimo, tanto na construção do seu enredo (altamente espiritual[1] no conteúdo e na apresentação) quanto na disposição das formas e personagens representadas.
Esse papel exercido pela luz, contudo, só é entendido plenamente quando posto em relação com a noção de sombra, definida como aquilo que não é iluminado. Hegel explica igualmente como o aspecto da sombra contribui para a maior espiritualidade das pinturas, como é o caso também de A Última Ceia. Tal fato se dá sobretudo pela superioridade do espírito sobre a natureza que é comunicada pelo efeito de luz e sombra nessa forma de arte:
Na pintura, pelo contrário, o claro e o escuro, com todas as suas gradações e os seus mais delicados matizes, fazem parte dos materiais de que o artista se serve e produzem a aparência artificial daquilo que a escultura e a arquitectura apresentam como real. A luz e as sombras, a manifestação dos objectos pela sua forma de iluminação, são provocadas pela arte, e não pela luz natural, que torna somente visíveis o claro e o escuro, assim como a iluminação, a obra realizada pela pintura. E é aí que reside a razão positiva, pela qual a pintura não tem necessidade das três dimensões (Hegel, p. 452).
Tais efeitos se dão, conforme característica muito presente na arte renascentista mencionada anteriormente, pelas técnicas do sfumato e do chiaroscuro empregadas pelo artista, que ressaltam a luz na sua relação com a sombra e confere alto grau de espiritualidade – nos termos hegelianos – à pintura em questão. Além disso, o referido método artístico empregado pelo pintor permite, igualmente, a ausência da terceira dimensão (ao contrário da arquitetura e da escultura) como elemento de maior espiritualidade e menor materialidade.
Dessa forma, Hegel ressalta a força da espiritualidade na pintura, sobretudo em comparação com a arquitetura e a escultura. Muitos elementos encontrados em A Última Ceia – como a expressão sentimental dos personagens e a presença e o jogo de luz e sombra – parecem reforçar esse forte aspecto espiritual na arte tão trabalhado pelo pensador. Pode-se dizer, com base no próprio Hegel e nos tópicos abordados anteriormente, que a pinturaestudada possui fortes elementos da arte romântica, sobretudo esse alto grau de espiritualidade, sem, no entanto, abdicar de importantes elementos materiais, os quais – conforme a arte do período da Renascença –, retomam diversas características da arte clássica. Portanto, A Última Ceia se configura não somente como uma das maiores obras de da Vinci e do Renascimento, mas também revela uma grande riqueza estética e espiritual nos termos hegelianos.
Conclusão
No presente artigo, a partir do estudo histórico-artístico sobre a obra A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, e dos conceitos teóricos de Hegel, ficou evidente que essa pintura, de uma forma geral, não foi apenas um dos marcos estéticos do Alto Renascimento, mas, para além disso, consagrou-se principalmente como um testemunho concreto acerca das profundas transformações antropológicas e sociais do período de sua produção.
Em primeira análise, sob a condução dos estudos de Burckhardt e Gombrich sobre a história da arte e da cultura, ficou claro que o Renascimento italiano gerou uma revolução maneira como o sujeito era visto: o artista, antes confinado ao papel de artesão anônimo, emergiu como indivíduo autônomo, dono de seus saberes e livre para expressar sua criatividade. Essa emancipação intelectual conferiu ao criador renascentista uma posição inédita na sociedade – ele passou a produzir não só imagens, mas influenciar a própria maneira de ver o mundo com técnicas realistas.
Em seguida, pôde-se ver como A Última Ceia, sob os diversos conceitos estéticos hegelianos, afirma a superioridade da pintura como uma forma de arte capaz de expressar mais plenamente o Espírito. O espargimento da interioridade humana entre os apóstolos, a sutileza psicológica de cada personagem, a expressão em cada rosto e a tensão dramática do anúncio da traição reúnem o fato histórico e o encontro íntimo em uma única cena. Aqui, a pintura revela-se como meio privilegiado de fusão entre ação histórica e expressão subjetiva.
Por fim, a análise do sfumato e do chiaroscuro – fundamentada na concepção hegeliana da luz – mostrou como da Vinci ultrapassa a mera representação: ao manipular luz e sombra na pintura, ele criou um espaço pictórico espiritualizado, dotado de leveza e densidade simbólica. Esse domínio técnico reforça o papel da arte como veículo de sentidos interiores, capaz de comunicar o invisível por meio do visível, o abstrato por meio do inteligível. Tudo isso se configura como uma fortíssima manifestação da subjetividade e do Espírito, pela sua superação da natureza realizada por ele por meio do elemento artificial da luz.
Dessa forma, A Última Ceia se apresenta simultaneamente como obra-síntese dos ideais humanistas – valorização do indivíduo e da experiência sensível – e como um dos marcos inaugurais da moderna subjetividade artística, gerando uma nova relação entre criador, obra e visualizador. Ao testemunhar esse diálogo entre Renascimento e Hegel, conclui-se que a pintura de da Vinci não é apenas uma expressão religiosa ou um apogeu técnico, mas um elo vital entre as concepções renascentistas sobre a subjetividade do artista e a manifestação espiritual do belo, posteriormente concebida por Hegel. Assim, encerra-se este estudo ressaltando o caráter de A Última Ceia: mais do que um painel ou do que uma pintura, é a manifestação do espírito histórico e da liberdade criativa, união de elementos clássicos e românticos que continuam a inspirar a reflexão estética e filosófica até os dias atuais.
Referências
ADONIAS FILHO. Os grandes personagens e a história Leonardo da Vinci. São Paulo: Tecnoprint S.A, [19–?].
BURCKHARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Tradução: Vera Lúcia de Oliveira Sarmento e Fernando de Azevedo Corrêa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1991.
GOMBRICH, Ernst Hans. A História da Arte. Tradução: Álvaro Ribeiro. Rio de Janeiro, LTC, 2011.
GONÇALVES, Márcia Cristina Ferreira. Hegel leitor de Goethe: Entre a física da luz e o colorido da arte. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos, [S. l.], v. 5, n. 8, p. 37-56, jun./2008. Disponível em: https://www.ojs.hegelbrasil.org/index.php/reh/article/view/132/11. Acesso em: 28 mai. 2025.
HEGEL, G. W. Friedrich. Estética. Tradução: Álvaro Ribeiro, Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores, 1993. (Colecção Filosofia & Ensaios).
JIMENEZ, Marc. O que é estética?. Tradução: Fulvia M. L. Moretto. São Leopoldo: Unisinos, 1999.
[1] A referência ao “espiritual”, aqui, concerne tanto à religiosidade retratada quanto ao próprio conceito hegeliano, tendo em vista que, na visão do filósofo, a religião também é uma forma de expressão do absoluto. Além disso, a própria apresentação do conteúdo da obra, como destacado neste trabalho, revela importantes traços de espiritualidade.