Adriano Miguel Silva
Bruno Viana Campos
Introdução
O campo de concentração de Auschwitz[1] foi mais que um fato histórico, pois não foram somente executados seres humanos neste local, mas a humanidade do homem (MATE, 2005, p. 07). Porém, corre-se o risco de Auschwitz ser colocado na história como mais um genocídio ocorrido, cujo impacto social e político diminui com o passar dos anos.
Essa visão de esquecimento do que representou Auschwitz para a humanidade foi veiculada na Europa durante várias décadas após a Segunda Guerra Mundial. No entanto, as feridas deixadas no sentimento de humanidade – juntamente com a mobilização de sobreviventes dos campos de concentração e pensadores que refletiram sobre os mesmos – eram pertinentes demais para serem esquecidas (ib., p. 08).
Houve então a necessidade de denúncia e justiça para que o homem não esquecesse de Auschwitz. Além de lembrar o ocorrido, o sobrevivente e os pensadores buscavam, pelos relatos colhidos durante todo processo de ascensão dos campos de concentração, as responsabilidades e conseqüências que endossaram a prática da barbárie (ib., p. 197).
Diante disso, o presente artigo tem o intuito de refletir principalmente sobre o que ficou e o que foi destruído da humanidade do homem com a efetivação, sobretudo, do projeto de desumanização deflagrado nos campos de concentração.
A tríade da barbárie: a vítima, o carrasco e o espectador
Para pensar sobre o que ocorreu com a humanidade do homem em Auschwitz, é necessário, primeiramente, perguntar para onde foi o homem diante de toda perseguição que culminou nos campos de concentração. Com a intenção de encontrar respostas para tal questionamento, deve-se convergir a reflexão não diretamente para o homem concreto, físico, mas para a dignidade do homem, pois perguntar por este é, em última instância, interrogar sobre a sua dignidade, ou seja, acerca da idéia que se faz da humanidade do homem.
Desse modo, observa-se que em Auschwitz não morreu somente o homem físico, mas a idéia que se fazia dele até então (ib., p. 207). Tal morte só foi possível porque houve todo um processo que instigou, gradativamente, “o exercício continuado da barbárie, empobrecendo o sentido de humanidade de todos os homens” (ib., p. 207).
Sendo assim, a idéia de homem se encontrava, no campo de concentração, em declínio, terminando na sua morte, na morte do conceito de dignidade humana. Porém, ainda permanecia o homem[2], não aquele pensado sobre o paradigma de humanidade até então em voga (que, em linhas gerais, legitimava a dignidade), mas sim o homem apenas homem, destituído de qualquer atributo que remetesse à dignidade morta no campo de concentração (ib., p. 224).
Com efeito, para entendermos como ocorreu a referida morte do conceito de homem, é preciso analisar a tríade que, direta ou indiretamente, esteve envolvida em tal morte: a vítima, o carrasco e o espectador.
A vítima
Nos campos de concentração, aqueles que podiam trabalhar não eram imediatamente mortos quando chegavam nestes lugares, embora a morte fosse o fim último para eles. Era necessário explorar a força de trabalho dos prisioneiros e, acima de tudo, tirar-lhes a dignidade (ib., p. 208), o seu sentimento de serem homens. Enfim, o objetivo de todo o aparato no campo era de tirar a humanidade da vítima, forçando-a a se sentir apenas um animal inferior ao seu carrasco.
Desse objetivo, por sua vez, surge um paradoxo: o carrasco luta para tirar a humanidade de sua vítima. Esta tenta, com o resto de suas forças, manter latente os resquícios de sua humanidade. O máximo que o carrasco poderia fazer, todavia, era denegrir o sentimento de humanidade da vítima ou matá-la, mas nunca destruí-lo completamente, pois este se enraizava nela como um sentimento indelével, radical (ib., p. 209).
Diante desse paradoxo, questiona-se: será que o conceito de dignidade defendido pelo carrasco[3] e difundido por ele violentamente na vítima retratava verdadeiramente o seu real sentido, ou seja, o sentido de humanidade do homem? Se a vítima, sob o jugo do carrasco, se reconhecia sem dignidade, mas ela, ao mesmo tempo, ainda tinha dentro de si um sentimento de humanidade, então o termo dignidade deveria ser reformulado, pois ele deixava margem para um discurso de conveniência que apoiava a desumanização desencadeada pelo carrasco em detrimento da humanidade da vítima[4], que não era reconhecida por seu algoz.
Um novo conceito de humanidade[5] era preciso ser pensado. A partir do homem degradado (ou seja, destituído do conceito de dignidade postulado até Auschwitz), mas que não renunciou à sua humanidade, surgia a tarefa de elaborar um novo conceito de dignidade (ib., p. 212) menos tênue e abstrato e mais realista[6]. Para isso, o ponto de partida seria o homem de Auschwitz, sobrevivente da morte do conceito de humanidade.
Em suma, em Auschwitz, morreu a idéia de homem baseada na dignidade (do carrasco) que acabou gerando a barbárie e, junto com ela, a cultura que a fundamentava. O homem degradado converge o pensamento para a reflexão sobre o conceito de humanidade morto em Auschwitz, pois o refugo dos campos de concentração acabou se tornando o “ponto de referência da humanidade do futuro” (ib., p. 213).
O carrasco
O principal intuito do carrasco era, sobretudo, extirpar a condição humana da vítima. Para isso, era preciso que ele, primeiramente, renunciasse à sua condição humana tendo em vista uma nova humanidade. Assim, antes de destruir a humanidade da vítima, ele subjugava a sua. A humanidade do homem velho (ib., p. 213) dava lugar para a do homem novo, que não tinha compaixão por aquilo que não era considerado humano (com dignidade), incluindo a vítima.
Com efeito, é importante notar que o processo de desumanização atingiu de formas diferentes a vítima e o carrasco (ib., p. 214). Aquela era tratada como algo descartável, além dela não sentir receios de se declarar na condição de ser indigno. Por outro lado, o carrasco foi programado para não reconhecer o seu ato desumano, ou melhor, a sua própria desumanidade. Essa situação foi propiciada pela cultura na qual estavam inseridos tanto a vítima quanto o carrasco. A cultura possibilitou a barbárie que culminou, neste caso, na desumanização do carrasco:
A facilidade com a qual o soldado se converteu em assassino, a fábrica em forno crematório, o nacionalismo em genocídio e o antissemitismo em Auschwitz, só pode explicar-se porque os tempos estavam maduros para a barbárie. O destino do carrasco é talvez quem desvele o grau de prostração no qual caiu a cultura. Eu já dizia que o carrasco, ao contrário da vítima, não estava disposto a reconhecer a sua inumanidade. Mas essa não-consciência de sua inumanidade é sinal cainita de seu destino um irás (até a inumanidade que destróis), porém não voltarás, uma viagem sem retorno porque sua boa consciência lhe vela a possibilidade de reconhecer-se humanamente nu. (ib., p. 217)
Embora o carrasco tenha cumprido o seu papel de subjugar a sua vítima, ele, de certa forma, fracassou em desumanizá-la. Por mais que ela sofresse, nunca abandonaria a espécie humana, mesmo não sendo reconhecida como tal pelos seus carrascos (ib., p. 216). Assim, pode-se destruir profundamente a humanidade do homem, mas o carrasco não conseguia fazer com que a vítima se desfizesse de sua espécie, ou seja, o homem (no caso, a vítima) pode ser facilmente retirado de sua condição humana definida pela cultura (regras de convivência, de etiquetas, conceito de dignidade), mas ele não deixará de ser, em última instância, homem.
O espectador
Antes de analisarmos o papel do espectador na efetivação de Auschwitz e a na morte da humanidade do homem, é necessário pensar a situação que propiciou a subjugação da vítima, sobretudo do judeu.
Os nazistas, antes de colocarem em prática a máquina dos campos de concentração, buscaram nas instituições internacionais motivos para que elas requeressem os judeus, caso sofressem algum tipo de violência (perseguição, morte, restrição dos direitos civis, etc). Não os encontrando, o próximo passo seria elaborar razões para dominar os judeus. Entretanto, isso deveria acontecer não de forma abrupta, mas, de preferência, sem causar escândalos à população alemã e à comunidade internacional.
Antes da Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos, teoricamente, já eram respeitados pelo fato do homem ser homem (ib., p. 218). Na prática, eles só eram acatados caso os homens se identificassem com algum estado. Se não houvesse um estado que reconhecesse os direitos de um povo, estes eram irrelevantes. Com efeito, o povo judeu não pertencia, de certa forma, a nenhum país propriamente dito (ib., p. 218).
Desse modo, percebe-se que não havia um estado que reivindicaria insistentemente os direitos do povo judeu, embora já houvesse um esboço do estado de Israel. Esse é um dos principais motivos que legitimou a perseguição aos judeus, pois não havia um estado que os reclamasse, caso sofressem algum tipo de violência. Com isso, além de fomentar o já existente antissemitismo na Alemanha, tal motivo abriu as portas para uma das grandes repressões aos judeus: a restrição imposta a estes do status legal de cidadão (ib., p. 219).
Por conseguinte, o judeu era visto como fora do estado; a perda dos direitos legais equivalia à perda dos direitos humanos (ib., p. 220). Assim, os judeus, agora transformados em vítimas juntamente com aqueles que militavam contra o regime nazista, eram considerados como coisas, destituídos de qualquer vestígio de dignidade humana.
Diante disso, questiona-se: qual o papel do espectador diante da desumanização da vítima? Ele, na condição de cidadão, na maioria das vezes, permanecia indiferente diante dos considerados não cidadãos, colaborando com a perseguição, com o processo de desumanização da vítima. Quando o espectador negou através da indiferença a humanidade da vítima, ele próprio negou a sua humanidade (ib., p. 221), pois quando a mesma é suprimida da vítima, o espectador também anula a sua pela indiferença.
Portanto, é perceptível que o espectador tem a sua contribuição no ato de desumanização. Ele se tornou cúmplice da barbárie ao permanecer impassível diante das perseguições às vitimas. Tal impassividade moral levou à “insignificância teórica do sofrimento da vítima. […]. Não existe lugar neutro, por isso, o espectador possui um juízo objetivamente inapelável. O juízo, o necessário juízo, capaz de discriminar entre morte e crime, somente pode vir de dentro” (ib., p. 224).
O “era aqui” da testemunha
Mas, o que de fato está em questão é: “onde estava o homem?” (ib., p. 224) Homem entendido como ser humano e também enquanto instituições que trazem o nome como defensora dos direitos humanos, ou seja, refere-se aqui “aos intelectuais, aos homens virtuosos, as igrejas cristãs, quer dizer, aos representantes da humanidade” (ib., p. 225), que diante de tal situação de massacre, de crime ficaram em silêncio.
O que se pretende com tudo isso é saber onde estava o homem, e como ele se encontra depois desse ataque à humanidade que é conceituada no texto como a “humanidade do homem”. Isso porque, diante dessa brutal experiência de horror, não foi destruído somente um grupo de pessoas ou “espécie”, mas sim toda a “humanidade do homem”. É por isso que se pergunta onde estava o homem que vendo sua humanidade ser destruída preferiu permanecer em silêncio, sendo que, por exemplo, dentre “dez europeus nove calaram” (ib., p. 225). Eles não calaram diante de um crime qualquer, mas de um crime contra a humanidade e sua humanidade.
Há uma outra posição que contrapõe essa visão de que humanidade enquanto universalidade sofre as conseqüências do crime causado a um determinado grupo, o contraponto é que o crime vai prejudicar somente a humanidade do criminoso, isso não vai repercutir na ação boa e verdadeira da espécie humana num todo mas somente na do que executou o crime.
Mas o que está em foque é o acontecido em Auschwitz, que por tecido um campo de extermínio de dignidade, de vida justa acabou por afetar toda a humanidade que permaneceu em silêncio.
E em resposta a onde estava o homem, é preciso “conhecer o estado de prostração da humanidade do homem a partir da experiência de que não estamos diante de um crime qualquer, mas diante de um ‘crime contra a humanidade’” (ib., p.225). Que por sua vez, envolve todos os homens, não um grupo reduzido como, por exemplo, os judeus, mas a dignidade de todos os seres humanos.
Sentido jurídico
Diante da atrocidade que os alemães fizeram com os judeus durante o nazismo, fez – se com que fosse criada uma nova figura jurídica que respondesse, de alguma maneira, à novidade do fato, que é o Estatuto do Tribunal Internacional de Nurenberg (ib., p. 226). Estatuto esse que mostra que tudo isso é uma violação dos direitos do indivíduo. Mas o que é “especifico é seu caráter inumano posto que causa sofrimentos que atentam contra a integridade física e mental da vítima” (ib., p. 226).
Uma segunda característica do tratado é que o “crime” deve ser realizado pelo estado, o qual, ao invés de defender os direitos dos cidadãos, decide quem é cidadão e quem não o é. Sendo assim o poder da existência humana estaria nas mãos do estado. Já o “crime contra a humanidade” não está contido nesse conceito do Estatuto, isso porque “o poder nega com fatos e ditos a pertença de um ser humano à espécie humana, atenta-se contra a comunidade humana porque se priva de uma parte de sua riqueza ou da diversidade” (ib., p. 227).
Os direitos dos seres humanos são direitos enquanto conjuntos, e não algo isolado. Caso um direito seja violado, a humanidade no seu conjunto fica abalada. “Por isso são crimes não contra uma etnia ou um povo, mas contra a humanidade” (ib., p. 227). Esse crime contra a humanidade tinha como cunho fundamental do desejo nazista não “expulsar os judeus de seu território, mas fazê-los desaparecer da face da terra” (ib., p. 227).
Até aqui percebe-se que a luta na busca dos seus direitos à vida, não pode partir somente daquele grupo que está sendo agredido, lesado mas essa briga deve ser de todos, uma vez, que isso afeta um todo universal.
A dimensão Moral
A dimensão moral intensifica o que já foi aborda acima, ou seja, em se tratando do crime contra a humanidade que não atinge somente o grupo que está sendo lesado nos seus direitos, mas sim toda a humanidade. Isso porque uma atrocidade como o crime “contra a humanidade” tendo como alvo o acontecimento da perseguição nazista aos judeus, não apenas mata, mas acima de tudo desumaniza. Aqui se percebe mais claramente o quanto afeta o todo e não somente a um determinado grupo. Adorno retrata essa situação com bastante ênfase: “de que o fato de que nos campos de concentração morreram não apenas indivíduos isolados, mas uma espécie do gênero humano” (ib., p. 228), ou seja, essa atrocidade acabou por atingir toda a humanidade.
Imre Kertesz faz menção a essa situação afirmando que: “A testemunha, no entanto, tem o poder de converter essa negação epocal na reserva de sentido ao declarar diante de nós que aí jazem sepultadas as perguntas que permitirão ao homem seguir erguido” (ib., p. 230).
O lastimável acontecimento acontecido no campo de concentração, mas “que nos convertamos em juízes, que façamos justiça atualizando as injustiças passadas e reconhecendo sua vigência” (ib., p. 230). Mas que a testemunha possa inaugurar uma nova humanidade, que revele “Musulmann”, ou seja, esse conceito de homem sem aparência humana se converta em testemunha, que luta por justiça.
Já a vítima do campo, tem como função atinjir o alvo que é a justiça, afim de “que nos façam justos na medida em que nos convertermos em memórias vivas das injustiças que a eles fizeram e que seguem pendentes” (ib., p.231).
Contudo, percebe-se que Auschwitz foi o palco da destruição de toda a humanidade; uma vez os judeus sendo alvo dessa atrocidade, toda a humanidade também foi lesada. A dignidade humana foi lançada à exterminação e a humanidade inteira ficou calada escondida diante a esse fato. Mas resta uma nova oportunidade para que essa humanidade marcada pelo passado, fazer com que as marcas e lembranças os torne mais humanos e justos, afim de que não se calem diante das injustiças e crimes contra a humanidade do homem.
Referências
MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz: atualidade e política. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005.
[1] Auschwitz representa não somente um campo de concentração específico, mas também todos os outros campos e todo o movimento que culminou nos mesmos. Aliás, ele é pensado, acima de tudo, como o acontecimento que representou a morte da humanidade humana.
[2] A morte do conceito de dignidade humana – conceito esse que vigorou até Auschwitz – será melhor desenvolvido adiante, quando refletiremos a questão acerca da vítima.
[3] A dignidade, na perspectiva do carrasco, era pautada pelo critério digno/indigno baseado na cultura que propiciou o surgimento de Auschwitz.
[4] O prisioneiro era levado a acreditar que perdera a sua dignidade. Ela não era reconhecida pelo carrasco, levando-o a se convencer de que realmente não a possuía (Reyes, p. 210). Porém, ainda restava na vítima o sentimento de ser homem. Logo, a dignidade não estava completamente morta, mas era necessário repensá-la.
[5] De fato, quando se propõe pensar um novo conceito de humanidade após Auschwitz, está implícito necessariamente uma reflexão acerca da insuficiência do conceito, ou seja, a incapacidade da conceituação dizer definitivamente e seguramente a realidade que se pretendo elucidar.
[6] Um dos erros da filosofia, segundo Reyes Mate, foi ter colocado a essência do homem como inatingível pela barbárie. Com isso, os atos concretos contra a humanidade passaram por despercebidos. (Reyes, p. 224)