Edir Martins Moreira
Prólogo
Em grande parte dos balanços que se fazem do pensamento pós-moderno, ressalta-se, compensando a ruína das “grandes narrativas”, dos “mega-relatos” filosóficos, teológicos, sociológicos e outros, percebe-se o surgimento de um “canteiro de obras” entregue à liberdade e à criatividade das pessoas. Se por um lado amarga-se a falta de segurança e dos pontos de referência, por outro, aumentam os espaços limpos para novas construções.
Sendo assim, o filósofo é solicitado a deixar os jargões fáceis, os sistemas decorados, para ir construindo seu próprio pensamento com abundância de elementos acessíveis. Se o risco de errar cresce, o fascínio da aventura entusiasma.
A proposta desta reflexão é analisar a abertura de horizonte proporcionada pelo pensamento nietzscheano tomando como base para reflexão uma frase dente seus fragmentos póstumos: “Só na criação há liberdade” (verão de 1883). Seu pensamento se dá de forma livre possibilitando um distanciamento dos fundamentos seguros, das leis pré-estabelecidas, ambos aprisionados ao calculismo da ratio. Ele considera a ratio (Metafísica / Religião) como dispositivos lógicos já circunscritos num sistema arque-teleológico. Porém, perceber-se-á que não é mais possível uma postulação segura de tais conceitos (arqué e telos), que conduzem a uma reflexão metafísica.
Nietzsche critica esse fechamento da ratio e mostra que, com a “Morte de Deus”, e conseqüentemente, a morte dos valores e da própria metafísica, não é possível mais adotar a posição aceita pela tradição, mas, parece que a alternativa é assumir o niilismo, levando em conta o devir, o acaso, a tragicidade da vida humana.
Por isso, o pensamento de Nietzsche torna-se instigante, problematiza a postura ética do homem após a dissolução de uma metafísica que impunha um fundamento absoluto para regrar o agir humano. Nietzsche se apresenta por vezes polêmico, por sugerir uma radicalidade do sujeito em relação à sua liberdade. Segundo ele, cada um é responsável por sua própria vida e encarregado de criar valores que a promova e não a aniquile. Nesse sentido, não há um caminho pré-estabelecido para seguir, mas cada um faz seu próprio caminho.
1. O anúncio da “Morte de Deus”: pressuposto para a liberdade plena
Anunciar a “Morte de Deus” é o pressuposto que motiva as reflexões afirmativas e críticas do pensamento nietzscheano (MACHADO, . 1994, p. 22). Não se trata de afirmar que Nietzsche “matou Deus”, mas um impiedoso diagnóstico de sua época, apresentando uma ausência explícita de Deus no pensamento e nas práticas do homem. Na obra A gaia ciência, Nietzsche apresenta o “louco” numa praça pública com uma lanterna acesa em pleno dia e gritando sem parar: “Procuro Deus! Procuro Deus!” (GC, § 125, p. 129) E isso ocasionou diversas reações, visto que muitos que ali estavam não acreditavam em Deus. “‘Estava perdido?’ – dizia um. ‘Será que extraviou como uma criança?’ – perguntava o outro. ‘Será que se escondeu?’ ‘Tem medo de nós?’ ‘Embarcou? Emigrou?’ – assim gritavam e riam todos ao mesmo tempo” (GC, § 125, p. 129). No entanto, o “louco” pôs-se no meio deles e dizia enfaticamente:
‘Para onde foi Deus?’ – exclamou – ‘É o que vou dizer. Nós o matamos – vocês e eu! Nós todos, nós somos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu uma esponja para apagar o horizonte? Que fizemos quando desprendemos esta terra da corrente que a ligava ao sol? Para onde vai agora? Para onde vamos nós? Longe de todos os sóis? Não estamos incessantemente caindo? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima e um abaixo? (…) Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matamos! Como havemos de nos consolar, nós, os assassinos entre os assassinos! O que o mundo possuiu de mais sagrado e de mais poderoso até hoje, sangrou sob nosso punhal – quem nos lavará desse sangue? Que água nos poderá purificar? Que expiações, que jogos sagrados seremos forçados a inventar? (GC, § 125, p. 129)
Anunciar a “Morte de Deus” significa dizer que o homem matou Deus, conseqüentemente desvalorizando a Metafísica, a Teologia e assumindo o ponto de vista antropológico, centralizado no sujeito. Com a “Morte de Deus” morreram todos os demais valores concernentes ao conceito de Deus. Convencendo-se, então, de que Deus morreu, o homem pode abrir-se livremente às novas possibilidades. A partir desta constatação, tudo deve ser reavaliado. A “Morte de Deus” é a grande oportunidade para se valorizar a vida na sua tragicidade, espontaneidade, criatividade e liberdade.
Morrendo Deus e todos os valores tradicionais, surge um novo perfil de homem: forte, determinado, que respeita a própria vontade, aberto à vida. Ele é um sujeito que não se deixa conduzir pelo “tu deves”, mas se conduz pelo “eu quero” (ZA, “Das três metamorfoses”, p. 41). O valor maior agora é a vida livre, libertada das amarras da razão e da religião, criadora e orientadora de si mesma.
De fato, essas primeiras conseqüências, contrariamente ao que se poderia talvez esperar, não nos aparecem de forma alguma tristes e sombrias, mas, pelo contrário, como uma espécie de luz nova, difícil de descrever, como uma espécie de felicidade, de alegria, de serenidade, de encorajamento, de aurora… De fato, nós, filósofos e ‘espíritos livres’, sabendo que ‘o Deus antigo está morto’, nos sentimos iluminados de uma nova aurora. (GC, § 343, p. 206)
Ao decretar a “Morte de Deus”, decreta-se também a morte dos valores absolutos, supremos. Morrendo Deus, os valores da moral igualitária são transmutados, esta é a primeira condição para o surgimento do “Outro-Homem”, o transvalorador por excelência.
1.1. O niilismo
Proclamar a “Morte de Deus” é decretar o fim da moral tradicional e automaticamente promover o advento do niilismo. Na obra Vontade de potência, esta transformação é apresentada através da depreciação dos valores supremos (VP, § 2, p. 86). Trata-se agora de viver sem Deus e sem os referenciais oferecidos pela Metafísica e pela Moral tradicional. Para Nietzsche, tanto a moral intelectualista socrática quanto a metafísica platônica popularizada pelo cristianismo, são movimentos niilistas, pois são tendências da vida que visam o nada, ainda que durante muito tempo, tenham mascarado este nada com a aparência de ser supremo. Deus era apenas a máscara do nada (ZILLES, 1991, p. 174). Então, uma Moral anteriormente pensada com remédio contra o niilismo, mostra-se como origem do próprio niilismo (ZILLES, 1991, p.175) [*].
O homem é constantemente instigado a dar um sentido a tudo o que acontece, porém, muitas vezes, não encontra o sentido almejado e acaba por desencorajar-se e por desistir desta busca. Aqui reside uma das principais causas do niilismo: a decepção por não alcançar um fim previsto, um sentido para muitos acontecimentos devido ao “eterno vir-a-ser” da vida. Por conseguinte, assumir uma postura niilista significa reconhecer o desperdício dessa força, a tortura dessa busca “em vão” (VP, § 5, p. 88); significa transvalorar os valores extirpando a violência da imposição, respeitando as diferenças e o curso natural dos acontecimentos, nem sempre explicados pela razão.
Outros filósofos contemporâneos, como o italiano Vattimo, inspiram-se na filosofia de Nietzsche para conceber o niilismo numa perspectiva positiva. Segundo Vattimo, o niilismo é a saída para o pensamento contemporâneo, pois, tomando o niilismo como um “deixar-ser”, ele impulsiona o sujeito a viver livremente no sentido pleno de liberdade, isto é, assumindo os valores próprios da vida. Parece que o caminho é assumir a instabilidade, característica própria do pensamento contemporâneo, derivada do niilismo, que não possibilita um fundamento que aprisione a reflexão, mas trata-se de um pensar crítico em relação aos “sistemas” tradicionais.
Então, nota-se que, na verdade, o que interessa a Nietzsche é ultrapassar o niilismo, visto que, diante deste “caos da destruição de todos os valores tradicionais, só resta ao homem estabelecer novas metas a partir do eu que valora, que quer e que cria” (ZILLES, 1991, p.177). “Aí está a barca; voga ali talvez para o grande nada. Quem está disposto, porém, a embarcar para esse talvez? (ZA, “Das antigas e das novas tábuas”, § 17, p. 270)
2. A Vontade de Potência: impulso criativo
A expressão “Vontade de Potência” é, para Nietzsche, puramente simbólica, é o mais forte de todos os instintos. Trata-se de uma concepção de luta entre dois impulsos: o impulso de “mais” relacionado à vida, à potência; e o impulso de “menos”, direcionado à morte, à passividade (VP, “Prólogo” – Vontade de Potência, p. 63). Na verdade, a Vontade de Potência é o nome dado a uma vivência dinâmica e espontânea no constante devir da vida. O discípulo de Dionísio (Cf.: EH, “Prólogo”, § 2, p. 15) reivindica a necessidade da mudança, do vir-a-ser, reclama o processo permanente de aniquilamento e criação (MARTON, 1994, p. 13).
Nietzsche quer lembrar que não existe outra vida, como prega o cristianismo, por isso deve-se abandonar o além e voltar-se a este mundo, é urgente entender que eterna é esta vida tal como a vivemos, o que existe é um “eu” mergulhado nas ambigüidades próprias da existência, ambigüidades estas que devem ser assumidas no dinamismo da vida.
A idéia de que a vida enquanto Vontade de Potência é luta permanente, sem trégua ou fins possíveis, constitui uma suprema exaltação da existência. No fluxo desta existência, o ser humano deve respeitar e ser fiel à sua vontade, ao seu querer. “Viver? Significa ser cruel e implacável contra tudo o que em nós se torna fraco e velho” (GC, § 26, p. 62). O querer é criador, dinâmico e espontâneo. Ele humaniza o homem aprisionado por regras que brotam da razão ou da fé:
Vontade: assim se chama o libertador e o mensageiro da alegria. (…) ‘A não ser que a vontade acabe por se libertar a si mesma, e que o querer se mude em não querer’. Mas, irmãos, vós conheceis estas canções da loucura! Eu vos afastei delas quando vos disse: ‘o querer é criador’. Tudo o que ‘foi’ é fragmento e enigma e espantoso acaso, até que o querer criador declare: ‘mas eu o quis assim. Mas é assim que eu quero, e hei de querer assim’. (ZA, “Da redenção”, p. 191-192-193)
Vontade de Potência significa converter obstáculos em estímulo; é afirmar, com alegria, o acaso e a necessidade ao mesmo tempo; é dizer sim à vida, sem nenhuma meta a alcançar; a Vontade de Potência é desprovida de qualquer caráter teleológico, mas está presente constantemente no homem.
Certamente, assentir sem restrições a todo acontecer, a cada instante tal como ele se apresenta, é aceitar amorosamente o que advém, é dizer sim a este mundo vivido. Esta é uma nova maneira de pensar a vivência, como uma conduta criadora. A criação é uma atividade a partir da qual se produz constantemente a vida que, por sua vez, está em devir. Por isso, uma vez produzida, a vida deve ser reinventada:
De uma maneira ou de outra, não cessa de ser interpretada em função de novas intenções por um poder que lhe é superior, de se ver reconfigurada e reordenada para novo uso; que tudo o que acontece no mundo orgânico está intimamente ligado às ideais de subjugar, de dominar, e toda a dominação equivale a uma interpretação sucessiva, a um acomodamento da coisa, no qual o ‘sentido’ e a ‘finalidade’ que prevaleciam até o presente deveriam necessariamente serem suplantados ou totalmente extintos. (GM, “2° tratado”, § 12, p. 73)
Então, viver é sempre criar novas possibilidades. Mas o que é criar? Para Nietzsche é colocar a realidade como devir. Para o criador, não há mundo já realizado. Criar não é buscar um lugar ao sol, mas inventar o próprio sol, como o pensador inatural afirma: “quero mais, não sou daqueles que procuram. Quero criar para mim meu próprio sol” (GC, § 320, p. 186).
O devir, afirmado pelo ato de querer, redimido pelo querer que quer com toda a sua vontade, transfigurado pelo poder da afirmação, é possibilidade de criação contínua. Para Nietzsche, os criadores valorizam o presente, a espontaneidade, o inesperado, o acaso (A, § 109, p. 84).
Nietzsche considera a vontade como algo complexo, por isso ele afirma que é preciso reconhecer os diversos tipos de sentimentos como ingredientes da vontade, inclusive o pensamento, pois em cada ato de vontade há um pensamento que manda. Acima de tudo, não se pode entender a vontade como simples pensar e mandar, mas algo que envolve sentimento, inclinação e afeto (BM, § 19, p. 34).
Segundo Marton, “a Vontade de Potência é o impulso de toda força a efetivar-se” (MARTON, 2000, p. 70), ela cria novas possibilidades, mas não se impõe como lei e nem se realiza num telos; na verdade, nela aparecem, ainda, subssumidos dois conceitos trabalhados pelo pensador desde o início de seus escritos, o apolíneo e o dionisíaco. Estes são aspectos que a expressão Vontade de Potência recobre, pois, enquanto o apolíneo é o que delineia, harmoniza, dá forma; o dionisíaco é o princípio que quebra as barreiras, rompe limites, dissolve o que se apresenta com violência.
Todo o ser sensível sofre em mim por sentir-se prisioneiro, mas meu querer chega sempre como libertador e mensageiro de alegria. ‘querer libertar’: essa é a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade. (ZA, “Nas ilhas bem-aventuradas”, p. 120)
É por isso que vive-se instintivamente uma vida elevada à mais alta potência, uma vida de perigos. Nietzsche quer que a humanidade se supere cada vez mais: “que a vossa vontade e a vossa decisão de ir além de vós mesmos constituam a vossa honra!” (ZA, “Das antigas e das novas tábuas”, § 12, p. 267). E todo homem possa livremente afirmar: “Eu quis assim (…) assim eu quero, e hei de querer” (ZA, “Da redenção”, p. 193).
2.1. O Outro-Homem
A partir do discurso sobre a Vontade de Potência, surge como conseqüência inevitável o Outro-Homem.
Eis, eu vos ensino o Outro-Homem. O Outro-Homem é o sentido da terra. Assim fale a vossa vontade: possa o Outro-Homem tornar-se o sentido da terra! Exorto-vos, ó meus irmãos, a permanecerdes fiéis à terra, e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supra-terrestres. (…) Na verdade, é o homem um rio turvo. É preciso ser o mar para receber um rio turvo, sem tornar imundas as suas águas. (ZA, “Prólogo”, § 3, p. 19)
Sendo assim, o Outro-Homem pode ser interpretado como uma nova cosmovisão, um novo modo de sentir, de pensar e de avaliar. No entanto, não se trata de uma mudança de valores, uma permutação abstrata, mas uma inversão no elemento do qual deriva o valor dos valores, é uma “transvaloração” e não uma “relativização” (DELEUZE, 1976 p. 136-137).
É imprescindível ressaltar que o Outro-Homem não se relaciona à figura de um homem superpotente ou dominador. Não se trata do homem selecionado pela “lei da seleção natural” de Darwin, ou, menos ainda, do tipo de raça superior que justificou o nazismo [**]. Na verdade, trata-se do sujeito que transvalora, isto é, o criador de valores que promove a vida e não a aprisiona; é aquele que “transcende” os homens fracos, considerados como “conceitos ambulantes” (OLIVEIRA, 2004, p. 94). Por isso, o profeta Zaratustra denuncia: “Vede: eu sou o anunciador do raio, sou uma pesada gota caída da nuvem; mas esse raio chama-se Outro-Homem” (ZA, “Prólogo”, § 4, p. 23).
No pensamento nietzscheano, o Outro-Homem é a caracterização de um modo de viver sem as correntes aprisionantes da moral racional. O Outro-Homem, constantemente, coloca-se além das determinações e cria situações e comportamentos que nascem da sua própria “de-cisão” [***].
Eis o meu gosto: não é um gosto bom nem mau, mas é o meu gosto; e não tenho que o ocultar nem dele me envergonhar. ‘Este é agora o meu caminho: onde está o vosso?’ Era o que eu respondia aos que me perguntavam ‘o caminho’. Que ‘o caminho, na verdade… o caminho não existe! (ZA, “Do espírito de pesadume”, p. 258)
Por conseguinte, o que se pretende anunciar é o Outro-Homem, sempre com uma renovada decisão mediante o devir. Sendo assim, não constitui um novo telos, mas a dissolução deste no eterno retorno e na transvaloração dos valores. O Outro-Homem não é um conceito abstrato ou metafísico, nem tampouco uma realidade utópica, na verdade, é o próprio homem no seu momento mais extraordinário. Daí emerge a proposta nietzscheana de que o Outro-Homem deve ser metamorfoseado em criança (ZA, “A hora silenciosa”, p. 201).
A criança, no pensamento nietzscheano, é símbolo de espontaneidade, representa o recomeçar instantâneo, uma roda que gira sobre si mesma. Assim como a criança cai para se levantar novamente, segundo Nietzsche, é necessário cair para erguer o novo. Para o homem alcançar a “outra-humanidade” é preciso perecer nele o que é infra-humano, a queda aqui é um bem e deve ser estimulada (ZA, “das antigas e das novas tábuas” § 20, p. 273). “Vamos! Coragem, homens superiores! Só agora vai dar à luz a montanha do futuro humano. Deus morreu: agora queremos que viva o Outro-Homem” (ZA, “Do homem superior”, § 2, p. 359).
Dessa forma, Nietzsche instiga o homem a fazer uso pleno da sua liberdade sem se deixar aprisionar pelas violentas regras. Beleza e tragédia, prazer e desprazer fazem parte do dinamismo da vida e todos são vivenciados simultaneamente: “Ao longe, ao longe, olhos meus! Quantos mares em torno de mim, quanto futuro humano na aurora!” (ZA, “A oferenda de mel”, p. 306).
Desfecho
A Filosofia não possui a verdade, mas procura fazer a experiência dela. A verdade possuída já é a sua própria interdição. Por isso, a Filosofia só se realiza quando abandona qualquer pretensão de posse e respeita um “pacto”, por vezes, silencioso entre pensamento e mundo vivencial.
Ao se tratar de pensamento nietzscheano, percebe uma abertura de horizontes. Nietzsche se apresenta instigante e polêmico, pois se propõe a denunciar todas as formas de fechamento de pensamento que se propunham totalizantes. Ele se apresenta como um anunciador de “boas novas”, porque percebeu que toda a tradição estava amarrada a violentas convenções (EH, “Por que sou um destino”, § 1, p. 115-116).
A grandeza de Nietzsche está em sua originalidade. O pensador alemão desenvolve um método dramático de reflexão, pois leva em conta a tragicidade própria da vida. Segundo ele, apolíneo e dionisíaco, necessidade e desejo, são constantes e não é possível negar nenhum deles. Eles se incitam mutuamente e tornam a vida dinâmica. A dinamicidade da vida exalta a idéia de abertura: a cada passo dado, abrem-se diante dos olhos inúmeras novas perspectivas. Por isso não é possível haver um discurso fechado, dogmático.
Ao constatar e anunciar que Deus morreu, Nietzsche chama a atenção para a centralidade do sujeito. Deus morreu, e com ele morreram os valores tradicionais. Conseqüentemente, também morreu o homem da tradição. Instaura-se o niilismo e, a partir dele, nasce também o Outro-Homem, que, pela Vontade de Potência, é capaz de amar a vida com todos os seus paradoxos. Livre das amarras das regras, este “novo-homem” tem diante de si a sua vida e, simplesmente, a aurora.
Pensar a partir de Nietzsche significa dissolver o que se impõe com violência. O que é o Bem? O que orienta a vida? O critério é o eterno retorno. Nietzsche propõe que se resgate a vivência concreta, sem lhe estabelecer um novo telos. No processo constante de construção e desconstrução, o mundo não é mais que um jogo, “brincadeira de criança”. A vontade potencializada, sob as características da embriaguez, da euforia, é o motor de todo o esforço de criação. Trata-se, realmente, de se afirmar com um querer autônomo.
“O caminho não existe” (ZA, “Do espírito de pesadume”, p. 258). Por conseguinte, faz-se necessário construí-lo, e isso é responsabilidade de cada um. O pensamento contemporâneo está imerso numa crise de fundamento, a humanidade mergulhada no desespero da ausência de sentido. Parece, então, que o exercício do filosofar é a alternativa para o homem contemporâneo, isto é, o filosofar entendido como capacidade de pensar criticamente a realidade que o circunda. O homem livre deve agir como a criança: com espontaneidade. Portanto, nesse jogo a que a vida está envolvida, o vencedor não é o que se prende às regras, mas o mais criativo em relação a elas.
Referências
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Trad. Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
MACHADO, Roberto. Deus, homem, super-homem. In: Kriterion, vol. XXXV, n. 89, jan-jul 1994.
MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. 2.ed. Belo horizonte: UFMG, 2000.
MARTON, Scarlett. Por uma filosofia dionisíaca. In: Kriterion, vol. XXXV, n. 89, jan-jul 1994.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário Ferreira dos Santos. Petrópolis: Vozes, 2007.
___________. A gaia ciência. Tradução de Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2006.
___________. A genealogia da moral. Tradução de Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, [s.d.].
___________. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro. Tradução de Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2006.
___________. Aurora. Tradução de Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2007.
___________. Crepúsculo dos ídolos: ou como filosofar a marteladas. Tradução de Carlos Antonio Braga. São Paulo: Escala, [s.d.].
___________. Ecce homo: como se chega a ser o que se é. Tradução de Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2006.
___________. Vontade de potência. Tradução de Mário D. Ferreira Santos. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.].
OLIVEIRA, Ibraim Vítor de. Arché e telos: niilismo filosófico e crise da linguagem em Fr. Nietzsche e M. Heidegger. Roma: PUG, 2004. (Tese de Doutorado em Filosofia)
VATTIMO, Gianni. Il soggetto e la maschera: Nietzsche e il problema della liberazione. 2.ed. Milano: Bompiani, 1996.
VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
ZILLES, Urbano. Filosofia da religião. São Paulo: Paulinas, 1991.
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[*] Percebe-se a coerência e objetividade do pensamento nietzscheano, pois desde a sua primeira obra O nascimento da tragédia, Nietzsche critica a forma de moral da tradição, e também, já na sua “última” obra Vontade de Potência, ele mostra que estes sistemas nada mais eram que formas de niilismo negativo.
[**] Cf.: OLIVEIRA, 2004, p. 94. Sabe-se que algumas das discrepâncias com relação ao pensamento de Nietzsche aconteceram devido à publicação póstuma de alguns dos seus escritos. A autora desse ato foi a sua própria irmã Elizabeth Föster Nietzsche, que fez algumas intervenções arbitrárias e tendenciosas na escolha de seus aforismos.
[***] OLIVEIRA, 2004, p. 94. A palavra “de-cisão” faz reportar ao beib zu de Assim falava Zaratustra, correspondendo à livre decisão do jovem pastor em morder a serpente, separando-lhe a cabeça. Interpretada como se lê no latim – de coedere – “de-cidir” é separar cortando, isto é, separar-se de todos os valores preestabelecidos, cortando a cadeia histórica que lhes servia de ligação. Cf.: Gianni VATTIMO, 1996, p. 195-210.
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Edir expressa aqui perfeitamente a tônica do niilismo de Nietzsche: “nada” significa possibilidade. A questão que incomoda é que esta não é uma filosofia para todos; o niilismo não é democrático. É para espíritos livres. Por isso a dificuldade de fazer advir o além-homem, resultando por vezes numa espécie de aquém-homem, isto é, num niilismo sem vontade, uma possibilidade sem potência.
Mas que bom perceber que espíritos livres há!
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A filosofia de Zaratustra é “a filosofia do futuro” como a força do instintivo. O solitário cria o mundo extramoral “para além do bem e do mal” e distingue-se nobremente da ralé amansada e doentia. Ele recusa a receita de “melhoramento” do animal, esse sintoma da doença do estômago e da nutrição da receita crista.
O forte sabe o quanto poder tem a forca para fraqueza debilitada no populacho, os maricas seguidores da decadência e os propagadores da moral do bem e do mal na célula orgânica na manutenção da ideologia de rebanho com o sacrifício público no objetivo de um ideal. A metafísica tem como causa o principio do ser. O maniqueísmo de Agostinho è dúvida temerosa. A cristandade tem a idéia de um soberano “democrático” anarquista, como o espírito francês da igualdade, esse pietista da ciência, assim como inglês da experiência, o russo ressentido. E o alemão? O alemão è esse metafísico kantiano ou o espírito absoluto hegeliano da comunhão do deus cristão com um aristotelismo e platonismo em abundancia. E quem são os americanos? Nada mais do que a soma de todas essas doenças misturadas com o espírito de salvação guerreira do capital, esse filhote do inglês liberal, na onda de expansão capitalista e dos ideais franceses da penúria compadecida de Rousseau ou da filosofia russa do rancoroso revoltado. A perspectiva de Nietzsche não é formar modelo político e inseminado na população, mas na experiência da vida em sua total potencia do vivo e do ativo corpo como vitalidade do sistema biológico. Viva a exaltação do bom, do saudável, do forte, do vigoroso no sistema biológico e da função física. Um nao para a libertação da moral crista è um sim para Dionísio com toda força em oposição a Apolo.
A vida no circulo do eterno retorno é força de mais forca na vida. Dionísio é o canto da vida trágica com paixão pelo destino. O “amor” como conceito tradicional è um querer o vazio em querer o vazio. A fórmula crista do tipo em amar o próximo è sintoma de fraqueza. Por que nao odear? Amar o inimigo? Odeia-o. Conceber alma? Viva o corpóreo e experimenta-o.
A vida em vigor para o pode e para o domínio è a expansão de vida como experiencia a partir do corpo. O “Amor” è a terapia decadente da arte moderna, esse sintoma doentio do homem padecido de causa. A moral crista cria inimigos para amá-lo. Já o “sobre-humano” è ele o seu próprio inimigo. Ele percorre um único caminho possível à vida no seu eterno retorno como a “imanência de toda matéria”. O seu anjo è impulso, desejo, vontade e anseio do viver em sua expressividade trágica: o amor fati, a festa, a loucura, o irracional, o ódio, o orgulho, o distinto, a diferença, a força, a superioridade, a corporalidade, a energia, a potencia, a positividade, a totalidade na celebração dionisíaca ao expansivo e a exercitação do corporal que cria o seu próprio valor com o desregramento moral para um regramento natural. Ele produz o seu próprio valor para mais valor. A negação do deus cristão não è por ato metafísico da retórica e dos parafusos dialéticos do discurso socrático, mas da experiencia individual do vivo que experimenta e cria a sua própria fortaleza. O “sobre-humano” não nega por negar, ele nega para afirmar. Negar a “razão” para afirmar a desrazao, negar a moral para afirma o imoral, negar a alma para afirmar o corpo, negar a doença (crença) para afirmar a saúde (existência, estética do oposto) e vir a ser o que é.