Caio César Gomes Amora
Resumo:
Este artigo propõe uma reflexão antropológica sobre o sofrimento e o sentido da vida, a partir das contribuições de Viktor Frankl, Hans Jonas e Dom Edmar José da Silva. Com base na logoterapia, Frankl defende que o ser humano é movido por uma vontade de sentido, capaz de ressignificar a dor por meio da realização de obras, vivência de valores e enfrentamento digno do sofrimento. Sua abordagem amplia a compreensão da experiência humana ao integrar dimensões simbólicas, culturais e espirituais. Hans Jonas, por sua vez, questiona a imagem tradicional de Deus após o Holocausto, propondo um Deus autolimitado, que sofre com o mundo e confia ao ser humano a responsabilidade ética frente ao mal. A reflexão é aprofundada por Dom Edmar, que oferece uma perspectiva filosófico-cristã ao afirmar que o sentido da vida só pode ser sustentado por uma realidade permanente, como Deus, contrapondo-se ao niilismo e defendendo a esperança como força vital. O artigo integra essas visões para pensar a dignidade humana como resistência ao absurdo, fundada na liberdade, na responsabilidade e na abertura ao transcendente.
Palavras-chave: Sentido, Sofrimento, Esperança, Frankl, Antropologia.
INTRODUÇÃO
A questão do sentido da vida constitui uma das temáticas centrais da experiência humana, presente em diversas tradições filosóficas, religiosas e antropológicas. Em contextos contemporâneos, marcados por crises de valores, fragmentação de vínculos e crescente indiferença diante do sofrimento, essa busca revela-se cada vez mais urgente. A sociedade atual manifesta sintomas de esvaziamento existencial, refletidos em altos índices de angústia, depressão e perda de referências simbólicas. Nesse cenário, o sofrimento, muitas vezes visto como algo a ser evitado ou suprimido, pode ser reinterpretado como uma via legítima e profunda para a construção de sentido. O presente artigo propõe uma reflexão antropológica sobre a relação entre sofrimento e sentido da vida, a partir do pensamento de Viktor Frankl, Hans Jonas e Dom Edmar José da Silva. A obra de Viktor Frankl, desenvolvida a partir de sua experiência nos campos de concentração, apresenta a logoterapia como uma abordagem que compreende o ser humano como movido por uma vontade de sentido. Mesmo em situações extremas, é possível encontrar um propósito capaz de ressignificar a dor, sendo apontados três caminhos fundamentais: a realização de uma obra, a vivência de valores e a atitude digna diante do sofrimento inevitável.
Na sequência, são exploradas as contribuições de Hans Jonas, cuja reflexão teológica propõe uma nova imagem de Deus a partir da catástrofe de Auschwitz. Jonas rompe com a concepção tradicional de um Deus onipotente e justo, sugerindo uma divindade autolimitada, que sofre com a criação e que confere ao ser humano uma liberdade radical. Essa liberdade implica uma responsabilidade ética diante do mal e convida à revisão das imagens divinas e da autocompreensão humana.
Assim, o artigo busca articular essas perspectivas com o pensamento de Dom Edmar José da Silva, que analisa o sentido da existência a partir de uma abordagem filosófico-cristã. Em sua reflexão, apenas uma realidade permanente e transcendente, como Deus, pode sustentar de forma plena o sentido da vida. O autor propõe a esperança como resposta concreta ao sofrimento e como expressão da dignidade humana, mesmo em meio ao absurdo.
A partir da interlocução entre esses três autores, o artigo busca demonstrar como o sofrimento, quando assumido com liberdade e responsabilidade, pode tornar-se um espaço significativo de reconstrução existencial. A análise visa contribuir para a compreensão do sofrimento como dimensão essencial da condição humana e para o resgate da possibilidade de sentido em uma realidade muitas vezes marcada pelo vazio e pela desesperança.
DESENVOLVIMENTO
Viktor Frankl e a busca de sentido no sofrimento
A existência humana carrega em si a necessidade de encontrar um significado, sobretudo diante da dor. Viktor Frankl, psiquiatra austríaco e sobrevivente dos campos de concentração nazistas, desenvolveu uma reflexão existencial que parte da experiência do sofrimento como via de revelação do sentido da vida. Em sua obra Em busca de sentido – um psicólogo no campo de concentração, publicada originalmente em 1946, Frankl retoma a ideia nietzschiana que afirma: “quem tem por que viver aguenta quase todo como” (1991, p. 75), indicando que o sofrimento deixa de ser sofrimento no momento em que encontra um sentido. Para ele, o essencial não é a ausência da dor, mas a atitude assumida diante dela. O ser humano é capaz de suportar as circunstâncias mais adversas quando descobre um propósito pelo qual viver. Nesse contexto, afirma: “Não devemos esquecer nunca que também podemos encontrar sentido na vida quando nos confrontamos com uma situação sem esperança, quando enfrentamos uma fatalidade que não pode ser mudada” (Frankl, 1991, p. 101). Assim, a dor humana, por mais absurda que pareça, pode tornar-se um espaço fecundo de reconstrução existencial e afirmação do sentido da vida.
Dando continuidade a essa perspectiva, a logoterapia, abordagem desenvolvida pelo psicólogo, entende que a vontade de sentido constitui a principal força motivadora do ser humano. Essa concepção rompe com os paradigmas da psicanálise freudiana, centrada na busca do prazer, e da psicologia de Adler, voltada à vontade de poder. Frankl propõe que o homem não é apenas movido por impulsos ou instintos de dominação, mas pela necessidade de encontrar um propósito que transcenda o sofrimento e organize a própria existência. Ele afirma: “A logoterapia, ou, como tem sido chamada por alguns autores, a ‘Terceira Escola Vienense de Psicoterapia’, concentra-se no sentido da existência humana, bem como na busca da pessoa por este sentido” (Frankl, 1991, p. 92).
A esse respeito, a experiência nos campos de concentração revelou a Frankl que muitos prisioneiros sucumbiam não tanto pela dor física, mas pela ausência de um “porquê”. A resistência ao sofrimento, portanto, depende da postura interior do indivíduo diante da adversidade. Frankl observa: “Quando já não somos capazes de mudar uma situação […] somos desafiados a mudar a nós próprios” (1991, p. 101). Dessa forma, a logoterapia propõe uma reorientação do olhar humano para o futuro, rompendo com o autocentrismo neurótico e permitindo que o sujeito reencontre um sentido que o sustente mesmo nas situações mais extremas.
Além disso, a logoterapia encontra seu alicerce na noção de responsabilidade existencial. Para Frankl, a vida exige uma postura ativa diante da liberdade, compreendida sempre em relação com a responsabilidade. Nesse horizonte, ele formula o que chama de imperativo categórico da logoterapia: “Viva como se já estivesse vivendo pela segunda vez, e como se na primeira vez você tivesse agido tão errado como está prestes a agir agora” (Frankl, 1991, p. 99). Esse exercício imaginativo confronta o indivíduo com a finitude da vida e com o caráter irrevogável de suas ações, estimulando-o a refletir sobre o que faz de sua vida e de si mesmo. A proposta terapêutica, portanto, visa expandir o campo de visão do sujeito, para que ele se torne consciente do espectro de sentido em potencial que o cerca. O papel do logoterapeuta, conforme Frankl descreve, é similar ao de um oculista, não de um pintor. Enquanto o pintor transmite uma imagem de mundo como ele o vê, o oculista ajuda o paciente a enxergar o mundo como ele é, permitindo-lhe descobrir o sentido que se apresenta fora de si, e não apenas em sua interioridade (Frankl, 1991, p. 99).
Nesse sentido, a autotranscendência aparece como uma característica essencial da existência humana. Frankl observa que o ser humano sempre aponta para algo ou alguém além de si mesmo, seja uma causa a servir ou uma pessoa a amar. Ele afirma que “quanto mais a pessoa esquecer de si mesma – dedicando-se a servir uma causa ou a amar outra pessoa – mais humana será e mais se realizará” (Frankl, 1991, p. 100). A auto-realização, nesse contexto, não pode ser buscada diretamente, pois ela surge como consequência da dedicação a algo que transcende o próprio ego. Assim, o autor propõe que a vida adquire sentido por meio de três caminhos: a realização de uma obra ou ação, a vivência de valores e experiências significativas, e a atitude frente ao sofrimento inevitável (Frankl, 1991, p. 100).
Entre esses caminhos, destaca-se o papel do amor como uma via singular de descoberta do sentido da vida. Frankl afirma que “amor é a única maneira de captar outro ser humano no íntimo da sua personalidade” (1991, p. 100). O amor permite enxergar as potencialidades do outro, aquilo que ainda não foi realizado, mas que pode vir a ser. Essa relação não é meramente instintiva, mas profundamente existencial. Através do amor, a pessoa é capaz de despertar no outro as possibilidades mais autênticas de sua realização, e isso transforma o vínculo amoroso em uma experiência de profundo compromisso com o sentido.
Por fim, o terceiro caminho, talvez o mais desafiador, é o do sofrimento, conforme já destacado anteriormente. Frankl relata que mesmo nas situações mais adversas e sem esperança, é possível encontrar sentido. Ele narra o caso de um médico idoso que, após perder a esposa, mergulhou em profunda depressão. Frankl, em vez de consolar diretamente, propôs uma mudança de perspectiva: “Veja bem, doutor, ela foi poupada deste sofrimento e foi o senhor que a poupou dele; mas agora o senhor precisa pagar por isso, sobrevivendo a ela e chorando a sua morte” (Frankl, 1991, p. 101). A dor do luto, embora irreparável, pôde ser ressignificada a partir do reconhecimento do sacrifício contido na experiência da perda. Frankl enfatiza, portanto, que o “sofrimento de certo modo deixa de ser sofrimento no instante em que encontra um sentido, como o sentido de um sacrifício” (1991, p. 101).
É importante destacar, no entanto, que o sofrimento não é uma condição necessária para a descoberta do sentido. Ele só deve ser enfrentado se for inevitável. Quando possível, deve ser superado ou eliminado. O heroísmo não está em sofrer por si mesmo, mas em encontrar, mesmo na dor, uma razão para continuar. Como Frankl afirma, a principal preocupação da existência humana “não consiste em obter prazer ou evitar a dor, mas antes em ver um sentido em sua vida” (1991, p. 101).
Diante das variadas respostas humanas ao sofrimento, a logoterapia se destaca por propor técnicas singulares, como a “intenção paradoxal”, que desafia as abordagens convencionais, como propõe ao relatar o seguinte caso:
Um jovem médico me consultou por causa do seu medo de transpirar. Sempre que ele esperava uma emissão de suor, esta ansiedade antecipatória já era suficiente para precipitar a transpiração excessiva. Com a finalidade de romper este círculo vicioso, aconselhei o paciente a que, quando voltasse essa transpiração, deliberadamente mostrasse às pessoas o quanto ele conseguia suar. Uma semana depois ele voltou, relatando que sempre que encontrava alguém que nele provocava ansiedade antecipatória, dizia para si mesmo: “Antes eu só conseguia suar meio litro, mas agora eu vou despejar pelo menos cinco litros!” O resultado foi que, depois de sofrer desta fobia durante quatro anos, com uma única sessão ele foi capaz de se libertar da mesma permanentemente, em questão de uma semana. (Frankl, 1991, p. 108)
Esse relato revela mais do que a eficácia clínica da logoterapia. Ele evidencia como determinadas técnicas podem provocar uma ressignificação profunda das experiências corporais e emocionais, redirecionando a narrativa que o sujeito constrói sobre si. A escolha de encenar conscientemente o exagero do sintoma desloca o medo de lugar e redefine o poder que o corpo exercia sobre a vida social do indivíduo. No ponto de vista antropológico, trata-se de um mecanismo que reconfigura a subjetividade por meio de uma inversão simbólica, sugerindo que a cura não ocorre pela negação do sintoma, mas pela sua reintegração em uma nova forma de significação.
Essa abertura à significação, mesmo em meio ao sofrimento, remete a uma reflexão mais ampla sobre a responsabilidade do ser humano diante de sua própria existência, especialmente quando confrontado com os limites da racionalidade ou da cura. O sofrimento, neste caso, não se reduz a um evento fisiológico ou psíquico isolado, mas ganha contornos culturais e simbólicos, sendo atravessado por narrativas, crenças, memórias e expectativas sociais. A forma como o indivíduo lida com a dor, portanto, está vinculada à cultura em que está inserido e à maneira como essa cultura concebe o sentido da vida e da finitude, até mesmo no campo da espiritualidade.
A reflexão do autor sobre o sofrimento e o sentido, ancorada na liberdade responsável e na autotranscendência, abre espaço para considerações mais amplas sobre o papel da cultura e da espiritualidade na elaboração do sentido da existência. Ao deslocar a cura do campo puramente clínico para uma dimensão ético-existencial, Frankl aproxima-se de pensadores que também compreenderam a dor humana à luz de uma responsabilidade diante da vida e do outro. É nesse horizonte que se insere o pensamento de Hans Jonas, cuja meditação sobre Deus após Auschwitz e sobre a ética da responsabilidade diante do sofrimento humano oferece uma contribuição complementar e provocativa à busca de sentido em contextos adversos.
Hans Jonas e o conceito de Deus diante do mal
Como visto anteriormente, o sofrimento humano é uma das experiências mais profundas e universais da existência, capaz de evidenciar as crenças fundamentais sobre o divino. Quando confrontada com a dor extrema, especialmente em eventos de grande brutalidade como o Holocausto, a ideia de um Deus todo-poderoso, bom e justo torna-se objeto de intensa dúvida e reflexão. Sob a perspectiva antropológica, a figura de Deus não é uma entidade abstrata e distante, mas uma construção que emerge das vivências humanas, dos conflitos, das tragédias e das buscas por sentido diante do sofrimento. Assim, o sofrimento não apenas desafia o conceito tradicional de Deus, mas também revela a dinâmica entre a experiência humana e as formas de compreender o transcendente.
Nesse contexto, o pensamento de Hans Jonas oferece uma importante contribuição ao reconsiderar o conceito de Deus após Auschwitz. Sua proposta de um Deus autolimitado, que sofre junto com a criação, desloca o foco do divino do poder absoluto para a responsabilidade compartilhada entre Deus e a humanidade. Isso expõe a tensão entre liberdade humana e o mal moral, e reforça a necessidade ética de que o ser humano assuma um papel ativo na prevenção e no combate ao mal.
A experiência do sofrimento, conforme destacado por Viktor Frankl, revela o ser humano em sua condição mais vulnerável, expondo os limites da razão diante da dor e da finitude. No entanto, enquanto Frankl buscava um sentido existencial mesmo nos campos de concentração, a abordagem de Hans Jonas dirige-se à teologia: o sofrimento extremo não apenas desafia a existência individual, mas atinge em cheio as estruturas conceituais construídas em torno da ideia de Deus. Auschwitz, como símbolo do mal radical, impõe uma ruptura. A tradição religiosa, marcada por atributos como onipotência, bondade e justiça divina, torna-se insustentável diante da magnitude do horror. A questão que se impõe não é apenas “por que o sofrimento?”, mas “que Deus é esse que permite Auschwitz?”
Hans Jonas inicia sua reflexão reconhecendo o caráter especulativo de sua proposta: “o que tenho a oferecer neste discurso é um fragmento de teologia francamente especulativa” (Jonas, 2016, p. 17). Sua abordagem, entretanto, ultrapassa os limites da teologia sistemática, assumindo contornos antropológicos ao interrogar o modo como os seres humanos constroem e sustentam representações do divino diante da experiência do sofrimento extremo. A figura bíblica de Jó é evocada como contraponto: um homem que, mesmo diante de perdas e aflições, mantinha a confiança em um Deus justo e soberano. No entanto, diante do Holocausto, essa imagem se rompe. O que se revela é o colapso das categorias tradicionais que sustentavam a fé em um Deus onipotente, fiel e bom. A pergunta que emerge não é apenas teológica, mas antropológica: como um povo que historicamente se constituiu por meio de sua relação com o divino pode continuar a compreender-se após tamanha catástrofe?
Nesse contexto, Hans Jonas observa que as estruturas simbólicas e religiosas, que anteriormente ofereciam sentido à existência, revelaram-se insuficientes diante do extermínio sistemático de milhões de pessoas, inclusive crianças e bebês. De fato, o horror de Auschwitz desestabilizou os referenciais morais, teológicos e antropológicos tradicionais, o que exigiu a construção de um novo horizonte de compreensão. Além disso, a radicalidade do mal ocorrido naquele cenário rompeu com qualquer possibilidade de significação nos moldes conhecidos da fé. Como expressa o autor em um dos trechos mais impactantes de sua reflexão:
Nada disso serve mais para lidar com o evento para o qual Auschwitz tornou-se o símbolo. Nem fidelidade ou infidelidade, crença ou descrença, nem culpa ou punição, nem julgamento, testemunho e esperança messiânica, não, nem mesmo a força ou fraqueza, heroísmo ou covardia, provocação ou submissão tiveram ali um lugar. De tudo isso, Auschwitz, que também devorou as crianças e bebês, nada sabia; por nada disso (com exceções), o trabalho, como o de máquinas de uma fábrica, teve lugar. (Jonas, 2016, p. 20)
E, ainda afirma:
Não pelo amor de sua fé, as vítimas morreram (como morreram, afinal, as “Testemunhas de Jeová”), nem por causa de sua fé ou por qualquer autodeclarado desvio de seu ser como pessoas foram elas assassinadas. A desumanização pela absoluta degradação e privação precedeu suas mortes, nenhum vislumbre de humanidade foi deixado àqueles destinados à solução final, dificilmente um traço de dignidade foi encontrado nos espectros esqueléticos sobreviventes dos campos libertados. (Jonas, 2016, p. 20)
A tragédia provocada pelo nazismo ultrapassa não apenas os limites da linguagem, mas também os contornos da tradição religiosa. A morte em Auschwitz, nesse sentido, não foi consequência de escolhas morais nem castigo espiritual. Jonas insiste que as vítimas não morreram “pelo amor de sua fé […] nem por causa de sua fé ou por qualquer autodeclarado desvio de seu ser como pessoas foram elas assassinadas” (2016, p. 20). Além disso, antes mesmo da morte física, houve um processo sistemático e cruel de desumanização: “a desumanização pela absoluta degradação e privação precedeu suas mortes, nenhum vislumbre de humanidade foi deixado àqueles destinados à solução final” (Jonas, 2016, p. 20). Após esse processo, dificilmente um traço de dignidade podia ser reconhecido nos corpos consumidos pelo sofrimento que sobreviveram nos campos libertados. Diante disso, tais afirmações demonstram a urgência de repensar o humano não apenas como ente racional ou moral, mas também como um ser vulnerável, exposto ao absurdo e ao abandono.
Com a marca da ruptura histórica provocada pelo Holocausto, esse acontecimento impõe uma revisão profunda da concepção tradicional de Deus, ao mesmo tempo em que exige um novo olhar sobre a autocompreensão humana. Nesse sentido, a proposta teológica de Hans Jonas não se limita ao debate doutrinário, mas alcança uma dimensão antropológica fundamental: o sofrimento humano, ao não ser impedido por uma instância transcendente, passa a convocar a responsabilidade ética do próprio ser humano. Desse modo, Deus, nessa leitura, não é mais concebido como onipotente segundo os moldes clássicos, mas como um Deus que se autolimita no ato criador e que, por consequência, sofre junto ao mundo. Como afirma o autor: “A relação de Deus para com o mundo, a partir do momento da criação e, certamente, a partir da criação do homem nele, envolve sofrimento da parte de Deus” (Jonas, 2016, p. 25).
A liberdade humana, fruto dessa autolimitação divina, é compreendida como uma abertura existencial tanto para o bem quanto para o mal. Nesse sentido, a ausência de intervenção em Auschwitz não pode ser interpretada como indiferença, mas sim como o preço da liberdade radical conferida ao ser humano. Por isso, diante do mal, não é mais possível aguardar uma salvação externa; ao contrário, cabe ao ser humano preservar a dignidade da vida, reconhecer a vulnerabilidade do outro e assumir, de forma responsável, o cuidado pela existência.
Assim, o problema de Deus diante do sofrimento humano torna-se também o problema do humano diante de sua liberdade. Liberdade esta que, longe de ser uma garantia de salvação, revela-se como responsabilidade intransferível diante do mal. O silêncio de Deus diante da barbárie ecoa como um chamado ético, uma interpelação ao agir humano. Se Auschwitz marca o colapso das certezas teológicas tradicionais, também inaugura a necessidade de um novo paradigma antropológico: um que reconheça a fragilidade da condição humana, mas que não abra mão da responsabilidade de responder ao sofrimento com dignidade e solidariedade.
O sentido da vida através da esperança
Caminhando para o fim deste artigo, é pertinente retomar as reflexões desenvolvidas até aqui. A análise do pensamento de Viktor Frankl, sobrevivente de campos de concentração, evidenciou a necessidade de reencontrar um sentido para viver, mesmo nas situações de sofrimento. Na obra Em busca de sentido, o autor parte de sua própria experiência de sofrimento extremo para afirmar que a vida possui um valor intrínseco que transcende a dor. Frankl observa que o ser humano é capaz de resistir quando encontra um “para quê” que justifique sua existência. Sua proposta da Logoterapia fundamenta-se na premissa de que a busca de sentido é a motivação primária da vida humana. Assim, ainda que submetido a uma realidade absurda e cruel, o ser humano conserva uma liberdade interior que lhe permite escolher a atitude com que enfrentará essa realidade.
Nesse contexto, a reflexão proposta por Hans Jonas permite compreender com maior profundidade a gravidade da crise ética e teológica provocada pelo Holocausto. Seu pensamento, profundamente marcado pela experiência de Auschwitz, propõe, portanto, uma reformulação radical da ideia de Deus, recusando a onipotência como atributo central da divindade. Diante disso, Deus seria limitado, pois o sofrimento extremo de inocentes durante o extermínio nazista inviabiliza qualquer defesa plausível da ideia de um Deus todo-poderoso e sumamente bom. Assim, Jonas propõe uma imagem de Deus que se esvazia de poder em nome do amor e da liberdade concedida ao ser humano, o que, por sua vez, implica uma responsabilidade ainda maior pelo cuidado com a vida e com o mundo. Com efeito, essa responsabilização inaugura uma nova ética para o tempo pós-Auschwitz, centrada na urgência de preservar a dignidade da existência humana frente aos horrores do passado e às ameaças do presente.
De modo complementar, a convergência entre Viktor Frankl e Hans Jonas se dá no reconhecimento da vulnerabilidade humana e na afirmação de que, mesmo no mais profundo sofrimento, a vida pode e deve reencontrar seu sentido, seja pela via da responsabilidade ética, seja pelo compromisso com um significado maior. Essa síntese, portanto, evidencia a densidade antropológica das reflexões aqui propostas, nas quais o ser humano é compreendido como alguém que, mesmo privado de garantias absolutas, permanece capaz de ressignificar a própria existência por meio da liberdade, da ética e da esperança.
É justamente nesse horizonte que a contribuição de Dom Edmar José da Silva, que por muitos anos se dedicou ao ensino da disciplina de Antropologia Filosófica com notável maestria e domínio, se revela particularmente significativa, especialmente em sua obra recentemente publicada Provocações existenciais: a vida tem sentido?. Seu pensamento, nesse sentido, colabora diretamente para a concatenação das ideias refletidas neste artigo, aprofundando o debate sobre o sentido da vida à luz da condição humana marcada pela dor, pela finitude e pela abertura ao transcendente.
Em fronteira com a Filosofia da Religião, Dom Edmar desenvolve uma reflexão sobre o sentido da vida que dialoga com a angústia existencial da contemporaneidade e com as respostas que a fé cristã oferece. Para ele, “faz muita diferença ter ou não ter um sentido na vida” (Silva, 2025, p. 20), pois quem o encontra “possui motivação e esperança para viver, porque tem algo que o move para a frente, gerando entusiasmo e alegria” (Silva, 2025, p. 20).
Segundo o autor, o termo “sentido” remete à ideia de finalidade, valor ou direção. Questionar se a vida tem sentido é perguntar se ela possui “um norte, um rumo, uma direção precisa” (Silva, 2025, p. 20). Sua crítica ao niilismo é firme: este seria “o mergulho no nada da existência humana” (Silva, 2025, p. 23), posição da qual discorda veementemente. Em resposta, propõe um “princípio existencial básico”, segundo o qual “o sentido da vida vai perdurar na proporção em que durar o objeto ou a realidade na qual depositamos esse sentido” (Silva, 2025, p. 23). A partir dessa chave de leitura, evidencia-se que nem os bens materiais, nem os prazeres, tampouco as relações humanas podem sustentar plenamente o sentido da existência, por serem realidades instáveis e finitas.
Para Dom Edmar, somente uma realidade que não passa pode fundamentar de forma duradoura o sentido da vida. Essa realidade, para os que professam a fé cristã, é Deus: “somente ele não passa, somente ele permanece; ele é a única realidade estável no meio das instabilidades deste mundo contingente e efêmero” (Silva, 2025, p. 26). Ainda que sua argumentação parta de uma perspectiva confessional, ela permanece aberta ao diálogo com todos os que buscam um fundamento sólido para a existência. Como desafia: “os que não acreditam em Deus são desafiados a me mostrar outra realidade que contemple o princípio que norteou esta reflexão” (Silva, 2025, p. 26). Caso contrário, estarão sempre expostos ao risco de perder o sentido da vida quando as realidades provisórias em que o depositaram se dissiparem.
Apesar das rupturas, perdas e sofrimentos que marcam a trajetória humana, permanece, como afirma Dom Edmar, a possibilidade de recomeço. “Ainda bem que o ser humano é capaz de refazer o sentido da vida em qualquer etapa da sua existência” (2025, p. 26). Tal afirmação ressoa profundamente tanto em Frankl quanto em Jonas. Todos os três autores, cada qual a seu modo, partem da constatação do sofrimento e da ausência de garantias absolutas para afirmar a liberdade humana de reconstruir o sentido. A esperança, portanto, não está na fuga da dor, mas na coragem de enfrentá-la com responsabilidade, transcendência e fé.
Essa coragem, porém, não pode se confundir com delírio de auto-suficiência. Em sua obra, Dom Edmar adverte contra o “delírio da onipotência” que marcou a modernidade, ao endeusar a razão e desprezar as dimensões metafísicas e espirituais da existência. A razão, embora nobre, não é ilimitada e tampouco responde pela totalidade da vida humana.
Como recorda Blaise Pascal, citado por Dom Edmar: “o ser humano não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas um caniço pensante” (2025, p. 51). A grandeza humana reside, portanto, não em seu poder, mas na consciência da própria vulnerabilidade e na capacidade de, mesmo em meio à fragilidade, construir sentido, criar laços, produzir cultura e abrir-se ao mistério. Reconhecer-se como caniço pensante é, em última instância, recuperar uma imagem mais lúcida e equilibrada de si mesmo, capaz de acolher os limites sem negar o valor da razão, e de cultivar a esperança sem ilusão.
CONCLUSÃO
A partir das reflexões apresentadas, evidencia-se que a busca pelo sentido da vida constitui uma necessidade intrínseca à condição humana. Viktor Frankl, por meio da logoterapia, revela que mesmo em contextos de sofrimento extremo, o ser humano é capaz de encontrar propósito e significado, o que reafirma a dimensão profunda da existência que transcende o mero instinto de sobrevivência. Essa busca não se restringe a motivações superficiais, mas envolve um compromisso ético e uma liberdade interior que orientam a forma como o indivíduo enfrenta as adversidades.
A análise da teologia pós-Auschwitz desenvolvida por Hans Jonas amplia a compreensão desse fenômeno ao destacar a ruptura provocada pelo sofrimento humano diante do mal radical. A proposta de um Deus autolimitado, que sofre com a criação e concede liberdade absoluta ao ser humano, desloca o foco para a responsabilidade ética diante da vida e da dor. Essa perspectiva coloca em evidência que o sentido da existência não é dado de forma automática ou garantida, mas deve ser continuamente construído em um horizonte de liberdade e responsabilidade, especialmente diante das crises que desafiam as crenças tradicionais.
Por fim, diante dessa explanação acerca do sentido, vale ressaltar uma afirmação motivadora de Dom Edmar, digna de acolhimento e vivência: “A esperança nunca acaba, e sempre é possível refazer-nos com os destroços que restaram das nossas próprias cinzas” (2025, p. 29). Complementando essa perspectiva, uma citação do poema Recomeçar, de autoria anônima, frequentemente associado a Carlos Drummond de Andrade, oferece uma contribuição valiosa a ser interiorizada nos porões existenciais da vida humana: “Não importa onde você parou, em que momento da vida você cansou. O que importa é que sempre é possível recomeçar. Recomeçar é dar uma nova chance a si mesmo. É renovar as esperanças na vida e, o mais importante, acreditar em você de novo”. Logo, pode-se concluir que, em meio às ruínas e recomeços da existência, é na tensão entre limite e sentido que a humanidade encontra sua mais profunda dignidade, seja nos campos de concentração, em casa, no trabalho, na sociedade em geral, ou no seu interior psíquico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FRANKL, Viktor E.. Em busca de Sentido: um psicólogo no campo de concentração. 2. Ed. São Leopoldo: Vozes, 1991.
JONAS, Hans. O conceito de Deus após Auschwitz: uma voz judia. São Paulo: Paulus, 2016.
SILVA, Edmar José da. Provocações existenciais: sobre sentido, sofrimento e fé. Belo Horizonte: Paulinas, 2025.
RECOMEÇAR. [S. l.: s. n.], [s. d.]. Poema atribuído a Carlos Drummond de Andrade. Disponível em: https://progestaoead.files.wordpress.com/2010/03/recomecar.pdf. Acesso em: 23 set. 2025.