Santo Agostinho e João Guimarães Rosa
Guilherme A. Dias
Que eu vos conheça, ó Deus, como de Vós sou conhecido
(Conf. X, 1)
Deus é quem me sabe
(Rosa, 2021, p. 278).
Resumo: O presente artigo visa fazer uma comparação entre as Confissões de Agostinho de Hipona e Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa. A análise partirá de pontos concordantes entre o relato confessional de Agostinho e o relato narrativo de Riobaldo. Embora diferentes no estilo, época e espaço geográfico, tanto um quanto outro, diante da travessia da vida, se deparam com questionamento que são fundamentalmente humanos, tais como o mal, Deus e a mudança. O artigo não oferecerá uma análise detalhada, mas partirá de temas em comum nas duas obras.
Fazer uma análise detalhada de qualquer obra é tarefa que exige tempo e disposição. Tratando-se de clássicos de qualquer gênero, a tarefa torna-se ainda mais árdua. Tratando-se de comparar Confissões com Grande Sertão: Veredas, o trabalho torna-se praticamente impossível de ser feito com a profundidade que mereceria. No presente artigo nos esforçaremos por mostrar pontualmente alguns temas em comum entre essas duas obras tão diversas.
Já com a idade consideravelmente avançada tanto Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, quanto Agostinho de Hipona, nas Confissões, fazem, em forma de diálogo, uma revisão da própria vida, desde a mocidade, afinal a “mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir” (Rosa, 2021, p. 27). Em Grande Sertão: Veredas, Riobaldo parece estar em diálogo, o que acontece, porém, é um monólogo. Agostinho, da mesma forma, dialoga monologando com Deus.
Pontos em comum estão presentes nos relatos do filósofo patrístico dos primeiros séculos da era cristã e do ex-jagunço do início do século XX. Ambas as histórias tratam da travessia, da experiencia humana da vida, suas incertezas, suas lutas, seus erros e conversões, enfim, relatam as mudanças vivenciadas.
A mudança é a beleza da vida: “Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando” (Rosa, 2021, p. 26). Agostinho também reconhece a mutabilidade das pessoas, inclusive a própria, quando diz que o fruto de suas próprias confissões é “ver não o que fui, mas o que sou” (Conf. X, 4) e afirma ainda estar aberto às mudanças: “Revelarei, pois […], não o que fui, mas o que já sou e o que ainda sou” (Conf. X, 4, grifo nosso), demostra aqui uma evolução: aquilo que já sou; mas está ainda aberto à evolução: ainda sou.
Os relatos, embora possam ser considerados um diálogo (Agostinho dialoga com Deus e Riobaldo com aquele senhor sobre quem pouco ou nada sabemos), o interlocutor jamais responde nem interfere na narrativa. Sabemos apenas de determinadas expressões, denunciadas pelos narradores, especialmente o riso. Agostinho vê um Deus que está sempre a rir de suas escolhas erradas e de sua soberba: “Que fazia eu, quando me ria deles [dos santos], senão dar motivo a que Vós rísseis de mim?” (Conf. III, 10); “Vós ríeis das nossas resoluções” (Conf. VI, 14). Riobaldo, por sua vez, já no primeiro parágrafo, acusa também a risada de seu interlocutor: “O senhor ri certas risadas…” (Rosa, 2021, p. 13).
Os dois interlocutores, Deus e o senhor, também se assemelham em muitos pontos. O interlocutor de Riobaldo não é, evidentemente Deus, mas possui semelhanças: não sabemos quase nada sobre ele, apenas sabemos que existe e acompanha o desenvolver da história. Perguntando quem é Deus, na segunda parte de suas Confissões, Agostinho examina toda a criação e não encontra nelas a resposta, apenas respondem “foi Ele quem nos criou” (Conf. X, 6).
Riobaldo possui algumas definições de Deus: é paciência (Rosa, 2021, p. 21), é o que vem sem ninguém ver, que faz na lei do mansinho (Rosa, 2021, p. 27), que paga e repaga, cujos juros não obedecem medidas (Rosa, 2021, p. 141), enfim, é alegria e coragem, bondade adiante (Rosa, 2021, p. 279). Para Agostinho, Deus é a Verdade (Conf. X, 23), a Beleza (Conf. X, 34), a Justiça (Conf. X, 43).
Para Riobaldo, Deus é, além de tudo, uma espécie de segurança:
Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. (Rosa, 2021, p. 59).
Em Agostinho, Deus também representa a segurança da vida:
Olhei depois para as outras coisas e vi que vos deviam existência. Vi que tudo acaba em Vós, mas não como quem termina num espaço material. Vós sois Aquele que tudo conserva na Verdade como se tudo sustivésseis na palma da mão. Por isso todas as coisas são verdadeiras enquanto existem e não há falsidade senão quando se julga que existe aquilo que não existe.
Reconheci que cada coisa se adapta perfeitamente não só ao seu lugar, mas também chega a seu tempo. Reconheci que Vós – único Ser Eterno – não começastes a operar depois de épocas incalculáveis de tempo, porque todos estes espaços de tempo passados ou futuros não teriam passado nem viriam, se Vós, na vossa imutabilidade, não agísseis (Conf. VII, 15).
Ao contrário de um Deus que é bom, segue-se outra grande questão, que tem uma presença forte na reflexão e no relato de Agostinho: o mal. Por se ver diante da dificuldade de explicar a origem do mal, concordou com o maniqueísmo, acreditando na substancialidade do mal: “Parecia-me mais justo crer que não tivésseis criado nenhum mal do que acreditar que proviesse de Vós [Deus] a sua natureza tal qual eu a imaginava. Com efeito, o mal aparecia à minha ignorância, não como substância, mas como substância corpórea” (Conf. V, 10). Após sua conversão, porém, Agostinho compreenderá que o mal não possui substância, mas configura apenas uma falta do bem: “o mal é apenas a privação do bem, privação cujo último termo é o nada” (Conf. III, 7).
Riobaldo, com outras palavras, expressará a mesma convicção: “O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver” (Rosa, 2021, p. 59).
Ao relembrar que furtara algumas peras e que as jogara aos porcos, Agostinho confessa que nada mais o impeliu a fazer isto senão o puro desejo de cometer o delito: “todo o nosso prazer consistia em praticarmos o que nos agradava, pelo fato do roubo se ilícito […]. não havendo outro motivo para a minha malícia, senão a própria malícia. Era asquerosa e amei-a. Amei a minha morte” (Conf. II, 4). Riobaldo divagando sobre como é o inferno, afirma: “lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar” (Rosa, 2021, p. 49). O amor pela malícia, isto é o inferno.
O arrependimento é, na vida do homem, uma dimensão essencial, por isso, as duas obras aqui comparadas também passam por esse aspecto. É certo que o caminhar humano é composto também de tropeços e queda. Riobaldo tem essa certeza: “Todo caminho é resvaloso. Mas também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!” (Rosa, 2021, p. 279). Se, na convicção de Riobaldo, o homem mesmo é capaz de se levantar, na filosofia agostiniana, quem levanta o homem é o próprio Deus: “Caio miseravelmente, e Vós me levantais misericordiosamente, umas vezes sem sofrimento, porque resvalei suavemente; outras com dor, por ter caído desamparado no chão” (Conf. X, 34).
Quanto ao tempo, pelo menos em sua passagem, não há muito o que concordar ou discordar: não duvidamos que “todo futuro está precedido por um passado (Conf. XI, 11), em outras palavras, “tudo o que já foi, é o começo do que vai vir” (Rosa, 2021, p. 278).
Como todos os homens, há um determinado desejo de ir para um lugar ideal, fugir dos problemas. O local, geralmente inexistente, se apresenta às vezes como um local real idealizado às vezes como um local imaginário. Agostinho encarnou sua utopia em Roma, Riobaldo, sonhava com um lugar qualquer que lhe proporcionasse um pouco de paz.
Agostinho, ao experimentar os dissabores com os alunos em Cartago, “desejava partir para uma cidade, na qual, segundo me asseguravam os informadores, nada acontecia de semelhante” (Conf. V, 8), reconheceu, mais tarde, que “em Cartago detestava uma miséria verdadeira, apetecia, em Roma, uma felicidade mentirosa” (Conf. V, 8).
Riobaldo deseja a paz, porém, não sabe em que lugar a encontrar, apenas a deseja: “eu queria poder sair depressa dali, para terras que não sei, aonde não houvesse sufocação em incerteza, terras que não fossem aqueles campos tristonhos” (Rosa, 2021, p. 349).
Por fim, o que é a vida, o viver? Para Agostinho, “esta vida toda ela se chama tentação” (Conf. II, X, 32), por isso, “viver é muito perigoso” (Rosa, 2021, p. 21). As inquietações, tanto de Agostinho quanto de Riobaldo são também nossas próprias inquietações diante da vida: Estamos todos numa mesma travessia.
Referências
AGOSTINHO. Confissões. Petrópolis: Vozes, 2015.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2021.