Bruno Viana Campos
Todo homem, mesmo que seja indiretamente, procura entender os paradigmas que regem a sociedade na qual vive. Compreendendo-os, ainda que em partes, ele terá uma visão mais profunda da realidade que o cerca. Nesse sentido, a importância de se pensar o conceito de esclarecimento – “que tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores” (DA*, p. 17) – surge da necessidade de compreender a época em que vivemos, marcada pelo avanço do pensamento tecno-científico, que dá ao homem meios cada vez mais eficazes para a dominação da natureza, mas que, paradoxalmente, elimina, com a primazia da razão instrumental, o caráter reflexivo do próprio pensamento, reduzindo o sujeito: “O eu integralmente capturado pela civilização se reduz a um elemento dessa inumanidade, a qual a civilização desde o início procurou escapar” (DA, p. 37).
Com efeito, pensar como o esclarecimento se articulou resultando em tal redução do sujeito (reificação) pressupõe análises críticas das entrelinhas do processo de desenvolvimento que a humanidade desencadeou para efetivar o projeto do esclarecimento, que era, em linhas gerais, colocar o homem como descortinador do desconhecido. Por isso, para dar continuidade a esta reflexão, escolhemos os autores frankfurtianos Theodor Adorno e Max Horkheimer, pois ambos elaboraram análises críticas sobre a sociedade contemporânea, fazendo uma releitura do termo esclarecimento.
Na visão de Adorno e Horkheimer, o conceito de esclarecimento é concebido com uma acepção muito mais ampla que o termo kantiano (aufklärung). Para os referidos filósofos de Frankfurt, o esclarecimento tem o intuito, em princípio, de dominar a natureza externa (havia uma manifestação de algo desconhecido cuja explicação fugia dos parâmetros ordinários de compreensão da realidade), ou seja, as forças naturais, colocando-as a serviço do seu dominador: “No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. […]. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo.” (DA, p. 17)
Assim, para dominar a natureza externa era necessário que o homem cunhasse um método que executasse com a máxima precisão possível o programa do esclarecimento, tudo isso em prol do dominador. Com esse intuito, não era a meta principal a busca por uma verdade que deixasse margem para o desconhecido; donde a necessidade do “operation” (DA, p. 18), do procedimento eficaz.
Por isso, nos primórdios da civilização, na tentativa de explicar o mundo e torná-lo menos hostil e mais propício para a dominação (ou efetivação da autoconservação), o homem cria os mitos como uma primeira forma de desvelamento do mundo: “os mitos […] já se encontram sob o signo daquela disciplina e poder que Bacon enaltece como o objetivo a se alcançar (o progresso)” (DA, p. 20). Porém, os mitos, embora fossem úteis para explicar o mundo – além de já serem produto do próprio pensamento, ou melhor, do esclarecimento – ainda não conseguiam eliminar por completo o medo dos homens (os mitos deixavam margem para o desconhecido), pois “do medo o homem presume estar livre quando não há nada mais de desconhecido”(DA, p. 26).
Desse modo, era necessário que o homem superasse o pensamento mítico, voltando-se para si mesmo, no sentido de que o uso de uma razão instrumental é muito mais eficiente para descortinar o mundo que o uso de uma razão produtora de mitos que deixava margem para o oculto [**]. Doravante, o homem encontra dentro de si mesmo o método necessário e eficaz para o domínio do mundo natural, ou seja, encontra a razão instrumental:
Mas, ao mesmo tempo, a razão constitui a instância do pensamento calculador que prepara o mundo para os fins da autoconservação e não conhece nenhuma outra função senão a de preparar o objeto a partir de um mero material sensorial como material para a subjugação. […]. Tudo, inclusive o indivíduo humano, para não falar do animal, converte-se num processo reiterável e substituível, mero exemplo para os modelos conceituais do sistema. O conflito entre a ciência que serve para administrar e reificar, entre o espírito público e a experiência do indivíduo, é evitado pelas circunstâncias. (DA, p. 73)
Com o auxílio da sua razão instrumental, o homem deve colocar em dúvida e, no mais das vezes, descartar qualquer coisa que extrapolasse o seu pensamento calculador. Assim, não só as potências míticas e naturais passaram a se tornar uma tênue lembrança nas mentes dos homens, mas também tudo aquilo que remetesse o ser humano ao seu estado natural (DA, p. 93), primitivo, pois a ordem dada pelo esclarecimento comandado pela razão instrumental era a efetivação da autoconservação a qualquer preço (DA, p. 38).
Nessa perspectiva de total dominação da natureza pelo homem, ou seja, na busca de garantir a autoconservação e a extirpação do desconhecido na natureza, o homem acabou por fazer com que ele mesmo se perdesse de sua humanidade, coisificando-se:
Através da identificação antecipatória do mundo totalmente matematizado com a verdade, o esclarecimento acredita estar a salvo do retorno do mítico. Ele confunde o pensamento com a matemática. […]. O pensamento reifica-se num processo automático e autônomo, emulando a máquina que ele próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo. O esclarecimento pôs de lado a exigência básica de pensar o pensamento […] porque ela desviaria do objetivo de comandar a práxis […]. O procedimento matemático tornou-se, por assim dizer, o ritual do pensamento. (DA, p. 33)
Portanto, de acordo com o pensamento de Adorno e Horkheimer, observa-se que é a partir da tentativa de descortinar o mundo desconhecido (e garantir a sobrevivência do homem) que surge a proposta inicial do esclarecimento, cujo intuito era colocar o homem na posição de dominador da natureza. No entanto, essa mesma proposta de emancipação do homem acabou por fazê-lo regredir a mais um mero objeto a ser dominado (reificação) através da principal ferramenta de dominação que o próprio homem utiliza: o seu pensamento (com ênfase da razão instrumental).
Referência
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2006.
[*=DA]
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[**] Na perspectiva de Adorno e Horkheimer, é difícil pensar em uma crise do mito diante da razão ou uma ruptura entre mitologia e esclarecimento, visto que o mito já é um produto do esclarecimento. No entanto, pode-se pensar em uma sucessão de verdades, no sentido de que a verdade revelada pelo mito se mostrava cada vez mais tênue e insuficiente para explicar e dominar o mundo em relação à verdade descortinada pela razão instrumental.
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o esclarecimento que faz todos os conteúdos passarem pelo crivo da razão (sendo esta representada pela dúvida, pelo método ou qualquer outro conceito) faz persistir seu programa autoconservador ao mesmo tempo em que cai como extremamente metafísico aos olhos do pensamento técnico, fruto de um contexto reificado em si mesmo. Procurar compreender o processo reificante no seio do programa do esclarecimento representa, para nossos tempos, ter esperanças na utopia de que o indivíduo ainda pode alcançar sua emancipação no todo administrado que se tornou a sociedade. Tarefa árdua, mas não impossível. Como diria Adorno, é a tarefa da filosofia dizer o que não se deixa dizer, o que, ao mesmo tempo, lhe mostra a dificuldade e os méritos de seu trabalho. Parabéns pelo início, e coragem para o caminho.
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Bruno Viana Campos, vc foi intuitivo, simples e direto. Parabéns.
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Ter esperança na utopia de que o indivíduo ainda pode alcançar sua emancipação do todo administrado que se tornou a sociedade. Realmente é uma tarefa árdua. Vejo que no momento a emancipação do homem se torna cada vez mais difícil. O pensamento cientificista contenta-se com a organização da experiência, a qual se dá sobre a base de determinadas atuações sociais, mas o que estas significam para o todo social não entra nas categorias da “teoria tradicional”. Em outros termos, a teoria tradicional não se ocupa da gênese social dos problemas, das situações reais nas quais a ciência é usada e dos escopos para os quais é usada. Chega-se, assim, ao paradoxo de que a ciência tradicional, exatamente porque pretende o maior rigor para que seus resultados alcancem a maior aplicabilidade prática, acaba por se tornar mais abstrata, muito mais estranha à realidade (enquanto conexão mediatizada da práxis global de uma época) do que a teoria crítica. Esta, dando relevância social à ciência, não conclui que o conhecimento deva ser pragmático; ao contrário, favorece a reflexão autônoma, segundo a qual a verificação prática de uma ideia e sua verdade não são coisas idênticas. Assim, para a que resultados positivos na emancipação do homem pelo homem, onde o homem possa valer o que ele é e não o que ele tem, a necessidade de uma educação libertadora e abrangente se faz necessário e urgente para que o utópico passe a ser concreto, real. Feliz por participar e desde de já agradecido.